Cálice
Por Beatrice Cavalcante | 30/03/2019 | Contos“Cale-se, não diga uma só palavra. Guarde para si suas desculpas, você se justifica demais. ”
Eis aqui um verso que escuto com muito mais frequência do que gostaria, normalmente, a visão que tenho enquanto ouço isso, são os pés que quem o diz. Engraçado, mal me recordo de seu rosto, lembro apenas de seus sapatos pretos, meias divertidas e uma certa raiva na voz. Juro que não estava me justificando, as palavras apenas saem da minha boca, tento paga-las com as mãos, mas elas escorregam entre meus dedos e quando me dou conta, já estou vomitando tudo isso que você diz ser justificativas. Normalmente eu apenas abaixo minha cabeça e penso “cale-se”.
Quem se importa com sua versão da história? Quem quer ouvir suas dores? Agora é sua vez de prestar atenção, sua vez de me deixar falar, mesmo que você já tenha ouvido, mesmo que o combinado era esquecermos esse passado. “A vida começa agora”, desde que minha mente não me lembre do antes, porque se ela o fizer, ai você terá que abaixar a cabeça, levantar os ouvidos e ficar quieta.
Coloque seus pensamentos em modo avião, aprecie os sapatos pretos e espere, uma hora tudo vai ficar bem. Ligue seus pensamentos na hora certa, ou seja, apenas quando for para ouvir coisas boas vindo dele, deixe que as coisas ruins os sapatos pretos pensam por você. Sua função é ouvir e aceitar.
Deite-se, está na hora de dormir, não importa se você está sem sono, já ouviu as minhas dores, não se justifique, não quero saber se está sem sono porque sua cabeça quer responder aos meus ataques. Enxugue suas lágrimas e vá deitar.
Eu ouvia tudo isso ainda de cabeça baixa, tentava me concentrar e focar nas meias, a essa altura já sabia de cor todo o guarda-roupa de meias, mas eram tantas lágrimas em meus olhos que eu não era capaz nem de contas quantas listras tinha, ou quantas cores. Queria dizer que eu também estava sofrendo, que também convivia com dores e feridas que nunca irão cicatrizar, mas algo me dizia “foque nas meias, cale-se”. Eu sabia que não importava o que eu falasse, a interpretação dos sapatos seria sempre a mesma, “você está se justificando novamente”.
Já tentei silenciar minha mente, talvez assim as palavras não sairiam pela minha boca, já troquei pensamentos por lágrimas, não funcionou, nada funciona. É inevitável não voltar para os mesmos pensamentos, quero tanto vomitar essas palavras. Junto com o rastro deixado em meu rosto, saiam minhas dores, elas são consumidas por muito tempo de silencio e quando podem, fogem.
Um dia então, encontrei a forma de silenciar tudo, não aguentava mais. E nesse dia, não havia sapatos, meias e nem vozes. Só conseguia sentir o frio do ferro em minha cabeça, uma lagrima seguindo seu rumo parou no meu meio sorriso, estranhamento eu estava feliz, estou prestes a colocar meus pensamentos em modo avião. O cheiro da pólvora é até agradável... depois disso, silencio, pela primeira vez não sentia vontade de falar sobre a dor, porque ela não existia mais, finalmente encontrei paz, será que era isso que ele queria dizer com “cale-se”?