Cara Mamãe
Por Romano Dazzi | 19/12/2009 | Crônicas286 - Cara Mamãe,
Parece que foi ontem.
Você estava lá no cais, indefesa e pequenina como nunca.
O grande navio que ia me levar embora, vibrava, impaciente.
Eu ficava apoiado na amurada, quase perdido; era somente um feixe de impressões, vazio, incapaz de pensar, ou de sentir, esperando o desfecho, a partida.
Três longos apitos, anunciando a despedida final, sacudiram minha letargia.
A ponta da longa amarra que nos ligava ao cais, caiu na água e só então me dei conta de como era grave, definitivo, o passo que acabava de dar.
Jovem, sonhador, voltado para o futuro, até aquele momento pouco havia olhado para o mundo que estava deixando para trás.
Você estava lá, no cais, com o Papai, mascarando suas emoções, escondendo atrás de seu sorriso doce, a tristeza infinita por me ver partir.
Para nós, homens, tudo é mais fácil; não nos permitimos lágrimas, basta um abraço apertado e tudo está dito e ouvido.
Tudo?
Poucas palavras, muitos pensamentos, uma enxurrada de sentimentos confusos, profundos, conflitantes; tantos, que dariam para escrever um livro.
Com você era diferente: a nossa convivência, só percebi depois, era um livro também.
Você tinha começado a escrevê-lo comigo quando nasci, e chegou naquele dia a um capítulo estranho, a um ponto sem retorno, a um desfecho inesperado.
Nada seria mais como antes, a partir daquele momento.
A chuva fina, apertada, insistente, logo fez sua imagem esmaecer e sumir.
Ou talvez fossem apenas minhas lágrimas, finalmente desabando livres, sem controle.
Sei que você também chorava. E isso, de certa maneira, me confortava.
Era um laço forte, o que nos unia; uma convivência de vinte anos, durante os quais você soube, entendeu e justificou tudo o que eu era, tudo o que me andava na alma.
Ninguém me compreendia melhor que você.
Agora renunciaríamos a esta conexão íntima e profunda e eu não sabia como iria sobreviver.
Imagino agora, se eu fosse você, com que sacrifício deixaria meu filho partir assim, para o desconhecido; deixando de receber suas confidências diárias, de orientá-lo, de ajudá-lo a definir o dia seguinte, de confortá-lo, de vibrar com ele, de apontar seus erros, de brigar valentemente contra suas teimosias.
O tempo todo fazia-me companhia, contando-me fábulas, ensinando-me vida.
Só agora entendo que esta sua renuncia foi mais um profundo ato de amor e de desprendimento.
O tempo passou.
Tornei-me finalmente um homem, ganhei e perdi; acertei e errei; fui bom e malvado, tive alegrias e tristezas, pouco a pouco me conformando em aceitar o mundo como ele é e fazendo com que ele me aceitasse.
Não tive chance de ver seus cabelos embranquecendo, seu rosto refletindo o passar inexorável do tempo.
Sua imagem transformou-se aos poucos numa bruma, em flocos de uma neblina inconsistente, feita de lembranças, que é tudo o que me resta de você.
Não tive chance de lhe repetir quanto a amava, quanta falta sentia, quanto gostaria de estar perto de você, amparando-a, dedicando-lhe os meus dias, assim como você tinha feito comigo.
Nunca conseguiria lhe dar tanto amor quanto recebi, mas seria bastante para alegrá-la, tenho certeza.
Escrevo-lhe agora, Mamãe, porque só neste ponto de minha vida entendi tudo isso.
E peço que me perdoe, se não estive presente, como poderia, como deveria.
Agora é tarde.
Escurece.
Peço-lhe ainda um favor: quero que me dê mais um, um só, daqueles beijos de boa noite, que me alimentaram pela vida toda e que tanta falta me fazem.
Durma em paz, Mamãe.
Seu filho