CATALOGANDO TODA A CRIAÇÃO HUMANA

Por Julio Cesar Souza Santos | 28/12/2016 | Sociedade

O Que Continham os Herbóreos Ilustrados de Dioscórides?  Por Que os Naturalistas Dispunham as Plantas e os Animais em Ordem Alfabética em Seus Herbóreos? Qual a Contribuição de John Ray ao Estudo das Plantas e dos Animais?

Durante 1500 anos, os eruditos europeus que quisessem se informar sobre a Natureza dependiam dos seus “herbóreos” ([1]) – autoridades textuais cuja tirania era semelhante à de Galeno sobre medicina – cujos deleites poéticos afastavam os leitores do mundo ao ar livre das plantas e dos animais. Hoje, quando lemos esses guias compreendemos por que motivo os europeus foram tão tardos a aprender a olhar. 

Os herbóreos foram o legado de Dioscórides – antigo cirurgião grego – cuja obra abrangia a botânica, principalmente como uma espécie de farmacologia. Os médicos continuaram a tentar equiparar a descrição de Dioscórides das plantas por ele vista nas margens do Mediterrâneo, com o que eles encontravam na Alemanha, na Suíça ou na Escócia. Como Galeno, Dioscórides estudou a Natureza, mas seus discípulos estudaram Dioscórides. 

Ele prestou atenção aos lugares onde as plantas cresciam, quando e como deveriam ser colhidas e até ao gênero de recipientes em que convinha serem guardadas. Como outros autores, ele teve poucos discípulos e muitos exegetas, os quais guardaram as suas palavras como um tesouro, mas esqueceram o seu exemplo. Ele deixou de ser um professor à medida que se tornou um texto. 

Escrito em grego, o herbóreo de Dioscórides organizava mais de 600 plantas sob títulos comuns de uso familiar. Quais deveriam ser procuradas para óleos? E para os unguentos, gorduras ou aromas? Quais curavam dores de cabeça ou tiravam manchas da pele? Quais eram os frutos, vegetais ou raízes que deveriam ser comestíveis? Que plantas eram venenosas e quais os seus antídotos? Que remédios poderiam ser feitos de plantas? 

Incontáveis manuscritos de Dioscórides atestam a sua popularidade durante a Idade Média e, através deles, ficamos sabendo que a baga do zimbro “é boa para o estômago, fazendo bem sob a forma de bebida às enfermidades do tórax, tosses e inchaços”. Também é diurética e por isso “boa tanto para convulsões como quebraduras e para as que têm úteros estrangulados”. 

Mil anos de manuscritos de Dioscórides nos mostraram o que significava estar à mercê dos copistas. Com o passar dos séculos, as ilustrações afastam-se cada vez mais da Natureza, pois as cópias das cópias geraram folhas imaginárias, para respeitarem a simetria, ampliaram raízes e para encher a página retangular. As fantasias dos copistas se transformaram em convenções. 

Escribas caprichosos se inspiraram não apenas nos nomes, mas igualmente nas propriedades das plantas, tornando a botânica num ramo da filologia. Quando a imprensa tipográfica surgiu na Europa, a informação botânica mais útil ainda se encontrava nos herbóreos antigos, conforme fora expandida e “aperfeiçoada” por gerações de escribas. Os herbóreos impressos depressa se tornaram mercadorias muito procuradas. Mas, o herbóreo tinha limites óbvios, pois ele fazia a cada planta a mesma pergunta: _ “Como podes divertir-me, alimentar-me, salvar-me ou curar-me? 

A Invenção das Espécies

  

Enquanto os naturalistas dispuseram plantas e animais por ordem alfabética, o estudo da Natureza estaria condenado a permanecer livresco e provinciano. Essa ordem dependia da língua em que se lia. A versão latina da enciclopédia autorizada de Gesner abria com “Alces”, mas quando era traduzido para o alemão passava a começar com “Affe” (macacos), enquanto que em inglês o capítulo um descreve os “Antílopes”. Sendo assim, os naturalistas necessitavam de uma maneira de nomear plantas e animais que transcendesse as barreiras dos idiomas. 

Mas, antes disso, tinham de ter uma compreensão do que queriam significar com um “gênero” de planta ou animal. Quando os naturalistas formulassem o conceito de “espécie” forneceriam um vocabulário útil para catalogar toda a Criação. E a busca de um modo “natural” de classificá-la daria origem a algumas das grandes aventuras intelectuais do tempo moderno. 

Uma das dificuldades era a crença da geração espontânea. Aristóteles, por exemplo, escreveu que as moscas, os vermes e outros “animais pequenos” tinham origem espontânea na matéria em putrefação. No século XVII, o médico Jan Baptista van Helmont disse que viu ratos nascerem de farelo e trapos velhos. 

Então, se era possível surgirem animais espontaneamente, não poderia ser exequível descrever uma espécie como uma criatura que reproduzia (ou era reproduzida) pelo seu próprio gênero. 

Só gradualmente os naturalistas abandonaram essa ideia. O desprezo de Aristóteles por vermes e insetos “inferiores” baseava-se na sua convicção de que eles não possuíam os órgãos diferenciados encontrados em animais “superiores”. Depois de o microscópio mostrar como eram complexos os animais minúsculos, tornou-se mais fácil aos naturalistas defender que esses animais não surgiam por geração espontânea, mas tinham órgãos reprodutores. 

A ideia das espécies foi defendida, desenvolvida e aplicada por biólogos muito antes de o conceito de geração espontânea ser abandonado e o problema não era resolvido porque tinha muitas implicações teológicas. Cientistas radicais achavam a ideia da geração espontânea útil à sua explicação científico-natural da origem da vida, a qual tinha tornado desnecessário o papel de Deus na Criação. 

Louis Pasteur via a questão de forma diferente e, em sua opinião, um conceito ordenado das espécies era necessário para o trabalho criador de Deus no princípio. 

As experiências de Louis Pasteur com a fermentação provaram a prevalência de microrganismos na poeira transportada pelo ar e acabaram demonstrando que o aquecimento e a exclusão de partículas aerotransportadas impediam o aparecimento de vegetação. A aplicação dessas ideias para “pasteurizar” leite e melhorar a produção de cervejas e vinhos ajudou a confirmação dos argumentos contra a geração espontânea. 

Quando pensamos na dificuldade de conceber um sistema para classificar a Criação, não nos surpreende que os autores de herbóreos dispusessem seus itens de forma alfabética ou conforme suas utilizações humanas. Como as diferenças entre animais são mais evidentes do que as que as distinguem as plantas, os primeiros esforços no sentido de uma classificação geral foram feitos para os animais. 

Para o seu primeiro esquema, escritores medievais se inspiraram em Aristóteles que separava os animais de sangue vermelho de todos os outros, os quais eram chamados de “sem sangue”. Os animais “com sangue” foram divididos conforme o modo de reprodução (vivíparos ou ovíparos) e conforme seu habitat e, os outros, divididos pela sua estrutura geral (de carapaça fraca, carapaça dura, insetos, etc.). 

Aristóteles utilizou um conceito de gênero, embora para ele nem gênero nem espécie tivessem a definição profunda que adquiriram nos tempos modernos. O seu gênero (ou família), designava todos os agrupamentos maiores do que a espécie. O esboço de Aristóteles serviu bem aos naturalistas durante a Idade Média, quando chegavam ao seu conhecimento relativamente poucas plantas e animais novos. Eles se limitavam a comparar as plantas e os animais das suas regiões com os descritos nos textos antigos. 

Depois da idade dos descobrimentos várias novidades invadiram o consciente europeu, mas como classificá-las? Como saber se determinadas plantas ou animais eram realmente novidades? Espécimes, livros, histórias de viajantes e desenhos da Natureza apareceram em profusão, mas produtores de enciclopédias como Gesner amontoaram a fantasia sobre a realidade. 

Misturaram-se curiosidades de todos os lados como por exemplo um volume belamente ilustrado (de George Mark Graf) sobre as plantas e os animais do Brasil, o qual foi adulterado e misturado a obra de William Pies sobre a história natural da Índias orientais. Os leitores ficavam encantados com tais miscelâneas e a palavra “herbário” passou a ser usada para descrever a coleção de plantas secas, as quais se amontoavam nas bibliotecas de nobres e naturalistas. Mas, onde situar tais espécimes? Como rotular, organizar ou recuperar cada um deles? 

Nos 100 anos entre meados do século XVII e XVIII fizeram-se mais progressos na catalogação das variedades da Natureza do que em todos os milênios precedentes. Assim como os produtores de mapas da Terra começaram pelas fronteiras evidentes da terra, do mar, das montanhas e dos desertos, também os naturalistas encontraram unidades evidentes entre plantas e animais. No entanto, até para a superfície da Terra foi necessário inventar os limites artificiais da latitude e da longitude, para que outros pudessem encontrar o seu caminho e fosse dado a todos compartilhar o conhecimento.

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