Caso Ivcher Bronstein vs. Peru: A Posição da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o Direito a Liberdade de Expressão

Por Karina Joelma Bacciotti | 30/08/2013 | Direito

                                                                       

Notas Iniciais.

“A liberdade de expressão é a pedra angular na existência de uma sociedade democrática. É indispensável para formação da opinião pública. Donde é possível afirmar que uma sociedade que não está bem informada não é plenamente livre” (RAMIREZ E GONZA, 2007, p. 17).

Os dias que vivemos, de efervescente manifestação em prol de melhoras no país e de mudanças políticas, nos convida a um estudo sobre a liberdade de expressão, que como disse Francisco Teixeira da Mota é uma das formas mais fiáveis de aferir a democracia de um Estado”(2009, p.17) .

Sendo o Brasil um país democrático, em que o valor supremo da liberdade é considerado pelo preâmbulo da Constituição Federal de 1988, como indispensável a instituição do Estado Democrático, valor este traduzindo em princípios e normas (dos quais destacamos o artigo 5º, caput e incisos IV e IX, e artigo 206, II, que tratam mais detidamente da liberdade de expressão), alguns de nós ainda lembram das agruras experimentadas durante o governo ditatorial.

Não podemos olvidar que nos tempos sombrios da ditadura, a liberdade foi um dos valores mais aviltados, principalmente a liberdade de expressão, hoje consagrada com um direito fundamental.

Cumpre lembrar que o direito à liberdade de expressão possui duas dimensões: uma individual e outra social, que devem ser garantidas simultaneamente. A dimensão individual não está restrita apenas ao direitos de falar ou escrever, compreende também o direito de poder utilizar qualquer meio  apropriado  para difusão  do pensamento; já a dimensão  social consubstancia-se num meio para intercambiar idéias e informações de modo que atinja o maior número de pessoas, ou seja, refere-se ao direito que todos temos de conhecer as opiniões e as notícias[1].

Desta forma, resta claro, que a expressão e o modo de difusão do pensamento e da notícia são ideias incindíveis e que qualquer restrição a estas projeções da liberdade de expressão configuram empecilhos ao exercício do direito de expressão como um todo.

Muito embora o Brasil não tenha sido acionado no Sistema Interamericano de proteção dos Direitos Humanos por violação específica ao direito à liberdade de expressão, seu estudo se faz candente. Para tanto, escolhermos tomar por objeto de estudo um dos primeiros casos da Corte Interamericana sobre o tema – o Caso Ivcher Bronstein versus Peru.

O caso em estudo apresenta peculiaridades que o torna um interessante objeto de análise. Primeiramente pelo fato de podermos ter uma noção de como funciona o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos; em segundo lugar, neste julgado, podemos observar uma discussão sobre a tentativa do Estado em  retirar o reconhecimento de competência da Corte Interamericana sem denunciar à Convenção e, por fim, a restrição à liberdade de expressão por via indireta. Entretanto, nos deteremos em analisar a violação do direito à liberdade de expressão por meio indireto.

  1. 1.     Introdução à Causa - contexto histórico e fatos levados à análise pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

Os fatos levados aos Órgãos do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos ocorreram entrem abril de 1997 e maio de 1998, período em que o Estado do Peru era governado por Alberto Fujimori.

Para melhor compreendermos a violação de direitos sofrida pelo Sr. Baruch Ivcher Bronstein (a quem denominaremos Sr. Ivcher) faz – se necessário voltar na história e relembrar como Alberto Fujimori chegou ao Poder.

Pois bem, em 1990, após uma década turbulenta para o Estado peruano, devido violência decorrente do terrorismo imposto pelos grupos Sendero Luminoso  e Movimento Revolucionário Tupac Amaru (MRTA), o estreante político Alberto Fujimori lançou-se candidato à Presidência e logrou vitória. Em seus primeiros anos de mandato promoveu um choque de gestão para tentar estabilizar a economia peruana, porém os efeitos foram drásticos (estabilizou a inflação mas o índice de desemprego subiu drasticamente). Com o fim de tentar dar continuidade ao seu projeto, em 1992 deu um “golpe de Estado” - fechou o Congresso, submeteu o Poder Judiciário ao seu comando e suspendeu as garantias constitucionais – constituindo um governo de emergência  para reconstruir a nação.

Em 1993, após constituir por eleições (ao que tudo indica manipuladas) instaurou-se um novo Parlamento e foi promulgada uma nova Constituição, que possibilitou a reeleição de Fujimori em 1995, 1997 e sua candidatura em 2000.

O ano de 1997 foi marcado pela insatisfação quanto as medidas ditatoriais opressivas, principalmente no que toca a liberdade de expressão,  e também pelos desentendimento entre os membros do próprio partido e as Forças Armadas.

É neste contexto que passam os fatos envolvendo o Sr. Ivcher, natural de Israel que em dezembro de 1984 teve que renunciar expressamente a nacionalidade israelense para adquirir o titulo de nacionalidade peruana  concedida pela Resolução Presidencial.

Vale destacar que a nacionalidade peruana é requisito indispensável para ser proprietário de ações de empresas concessionárias de canais televisivos no país. Sendo assim, em meados de 1992, o Sr. Ivcher tornou-se proprietário de 53, 95% das ações da “Compañía Latinoamericana de Radiodifusión S.A.”, empresa operadora do Canal 2 da televisão peruana, e os 46% das ações restantes eram de propriedade dos irmãos Samuel e Mendel Winter Zuznaga .

Assim, voltando ao ano de 1997, mas especificamente no mês de abril, o Canal 2, através do seu programa “Contrapunto”, difundiu denúncias sobre torturas cometidas por membros do Serviço de Inteligência do Exército do Peru, bem como reportagens relacionadas com receitas milionárias recebidas pelo Senhor Vladimiro Montesinos Torres, assessor do referido Serviço de Inteligência. Como conseqüência dessas denúncias, membros da Direção Nacional da Polícia Fiscal sugeriram ao Sr. Ivcher a modificação da sua linha informativa.

Em maio de 1997, foi aberto contra o Sr. Ivcher um processo junto a Direção Nacional de Policia Fiscal e ordenada sua detenção em razão de não comparecer ao processo, por estar fora do país. Na mesma, o Poder Executivo expediu um decreto regulamentando a Lei de Nacionalidade e estabelecendo a possibilidade de cancelar as naturalizações já procedidas.

Diante da ameaça a sua nacionalidade, gerada pelo Decreto, o Sr. Ivcher interpôs uma ação de amparo (equivalente de nosso mandado de segurança) em junho de 1997, a qual foi declarada improcedente em fevereiro de 1998.

Ainda no mês de junho de 1997, por meio de resolução administrativa, o Governo peruano alterou a composição do Gabinete Constitucional e Social da Corte Suprema de Justiça da República, resultando no afastamento de vários magistrados  responsáveis pelo julgamento de questões envolvendo direito publico.

Em julho de 1997, enquanto o Canal 2 anunciava uma reportagem sobre interceptações telefônicas realizadas com candidatos opositores ao Governo, o Diretor Geral da Polícia Nacional expôs, em conferência de imprensa, conclusões de um relatório da Direção de Migrações e Naturalização, conforme o qual não se havia localizado o expediente que originou o título de nacionalidade peruana do Senhor Ivcher, nem se tinha sido demonstrado que este renunciou à sua nacionalidade israelense. No dia seguinte à declaração o Diretor Geral de Migrações e Naturalização emitiu  resolução deixando sem efeito legal o título de nacionalidade do Sr. Ivcher;

Como resultado de uma ação de amparo apresentada pelos irmãos Winter, o Sr. Percy Escobar, Juiz Penal interino designado pelo Tribunal Especializado em Direito Público, ordenou a suspensão do exercício dos direitos acionários do Sr Ivcher, o qual foi outorgado aos demandantes junto com a administração provisória, bem como a destituição do cargo de Diretor e Presidente da Companhia. Assim procedeu a convocação de uma Assembléia Extraordinária de Acionistas para eleger uma nova Diretoria.

Para obter a revogação da resolução que deixou sem efeito o título de nacionalidade e para suspender as conseqüências da mesma, o Sr. Ivcher interpôs diversas ações, as quais restaram infrutíferas.

Em meados de setembro do fatídico ano de 1997, o Juiz Percy Escobar, assistido pela força pública do Peru, entregou a administração da Companhia aos irmãos Winter e impediu a entrada dos jornalistas que trabalhavam no programa “Contrapunto” na emissora.

Ainda no intento de restringir os direitos, em outubro de 1998, foi cancelada a inscrição eleitoral do Sr. Ivcher.

  1. 2.     O Procedimento na Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

Face aos fatos acima relatados, em 09 de junho de 1997, o congressista peruano, Javier Diez Conseco, comunicou à Comissão a possibilidade de se privar o Senhor Ivcher da sua nacionalidade peruana. Em 16 de julho de 1997, o Decano do Colégio de Advogados de Lima, Senhor Vladimir Paz de la Barra, apresentou uma denúncia formal perante a Comissão, alegando que o Estado peruano tinha deixado sem efeito o título de nacionalidade peruana do Senhor Ivcher.

Aberto o caso em 18 de julho de 1997, a Comissão solicitou informação ao Estado Peruano que, em 12 do setembro do mesmo ano,  manifestou-se pela inadmissibilidade.

Em 26 de agosto de 1997, o Senhor Ivcher pediu audiência à Comissão que, a partir desta solicitação, considerou-o como peticionário principal e vítima das violações alegadas.

Após a análise de admissibilidade do caso a comissão colocou-se à disposição das partes para tentar uma solução amistosa. Porém o Estado peruano considerou não ser conveniente. Desta forma, em dezembro de 1998, a Comissão aprovou o Relatório n. 94/98, concluindo que a República do Peru, privou arbitrariamente o Sr. Ivcher de sua nacionalidade peruana (violando o artigo 20.3 da Convenção), como meio de suprimir-lhe a liberdade de expressão (consagrada no artigo 13 da Convenção), vulnerando, também, seu direito de propriedade (artigo 21 da Convenção), assim como o direito ao devido processo (artigo 8.1 da Convenção) e o direito a um recurso simples e rápido perante um Juiz ou Tribunal competente (artigo 25 da Convenção), em violação da obrigação genérica do Estado peruano de respeitar os direitos e liberdades de todos os indivíduos, dentro da sua jurisdição, conforme artigo 1.1, da Convenção.

Como resultado, a Comissão formulou as seguintes recomendações:

i)               O restabelecimento imediato do “Título de Nacionalidade” peruana ao Sr. Ivcher e o reconhecimento, de forma plena e incondicional, sua nacionalidade peruana, com todos os seus competentes direitos e atributos.

ii)             Cessar os atos de intimidação e perseguição contra o Sr. Ivcher e abster-se de realizar novos atos contra a liberdade de expressão da vítima.

iii)            Efetuar os atos que sejam necessários para que se restabeleça a situação jurídica no gozo e exercício dos direitos de propriedade do Sr. Ivcher sobre as ações da “Compañía Latinoamericana de Radiodifusión S.A.” e que, em conseqüência, recupere todas as suas prerrogativas como acionista e como administrador da referida empresa.

iv)            Indenizar o Sr. Ivcher pelos danos materiais e morais que as atuações dos órgãos administrativos e judiciais do Estado peruano  tenham-lhe ocasionado.

v)             Adotar as medidas legislativas e administrativas necessárias a fim de procurar evitar fatos da mesma natureza no futuro.

A Comissão, no mesmo instrumento, decidiu transmitir o citado relatório ao Estado peruano e outorgando-lhe o prazo de dois meses para adotar as medidas cabíveis para dar cumprimento às recomendações formuladas.

O Estado peruano solicitou prorrogação para o cumprimento o qual foi concedido.

Passada a data marcada, sem que o Estado comprovasse o cumprimento das recomendações, a Comissão decidiu pelo envio do caso à Corte, nos moldes do art. 51 da Convenção Americana de Direitos Humanos.

  1. 3.     O Procedimento na Corte Interamericana de Direitos Humanos.

 

O caso foi submetido perante a Corte, pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 31 de março de 1999, sob a alegação de que o Estado peruano violou os artigos 8º (Garantias Judiciais); 13 (Liberdade de Pensamento e de Expressão); 20 (Direito à Nacionalidade); 21 (Direito à Propriedade Privada) e 25 (Proteção Judicial) da Convenção Americana, com relação ao artigo 1º(1) (Obrigação de Respeitar os Direitos) da Convenção Americana de Direitos Humanos.

De igual modo, a Comissão solicitou à Corte que determinasse de modo preliminar o Estado  peruano que fossem   restabelecidos e garantidos o gozo integral de todos os direitos violados ao Sr. Ivcher, em particular:

  1. Que determinasse o restabelecimento do Título de Nacionalidade peruana do Sr Ivcher e o reconhecimento, de forma plena e incondicional, de sua nacionalidade peruana, com todos os competentes direitos e atributos.
  2. Que determinasse o restabelecimento da situação jurídica no gozo e exercício do direito de propriedade do Sr Ivcher sobre as suas ações da “Compañía Latinoamericana de Radiodifusión S.A.”, e que determinasse que o Sr Ivcher recupere todas as suas prerrogativas como acionista e como administrador da referida empresa.
  3. Que ordenasse ao Estado peruano, garantir ao Sr Ivcher, o gozo e exercício do seu direito à liberdade de expressão e, em particular, que cessasse os atos de intimidação e perseguição contra o mesmo, incluídos os atos contra a sua família e empresa.
  4. Que ordenasse ao Estado peruano reparar e indenizar plenamente ao Sr Ivcher, por todos os danos materiais e morais, provenientes da atuação dos órgãos administrativos e judiciais do Peru.

Decorridos os exames iniciais sobre a admissibilidade da submissão (aspectos formais) e feitas as devidas correções, em 10 de maio de 1999, a Secretaria da Corte  notificou o Estado sobre a demanda e o prazo para contestar, opor exceções preliminares e nomear seus representantes bem como um juiz ad hoc (já que o regulamento vigente à época assim previa).

Entre  maio e agosto de 1999, o Estado peruano comunicou o recebimento da demanda, designou agente (titular e suplente), questionou e solicitou dilação do prazo (que foi concedida) para designar juiz ad hoc,  e apresentou solicitação de retirada da demanda e seus anexos – sob a alegação de que o Estado do Peru, através da Resolução Legislativa n. 27.152, de 08 de julho de 1999, havia retirado o reconhecimento da competência contenciosa da Corte  Interamericana de Direitos humanos; e que em 09 de julho do mesmo ano, foi depositado na Secretaria Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), do instrumento, mediante o qual declara que, de acordo com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a República do Peru retira a declaração de reconhecimento da cláusula facultativa de submissão à competência contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos; além de frisar que a retirada do reconhecimento da competência contenciosa da Corte produz efeitos imediatos a partir da data do depósito do mencionado instrumento perante a Secretaria Geral da OEA e aplica-se a todos os casos onde o Peru não tenha contestado a demanda tramitada perante a Corte. Por fim no mesmo instrumento,  o Estado alega que a notificação enviada pela Corte ao Estado peruano em 10 de maio de 1999, perde efeito, já que o Órgão Jurisdicional Internacional não é mais competente para conhecer demandas interpostas contra a República do Peru .

Assim que notificada da resposta estatal, a Comissão apresentou suas observações acerca da retirada da demanda  sob a alegação carência de competência contenciosa. Primeiramente, manifestou que a Corte é órgão competente para análise da demanda pois, se fosse possível, a data de retirada é posterior a submissão do caso à Corte. Em segundo lugar, alega que, o Estado peruano não pode, através de um ato unilateral, privar um tribunal internacional da competência previamente assumida, já que não há previsão normativa, ademais, se caso fosse possível e compatível com a interpretação da norma, os efeitos da declaração de retirada deveriam  ser sentidos um ano depois do depósito, a fim de garantir segurança jurídica. Por fim,  a Comissão solicitou  que a Corte determine que a devolução da demanda e seus anexos por parte do Estado, não tenha validade legal, continuando a exercer sua competência sobre o presente caso e dando andamento as demais fases do processo.

 

3.1. Sentença sobre a Competência Jurisdicional da Corte.

Neste sentido a Corte, como todo órgão com competência jurisdicional, entende que tem  o poder inerente de determinar a abrangência da sua própria competência; ademais, a Corte não pode abdicar desta prerrogativa, que, além disso é um dever imposto pela Convenção Americana, para exercer as suas funções, conforme o artigo 62.3 (competência da  competência).

No decorrer da análise da competência, entendeu  o Tribunal que, conforme o artigo  62.1 da Convenção, a aceitação da competência contenciosa da Corte equivale a cláusula pétrea, que não pode ser subtraída, ademais, o reconhecimento da competência  é essencial  à eficácia do mecanismo de proteção internacional dos Direitos Humanos. Ainda neste sentido, valendo-se das regras de interpretação das leis internacionais – o tratado de Viena no art. 31.1 – a Convenção Americana deve ser interpretada de boa-fé,  e no mais acrescenta – no artigo 44.1 -  a renúncia ao mecanismo de proteção de direitos só pode ser total.

Por fim, a Corte por unanimidade resolve e declara que é competente para conhecer o caso presente e que a retirada do reconhecimento  da competência contenciosa da Corte é inadmissível, e dá continuidade ao caso.

3.2. Sentença de Mérito, Reparação e Custas.

Seguindo com a análise e julgamento do caso as partes foram convocadas para apresentarem o rol de testemunhas, procedeu-se a audiência, a apresentação de alegações finais (somente por parte da Comissão), bem como a informação do reconhecimento da competência contenciosa pela República do Peru.

Urge lembrar que em novembro de 2000, a Corte por meio de resolução (fundada nas declarações das testemunhas e nas alegações finais que demonstraram a ameaça a direitos das vitimas) solicitou ao Estado do Peru a adoção das seguintes medidas provisionais para proteger a integridade física, psíquica e moral e o direito às garantias judiciais do Sr. Ivcher, sua esposa e filhos, e também à Rosário Lam Torres,  Julio Sotelo Casanova, José Arrieta Matos, Emílio Rodríguez Laraín e Fernando Viaña Villa (todos funcionários da empresa).

Ao final, do exame dos documentos, dos depoimentos das testemunhas, das informações periciais colhidas  e das manifestações da Comissão no caminhar do processo, a Corte considerou provados  os fatos alegados pela Comissão na peça inicial.

Em suas considerações previas sobre o mérito, a Corte frisou  que o Estado durante todo o tramite processual quedou-se revel (vez que não apresentou defesa) submetendo-se às regras da revelia constante no artigo 27 do  Regulamento da Corte.

Posteriormente, passou a analisar e elencar as violações dos Direitos Humanos, em prejuízo do Sr. Baruch Ivcher Bronstein:

a)     violação do artigo 20  - direito à nacionalidade:

Considerando que o direito à nacionalidade é um direito da pessoa humana, um estado natural do ser humano que confere fundamento para sua capacidade política e civil, a privação de tal direito de modo arbitrário, como é o caso em estudo, priva a pessoa de todos os direito civis e políticos.

A Corte ressalta que, ainda que a regulação da concessão de nacionalidade (vínculo jurídico político que liga uma pessoa a um Estado) seja um assunto de competência de cada Estado, o direito internacional impõe limites à discricionariedade destes visando proteger de modo integral os direitos humanos.

No caso em estudo restou provado que o Sr. Ivcher adquiriu sim a nacionalidade peruana em 1984, tão logo renunciou a nacionalidade israelense, fato que vinculou todo sua família a sociedade política e cultural peruana.

Quanto à perda do titulo de nacionalidade peruana, entendeu o Tribunal que, de acordo com Constituição peruana a única forma de perder a nacionalidade seria renunciando expressamente, o que não ocorreu. Pelo contrário, foi privado arbitrariamente da nacionalidade por um procedimento administrativo incompatível com a legislação interna, além de ter sido presidido por autoridade incompetente.

b)    violação do art. 8 – garantias judiciais:

A Corte entende que as garantias deste artigo estendem-se  tanto aos procedimentos ocorridos em vias judiciais como administrativas.

Deste modo, todo o procedimento corrido na Direção Geral de Migração e Naturalização padece de vício insanável, já que o Sr. Ivcher  de nada foi informado. Não soube  da desaparição do expediente de naturalização dos arquivos, do mesmo modo não foi comunicado das infrações a ele imputadas, e quando teve ciência dos procedimentos tão pouco permitiam a apresentação de testemunhas para construção de sua defesa. Ou seja,  o processo administrativo correu apenas na presença das autoridades públicas sem a possibilidade da vítima exercer o contraditório.

Quanto aos processos judiciais interpostos pelo Sr. Ivcher para resguardar seus direitos, estes não foram julgados por juízes competentes, imparciais, e independentes, vez que o Estado criou verdadeiros de tribunais de exceção.

c)     violação do artigo 21 – Direito à propriedade privada:

Neste ponto o Tribunal entende que, para que uma pessoa seja privada da propriedade de seus bens é fundamental que haja razoes de utilidade publica ou de interesse social, além do pagamento de uma justa indenização.

No caso sob exame, em nenhum momento ficou demonstrado na decisão judicial do Estado que a privação da propriedade estava fundada em razoes de utilidade publica ou interesse social, ao contrario, os fatos demonstram a intenção única de privar o Sr. Ivcher do controle  do canal televisivo.

Frisou, também, que não houve pagamento de previa indenização pela privação do uso e gozo dos bens.

d)    violação do artigo 25 – proteção judicial:

Refere-se ao direito de toda pessoa a um recurso fácil e rápido, ou qualquer outro recurso efetivo diante de juízes e tribunais competentes visando a proteção contra violação de direitos fundamentais.

 A Corte concluiu que o Sr. Ivcher interpôs diversos recursos judiciais perante os tribunais internos, tendo por escopo resguarda seu direito à cidadania e de propriedade, contudo, tais órgãos jurisdicionais não possuíam independência e imparcialidade, requisitos essenciais ao devido processo legal, para a obtenção de uma decisão adequada ao direito pleiteado.

No mais restou demonstrado que os recursos e ações interpostos pela vítima não tiveram uma duração razoável, atendendo aos requisitos de rapidez e facilidade.

e)     violação do artigo 13 – liberdade de pensamento e expressão:

Entendendo que a liberdade de expressão e pensamento possui uma dupla dimensão, uma individual (que ninguém seja impedido de manifestar seu pensamento) e outra social (que refere-se a um direito coletivo de receber qualquer informação e conhecer a expressão do pensamento alheio), que devem ser garantidas simultaneamente.

O caso em estudo, apresenta uma peculiaridade, a resolução que deixou sem efeito legal o título de nacionalidade do Sr. Ivcher, constitui-se em meio indireto de restrição da liberdade de expressão dele, bem como dos periodistas que trabalhavam no programa “Contrapunto”e que foram impedidos de ingressar na empresa televisiva, assim que a administração provisória da empresa foi passada aos acionistas minoritários.

Portanto, ao tirar o Sr. Ivcher do controle do Canal 2, bem como excluir os periodistas do programa “Contrapunto”, o Estado  restringiu o direito individual destas pessoas de circular notícias, idéias e opiniões, mas afetou também o direito de todos os peruanos de receberem informações, limitando assim a liberdade de cada um de desenvolver suas opiniões políticas, bem como o desenvolvimento pleno de uma sociedade democrática.

f)     Descumprimento do artigo 1.1 – obrigação de respeitar os direitos:

De acordo com as normas jurídicas de responsabilidade internacional do Estado, que também se aplicam ao do sistema americano de proteção dos Direitos Humanos, a ação ou omissão de qualquer autoridade publica, independente de sua hierarquia,  constitui um fato imputável ao Estado que firmou tal compromisso ao assinar e ratificar a Convenção Americana.

E, por fim , prescreveu, nos pontos resolutivos, os seguintes deveres os deveres impostos ao Estado:

i)               Investigar os fatos que geraram as violações estabelecidas na sentença, para identificar e punir os responsáveis;

ii)              O Estado facilitar as condições para que o Sr. Ivcher possa realizar os atos necessários para recuperar o uso e gozo de seus direitos  como acionista majoritário da Companhia Latinoamericana de Radiodifução S.A, como era até 01/08/97;

iii)            Cabe à jurisdição interna competente analisar as ações relativas ao ressarcimento dos dividendos e demais percepções pecuniárias correspondentes a posição de acionista majoritário e funcionário da Companhia;

iv)             Deve o Estado pagar ao Sr. Ivcher U$ 20.000,00, a título de danos morais;

v)             Deve o Estado ressarcir as custas e os gastos processuais  gerados pela jurisdição interna e internacional, no total de U$ 50.000,00.

O Estado, tentando se esquivar do pagamento dos danos materiais, notificou o Sr. Ivcher que os únicos pagamentos indenizatórios devidos são os referentes  ao dano moral e as custas e gastos judiciais, e nada mais. Sendo assim, em maio de 2001, a Comissão e o Sr. Ivcher interpuseram perante a Corte um Pedido de Interpretação de Sentença (de acordo com o artigo 69 do Regulamento da Corte e artigo 67 da Convenção Americana), solicitando que o órgão jurisdicional internacional para que aclare sobre as obrigações reparatórias  e principalmente  o procedimento  que deve ser seguido para satisfazer a justa reparação. Após ouvir as manifestações do Estado peruano, a Corte  decidiu que, no que toca a apuração dos danos materiais, a jurisdição competente  é a interna (a do Peru), assim, as ações devem ser submetidas nos termos da legislação peruana.

3.3.  Supervisão de Cumprimento de Sentença

Para acompanhar a execução da sentença, o próprio órgão jurisdicional interamericano, procedeu a quatro procedimentos de Supervisão  de Cumprimento de Sentença (como previsto no artigo 69, do Regulamento da Corte).

O primeiro, realizado em 21 de setembro de 2005, a Corte constatou  que todos os pontos resolutivos da sentença restavam ser cumpridos, assim manteve o procedimento.

A segunda supervisão de cumprimento de sentença foi realizada em fevereiro de 2009, face ao silencio do Estado quanto a informação do cumprimento dos atos resolutivos, a Corte convocou audiência para lograr obter informações, que realizou-se em março de 2009 .

Em novembro do mesmo ano de 2009, a Corte  declarou o cumprimento apenas dos pontos resolutivos que previam o pagamento de U$ 20.000,00 ao Sr. Ivcher a título de danos morais e também o ressarcimento das custas e gastos  processuais gerados pela jurisdição interna e internacional, no total de U$ 50.000,00, quedando a cumprir os deveres de investigação e punição dos responsáveis na jurisdição interna das violações reconhecidas na sentença.

No mês de agosto de 2010, no quarto procedimento de supervisão de cumprimento de sentença, a Corte declarou cumprido  o ponto resolutivo que previa a facilitação  das condições  para que o Sr. Ivcher pudesse realizar os atos necessários  para recuperar o uso e o gozo de seus direitos como acionista majoritário da “Compañia Latinoamericana de Radiodifusión S.A”; restando pendente  de cumprimento a determinação de investigação das violações, mantendo em aberto o procedimento de cumprimento de sentença.

 

4)    Meios indiretos de violação ao direito à liberdade de expressão – a importância do contexto para a determinação.

 

Uma das lições mais relevantes no caso em estudo é a identificação de meios indiretos de afronta a direitos fundamentais.

Embora a Convenção Americana de Direitos Humanos admita em seu artigo 13.3, que o direito pode ser violado por meio indireta, a caracterização desta via como violatória não é tão simples.

O caso Ivcher, assim, aparece no cenário jurisprudencial interamericano como um marco, já que até então a Corte não havia enfrentado um caso concreto em que tivesse que determinar quando certas ações do Estado poderiam ser classificadas  como meio indireto de violação.

Como bem destacou Eduardo A. Bertoni (2011, p. 358) o Tribunal Interamericano afirma que ao avaliar uma suposta restrição ou limitação à liberdade de expressão, o Tribunal não deve sujeitar-se unicamente ao estudo do ato em questão,  antes deve igualmente examinar  tais atos à luz dos fatos em sua totalidade, incluindo as circunstâncias  e o contexto em que foram ocorridos.

Assim, a partir do caso em  estudo que a Corte Interamericana de Direitos Humanos passou a interpretar o conteúdo do art. 13. 3 da Convenção Americana[2] como rol exemplificativo de vias indiretas de afronta à liberdade de expressão.

5)    Conclusões:

Das discussões fático jurídicas do Caso em estudo cumpre destacar àquelas que, segundo Sergio García Ramízes e Alejandra Gonza (2007), ganharam destaque na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

“A resolução que deixa sem efeito o titulo de nacionalidade  de uma pessoa que expressa sua opinião através dos meios de comunicação social constitui um meio indireto de restringir a liberdade de expressão” (p. 43)

“Ao tirar uma pessoa do controle do canal de televisão  no qual difunde seu pensamento, e excluir os jornalistas do programa correspondente, o Estado não só restringiu o direito destas pessoas circularem notícias, idéias e opiniões, como também afetou  o direito de todas as pessoas a receber informação, limitando assim sua liberdade para exercer opções políticas e desenvolver-se plenamente em uma sociedade democrática” (p. 44).

Ainda no que toca às reparações, as sentenças da Corte Interamericana orientam-se no sentido de evitar a repetição das condutas violatorias, bem como a satisfação jurídica ou moral das vítimas. É no sentido de garantir o gozo do direito infringido que os citados autores destacam que:

“No que concerne ao artigo 13 da Convenção, a Corte considera que o Estado deve garantir à vítima o direito de buscar, investigar e difundir informações e idéias  através de canal de televisão que esteve sob sua propriedade e controle” (p. 57).

6)    Referencias bibliográficas

BERTONI, Eduardo A. Jurisprudencia interamericana sobre libertad de expressión: acances y desafios. In. Ordoñez, Maria Paz Ávila (et alli). Libertad de expresión: debates, alcances y nueva agenda. 1ª ed. Organização das Nações Unidas: Quito, 2011.

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CIDH. Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (2009). Disponível em http://www.oas.org/pt/cidh/mandato/Basicos/reglamentoCIDH.asp. Acesso em 07/03/2013.

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RAMÍREZ, Sergio García; Gonzaga, Alejandra. La libertad de expresión en la jurisprudência de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. 1ª ed. Corte Americana de Derechos Humanos e Comissão Interamericana de Derechos Humanos: México, 2007.



[1] Esta é uma definição trazida por Sergio Garcia Ramirez e Alejandra Gonza (2007, p. 42), a partir das manifestações da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o tema

[2] art. 13.3 - “ Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de freqüências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões”.