Carrinhos de rolimã

Por Romano Dazzi | 01/06/2009 | Crônicas

185 - CARRINHOS DE ROLIMÃ

 

Empurrando lentamente o seu novo carrinho de rolimãs,  Paulinho subiu, não sem esforço, a íngreme encosta do Morro da Ana.

Tinha apenas quinze anos e apesar de baixinho e atarracado, era ágil e rápido nos movimentos e tinha desenvolvido uma habilidade manual incomum.

Era reconhecido, até em bairros distantes, como um especialista. Já tinha construído mais de trinta desses pequenos bólidos, cujo desempenho depende muito mais da estrutura e dos componentes,  que   da  habilidade do piloto.

A tarde estava quente, como sempre; era pleno verão e o asfalto chegava a desprender uma tênue camada de vapor, último resíduo da umidade da noite.

 A pista de um quilômetro, com oito metros de largura,  recém asfaltada, ideal para as competições, tinha sido abandonada incompleta pela construtora; não tinha conexão com lugar nenhum e tinha sido  imediatamente ocupada pelos garotos.

Chegando na última curva,  Paulinho parou ofegante e sentou no carrinho.

Pensou que  construiria  o carrinho seguinte de alumínio,  e não mais de ferro. Seria muito mais leve e não custaria tanto leva-lo até o topo da pista.  

Enquanto retomava o fôlego, ficou pensando na sua equipe: o Carlão, o Zeca, o Beto, a Olímpia. Se não existisse a Olímpia – pensou -  a equipe também não existiria. Ela era corajosa e atrevida; não tinha papas na língua e com uma maneira de pensar direta e segura, convencia todos a andarem na linha. Não fosse por ela, o Beto e o Carlão, ambos durões e teimosos, já teriam chegado a trocar tapas.

Ela sempre sabia onde estava a razão. Falava calmamente e distribuía a justiça. O seu julgamento punha fim a qualquer mal entendido, a qualquer bate-boca.

Paulinho descobrira a importância da presença feminina na equipe; e pensava que todas as equipes deveriam ter uma mulher para fazer as coisas correrem direito.

Mas depois, vendo as tantas coleguinhas ocas da escola, percebeu que a teoria dele só funcionaria se todas elas fossem como a Olímpia...

Talvez não tenha percebido naquela hora, mas estava se apaixonando por ela.

E esta era uma coisa muito gostosa, que nunca tinha experimentado antes, e que o fazia sentir-se bem. 

Paulinho estava sozinho porque tinha acabado de montar aquele carrinho especial, com o qual correria no domingo seguinte. Não queria dar vexame e queria estudar melhor os defeitos, correndo sozinho.

Tinha montado um rolamento de esferas blindado, com as pistas protegidas, que reduziam a entrada de poeira e de pedrinhas durante a carreira.

Aliás, o carrinho todo  tinha uma concepção diferente. Era uma obra prima.

 Logo estariam chegando os colegas; e até alguns “inimigos” que correriam no domingo contra ele. Devia apressar-se. 

Empurrou o carrinho pulou nele e soltou ao mesmo tempo o freio e o seu formidável grito de guerra, “O-liiiim-piaaaaa!!!” ; os rolamentos bem lubrificados eliminavam o atrito, o peso do garoto distribuía-se de maneira equilibrada; mais alguns empurrões com as costas, e a velocidade aumentou.

Estava correndo, com o corpo a dez centímetros do chão, as pernas duras, bem esticadas para a frente, os pés firmes no manche, para evitar qualquer desvio involuntário. Os braços estavam caídos ao longo do corpo, com as mãos agarrando as alavancas dos freios. Parecia-lhe estar voando. Era assim que ele gostava; ele e a máquina, conhecendo-se, experimentando-se , testando seus limites.

A primeira curva logo apareceu, Paulinho deu um golpe firme de esquerda no manche, depois foi fazendo rápidos e curtos ajustes; direção perfeita, a trajetória ideal que ele sabia tomar por instinto, mesmo sem nunca tê-la estudado -  a única! 

Passou como uma flecha pelo “Posto Dois”, uma posição estratégica que permitia ver o desempenho e os erros dos corredores; mais um trecho reto, em forte declive e uma curva a direita, não muito acentuada. 

O perigo vinha da velocidade acumulada naqueles cem metros anteriores de descida.

Manobrou com segurança, jogou novamente o corpo para a frente e ganhou o terceiro estágio.

Já estava na metade da  descida, quando sentiu que alguma coisa tinha cedido. A tábua de controle de pé estava rachada. Não havia como continuar.

Reduziu a velocidade acionando os freios – dois mourões aparafusados aos lados do chassis – e o carrinho estancou em poucos metros.

Ficou decepcionado por não ter sabido calcular melhor o efeito da vibração sobre a tábua principal, mas  estava contente que isso tivesse acontecido no teste, enquanto estava sozinho, e não no domingo, durante a corrida, diante de todos.

Suspendeu o carrinho, amarrou-o com as cintas especiais e voltou para casa.

Trabalhou febrilmente na garagem, cortando, furando, lixando, ajustando – mas em lugar da madeira, usou uma grande peça de plástico duro, descoberta num ferro-velho.

Esta era a vantagem do Paulinho. A capacidade de adaptar, de criar. Era um gênio!

 

E chega  finalmente o domingo. As quatro equipes estão afiadas, treinadíssimas.

Prontas para o grande desafio.     

O Zeca e o Carlão acabaram de traçar as linhas de partida e de chegada, estão varrendo cuidadosamente o percurso, assinalando com cal os pontos perigosos.  Tudo está bem.

Um grande relógio de parede, recuperado por milagre, está pendurado em um poste, assinalando  a hora exata da partida; no meio e no fim do percurso, o Beto colocou caixas de primeiros socorros.     

Durante a tarde anterior, sentados em conselho de guerra, os cinco amigos comentaram as possíveis intenções dos concorrentes.  

Sair antes do sinal, tomando uma posição difícil de superar;

emparelhar-se, tentando jogar o competidor para fora da pista;

e finalmente, sabotar .os adversários, jogando areia nos rolamentos, ou soltando os parafusos dos mourões  de freio. – como é de costume dos patifes.

A equipe Olímpia, porém, está a postos, atenta, de olhos bem abertos.  

Movidas pelo espírito de imitação, as outras equipes batizaram-se também com nomes de meninas: Elisabete, Marta, Aparecida. 

Mas nenhum nome soa tão bonito como Olímpia.  

E principalmente, nenhum desses nomes corresponde a uma menina de verdade.  São só de imitação...

O público é bem maior do que o esperado. Zeca, sempre empreendedor, montou uma barraquinha com duas caixas de laranjas e uma tabua e vende suco de manga, balas de hortelã, biscoitos de polvilho.     

Finalmente os concorrentes estão prontos. Capacetes brilhantes, luvas grossas, tornozeleiras e proteções presas com velcro.

A equipe Marta, a dos meninos mais ricos, todos vestindo macacão azul, mostra com orgulho o carrinho pintado de amarelo.  

A equipe Elisabete não tem chance. O carrinho deles é grande, pesado, com enormes rolamentos de caminhão.

E finalmente, a equipe Aparecida plantou uma bandeira no carrinho, uma novidade, que o faz parecer com um daqueles carrinhos elétricos de parque de diversões. 

Os carrinhos estão alinhados na linha de partida;

Os concorrentes  cumprimentam-se, ficam atrás dos carros, estão prontos..

A temperatura sobe, os corações aceleram, a ansiedade faz roer as unhas.

O  percurso tem um quilômetro,  uma única, longa ladeira, com quatro curvas.

Ao sinal, os quatro pilotos devem empurram os carrinhos, com toda a força, até alcançar velocidade, antes de subir neles. 

Foi dado o sinal. E inesperadamente, todos ouvem o longo grito de guerra do Paulinho: “Oooo....liiimmm...piiiaaaaa!!!!”  É uma surpresa geral!  

Olímpia, a verdadeira, encolhe-se, com o rostinho enrubescido, pela vergonha  - ou talvez, por um pouco de vaidade.

Os garotos, em volta, não prestam muita atenção: incentivam, gritam, torcem.

Os corredores empurram usando toda a força. 

O Luizinho, piloto da equipe Aparecida, já subiu no carrinho; a velocidade dele diminui, ele fica para trás, está em último lugar,  torcendo o corpo, fazendo mil equilibrismos para acelerar. A bandeirinha fica triste, caída, mas o Luizinho não perde as esperanças. Continua suas micagens, seu jogo de cintura, ajudando a inércia e ainda consegue reduzir de alguns metros a distância dos outros. 

Em compensação o Alexandre, piloto da equipe Marta, demorou muito para subir; quando tentou, o carrinho escapou  e ele acabou ficando sentado no chão, sem jeito. Os gritos se multiplicam; o carrinho vazio é um perigo  parece estar voando,  ultrapassa  todos, avança, está em primeiro lugar, já próximo da primeira curva..... e é na curva que ele fica; bate forte num tronco, capota e se despedaça.   

Só sobram, na frente, o Rogério, da equipe Elisabete e  Paulinho, com o seu carro aerodinâmico.

Todos sabem que ele perdeu o carrinho apenas três dias antes; e que, longe de desistir, inventou e criou..

Ele transformou uma derrota em vitória; mesmo que não chegue em primeiro lugar, a vitória lhe pertence, pela persistência, pela criatividade, pelo esforço.

Os dois carrinhos correm lado a lado.

Estão a sessenta quilômetros por hora,  no ponto de maior perigo, nas duas curvas finais; basta que um dos dois perca a direção, e com certeza ocorrerá um acidente.

Os assistentes, afoitos,  despencam pela ladeira, tentando acompanhar a chegada, continuando a gritar a incentivar .

De repente, não dá para entender como, o Rogério dá uma esterçada violenta e se aproxima perigosamente do carro do Paulinho.  Está chegando, está próximo, dois segundos, dez centímetros...Vão bater....vão bater!... bateram.!!! 

Rolam pela grama, os carrinhos voam por cima das suas cabeças, esfacelam-se  contra as pedras, uns cinqüenta metros abaixo.

Rogério se levanta, trôpego, tonto. Paulinho não se mexe. Está estendido no chão, o nariz sangrando, sem sentidos.

Todos vêm chegando,  correndo, afogueados, assustados. 

Olímpia, a dona da equipe,  chega também, arfando, corada.

Ao ver o Paulinho desacordado, desespera-se. Consegue finalmente chegar perto dele e sem pensar, sem hesitar, lhe dá um beijo no rosto; um longo, delicado, carinhoso beijo.  Ela, que nunca tinha beijado ninguém  fora o pai e a mãe. 

Ao recebê-lo, Paulinho pisca os olhos, e lentamente parece recuperar a vida.

Sorri, fica quieto, descansa.

Seu coração está bem, a respiração volta aos poucos ao normal.

Ainda deitado, incrédulo, pergunta: “Você me beijou?”.

 

Mas a corrida não pára, só porque alguém saiu da luta; lá no fundo da descida,  Luizinho, o último colocado, acena com gestos amplos. Ele ganhou !

 

Não é nada importante, uma corrida de carrinhos de rolimãs. É até boba: não tem motores, ruídos ensurdecedores, mecânicos, troca de pneus  - aliás, nem pneus tem.  Só tem espírito, competição, amizade .

E disso, sempre podemos aprender alguma coisa,