Carta Para Minha Mãe

Por claudia flores | 25/02/2008 | Crônicas

A carta que nunca mandei

Outro dia encontrei com um grande amigo em um pub. Bebemos dois copos de vinho e ele me falou sobre sua mãe:mulher forte, de personalidade marcante
que lia em voz alta Goethe no original, na sala de casa. E contou como ela se mostrava tímida a um toque, a um simples afago, a um beijo.


Eu disse a ele que tenho saudade do carinho tátil que a minha mãe não soube me dar e do carinho que eu não aprendi a transmitir a
ela.E por alguns instantes me vi pensando na força dessa imagem, na grandeza dessa frase. E também senti dor por mim. E por ela.E estas palavras aqui não são de cobrança ou de incompreensão. Hoje vejo melhor tanta coisa e as aceito de um jeito diferente. Mas rejeito em mim o fato de não conseguir amar incondicionalmente e de não expor esse sentimento. " É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã..." ps.A conversa me inspirou a escrever esta carta.

Mãe,

Quando me lembro da minha infância, numa das cenas mais recorrentes estavas me olhando, como se observasses algo dentro de mim. Me recordo com
saudade das tardes em que eu imaginava que pudéssemos brincar juntas lá na casa da vovó e dos discos de vinil que poderíamos ter escutado na "eletrola". Aprendi a gostar de Frank Sinatra-deves ter observado – e a querer entender a musicalidade do silêncio que pairava, às vezes entre nós duas e que eram frases ditas e ouvidas com o coração, principalmente quando brigávamos porque tu querias sempre que eu fizesse aquilo que determinavas e eu não te compreendia. Hoje eu queria poder falar, através desta carta ,que endereço a ti, à minha mãe; dizer que escolhi ser professora porque lembro de ti,, saindo toda bonita pra dar aula, faceira no fusca branco, comprado com a conquista do próprio salário. Todo dia,a toda hora e depois de tantas batalhas e quedas e tropeços, sei que faz parte de mim essa lembrança.Queria dizer , te olhando nos olhos, que me faltou o abraço, mas foi com ou sem ele que
me tornei forte o bastante para não sentir o peso da vida adulta que foi chegando tão rápido e tão sorrateira. Lembro de querer me ver sendo acariciada pela mão de mãe. Pra mim, tu eras como uma irmã de mães diferentes.Quando falo de infância para os meus amigos, tenho um orgulho danado daquela época e até das nossas broncas uma com a outra. Nossas conversas, embora sempre acabassem em algum tipo de ofensa, foram
importantes na formação do meu caráter, da minha postura diante da vida, da minha curiosidade pelo novo e o que hoje eu chamo de ensaios do SER nada mais é do que uma prévia daquilo que nos tornamos mais tard.. Minha mãe,tu poderias estar lendo esta carta, se ainda fosses viva. Saberias que foi no exercício de perceber e reconhecer nossas diferenças ( as minhas e as tuas) ,que sei que por causa delas me tornei quem eu sou. E tenho um orgulho danado de mim. .A cada vitória conquistada, penso que parte tua está aqui comigo .Não brincamos muito, não trocamos muitas palavras, aos olhos do corpo, é bem verdade, mas creio que aos olhos da alma estamos interligadas. Almas ora inquietas, estúpidas, chorosas, carentes. Almas ora felizes, risonhas, amáveis e afetuosas. Ao radiografar meus pensamentos vejo que o conviver entre o bom e o ruim ao mesmo tempo, foi o que me fez crescer. Tenho a sensação de
que o mundo é pequeno em vista do espírito de luta que existe em mim. Acho que já nasci predisposta a fazer deste mundo um lugar melhor. E conviver com todos aqueles anos me deu garra para ser livre. Me lembro de um fragmento de conversa na qual dizias que o mundo não era aquilo que eu esperava. Na hora, achava aquele papo de uma caretice sem tamanho. Mas agora percebo que estavas certa. O mundo aqui fora é diferente. Mas tratei de torná-lo divertido a meu serviço. Todas as broncas, crises, cobranças e o medo de não atender `as expectativas, me fez querer me tornar uma mulher íntegra, honesta, competente e intensa. Para chamar atenção decidi não usar drogas ou me rebelar; tratei de fazer sempre o melhor, por mais simples que fosse a tarefa. As pedras existem. Mas para quem anda descalça pela vida qualquer obstáculo se torna companheiro de jornada. Através desta carta eu penso em dizer um "Eu te amo" sincero em meio a banalização do amor e agradecer por estar viva e ainda estar aí pra sentir saudade de quem amo .Eu venci! Nós vencemos!Que bom...

Um beijo,
Cacá