CAEIRO: UM SILENCIAR NA “AUSÊNCIA DE SIGNIFICAÇÃO EM TODAS AS COISAS”

Por Lilian Silva Salles | 12/11/2012 | Literatura

CAEIRO: O POETA DO SILÊNCIO 

 A poesia é o espaço onde tudo é possível;

 a “palavra é uma ponte através da qual o

 homem tenta superar a distância que o

separa da realidade exterior.

                                (Octavio Paz, 1982, p.43)

 

 

Voar no pensamento e nas idéias de Fernando Pessoa, que no “só espaço de si-próprio” manifesta a possessão de uma voz poética, cuja vivência íntima da poesia rompe na luta de uma tradução verbal dela, requer uma observação sensível e peculiar de um mundo inquietante, ilimitado e desconhecido. Engendra-se neste escrito, uma pequena reflexão sobre  o heterônimo Alberto Caeiro –  poeta-texto considerado  o mestre dos heterônimos e do próprio ortônimo, por visar à pureza da palavra poética, para retornar a um espaço anterior à cisão entre o ser e as coisas.

O ponto nodal configura-se em mostrar Caeirocomo o poeta da experiência sensorial: trazer à baila a  tessitura que erige Alberto Caeiro não como um simples poeta da natureza, mas como o heterônimo pessoano que busca entrar em contato com o mundo e a natureza por meio das sensações. Vale dizer que Caeiro em sua poesia confecciona o “discurso do não- pensar”, ou seja, valoriza e enfatiza a importância de silenciar a mente para entrar em sintonia direta com a realidade:

“Acho tão natural que não se pense

Que me ponho a rir às vezes, sozinho,”

“Que pensará isto de aquilo ?

Nada pensa nada

Terá a Terra consciência das pedras e plantas que tem?

Se ela a tiver, que a tenha...

Que me importa isso a mim?

Se eu pensasse nessas cousas,

Deixaria de ver as árvores e as plantas

E deixava de ver a Terra,

Para ver só os meus pensamentos...

Entristecia e ficava às escuras.

E assim, sem pensar tenho a Terra e o Céu.”

                           (O EU profundo e os outros eus, 2001, p.158)

                                 

Nota-se que os “media”  expressivos que perfilam o plano poético, encontram-se explícitos desde a arquitetura do poema, à medida que o texto-caeiro afirma a necessidade de romper a barreira interposta entre o homem e a realidade, buscando aprender a ver a natureza com olhos despojados: sem signo, sem pensamento, lembranças ou linguagem.

Observa-se nos poemas de Caeiro uma “prosa de versos” (1), constituído pelo uso da linguagem coloquial cotidiana, na qual o prosaico do discurso transgride a tradição poética, desprestigiando e anulando elementos poéticos como: o  encadeamento rítmico-sonoro e as recorrências sintático-semântica. Por essa via, entende-se, que o discurso caeiriano é “apenas a substituição da norma poética  pela norma da linguagem coloquial” (2).

De fato, o poema-caeiro tem um corpus autônomo, cujos traços elucidam a percepção de um objetivo maior: “a reflexão sobre o problema da poesia e da linguagem” (3)  Veja os versos:

“Por mim, escrevo a prosa dos meus versos

E fico contente.

Porque sei que compreendo a Natureza por fora;

E não a compreendo por dentro

Porque a Natureza não tem dentro,

Senão não era a Natureza.” 

                           (O EU profundo e os outros eus, 2001, p.155)

A guisa de maior entendimento observe a seguinte estrofe:

“Tenho escrito bastantes poemas

Hei de escrever muitos mais, naturalmente

Cada poema meu diz isto,

E todos os meus poemas são diferentes,

Porque cada cousa que há é uma maneira de dizer isto”

                           (O EU profundo e os outros eus, 2001, p.173)

Ao ler os versos, percebe-se, que Caeiro busca uma nova linguagem poética por meio da linearidade e da referencialidade do discurso. A sensação apriori é de espanto, o código lingüístico  de seqüência é mantido, porém desaparece a lógica do senso comum, pois o texto-caeiro tenta materializar-se e tornar-se sensível na própria linguagem.

No entanto, o ideal almejado por Caeiro é o homem sem linguagem, sem escritura, sem pensamento, puro corpo e alma, diretamente integrados em contato estreito com o cosmo, daí o fato de Caeiro investir contra a tradição poética, pois é a linguagem a grande responsável  pelo abismo entre o homem e o ser. Neste caso, se o homem eliminasse o signo, por utopia do absurdo, ele seria pura  sensação – entraria em estado de percepção extra-sensorial e não teria mais controle sobre a mente e o corpo. Caeiro propõe isso poeticamente ao sugerir o silêncio total “Pensar incomoda como andar à chuva” (4).

“Quando me sento a escrever versos

Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,

Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,

Sinto um cajado nas mãos

E vejo um recorte de mim

No cimo dum outeiro,

Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias,

Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho.

E sorrindo vagamente como quem não compreende o que diz

E quer fingir que compreende.”

                           (O EU profundo e os outros eus, 2001, p.136)

Veja que o poeta-caeiro escreve seus versos “num papel que está no meu pensamento”, onde a “idéia que é rebanho” se corporifica como imagem de alguma coisa do real: “... olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho”. Ao fazer isto, o poeta pensa na presença das coisas, e acaba por provocar uma identidade final entre o mundo interior e o mundo exterior. Corporificando as idéias e a alma. Caeiro visa à total objetividade, ou atingir a  coisidade das coisas, negando-lhes (como nega a si próprio) qualquer transcendência: “O único sentido íntimo das coisas/ É elas não terem sentido íntimo nenhum” (5).

Indubitavelmente, este heterônimo pessoano recusa a linguagem e afirma que seus pensamentos e idéias são puras sensações “Sinto um cajado nas mãos/ E vejo um recorte de mim”, onde a natureza aparece não como um mero clichê, pois nem é entendida como o local ameno – estético cenário para a representação de uma individualidade – e nem mesmo como um refúgio do homem entediado das cidades. Mas que isto, constitui espaço vivo e original, espaço da integração entre o homem e o cosmo.

Dessa forma, por meio da linguagem, Alberto Caeiro articula o discurso da não- linguagem, desejando conduzir o leitor a entrar em contato direto, corpo-a-corpo com a natureza, para que este possa atingir o real:

“Creio no mundo como um malmequer,

Porque o vejo. Mas não penso nele

Porque pensar é não compreender...

O mundo não se faz para pensarmos nele

(Pensar é estar doente dos olhos)

Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...”

                           (O EU profundo e os outros eus, 2001, p.137)

É lícito dizer, que o texto caeiriano provoca uma contradição absoluta ao sugerir poeticamente o silêncio total do pensamento “Creio no mundo com um malmequer/ Porque o vejo. Mas não penso nele”. Propondo o não-pensar, o poeta acredita  ser esta a única forma possível de  chegar a verdade. Sendo assim, a partir  do momento que o ser humano produz reflexões e pensamentos, automaticamente ele cria uma  máscara-verbal e distancia-se da verdade, pois a linguagem é a maior máscara do homem. Sem dúvida, o silenciamento da mente despe a humanidade de qualquer máscara, colocando-a frente-a-frente com a natureza.

Nuança importante de ressaltar, é que o poeta também se insurge contra sistemas religiosos, filosóficos, contra atitudes sentimentais e concepções poéticas que, a seu ver, empreendem a tarefa do mascaramento do real. Isto é, os sistemas e concepções visam substituir o real, montando um mundo de segunda visão. Essa remontagem do real faz que o homem se relacione com uma simulação e não com o modelo primitivo. “Em termos platônicos, seria o equivalente à cegueira do homem na caverna, que confunde as sombras projetadas sobre a parede com os objetos reais” (6).

Partindo desse pressuposto, a atitude religiosa em Caeiro é a não aceitação da idéia de divindade, porque a visão da natureza implica não só interpretação do real, mas também uma cisão causada entre o  mundo imanente e o transcendente, sendo este invisível e aquele, visível:

“Pensar em Deus é desobedecer a Deus,

Porque Deus quis que o não conhecêssemos,

Por isso se nos não mostrou...”

                           (O EU profundo e os outros eus, 2001, p.141)

A esta altura é possível detectar em Caeiro o paganismo, pois num primeiro momento, o poeta diz  que não acredita em Deus, porque nunca o viu. Note que a figura de Deus nesta estrofe apresenta-se como uma profunda abstração “Porque Deus quis que o não conhecêssemos”.

Dessa maneira, destoando do “pensamento abstrato”, Caeiro quer partir para o “pensamento concreto”:

“Mas se Deus é as flores e as árvores

E os montes e o sol e a lua,

Então acredito nele.

Então acredito nele a toda hora,

E a minha vida é toda uma oração e uma missa,

E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos”.

                           (O EU profundo e os outros eus, 2001, pp.140-1)

Agora, num segundo momento, a divindade se identifica com as coisas, o poeta-caeiro coloca o divino na natureza física, supondo a hegemonia do ver sobre o pensar, que aponta para a consciência primitiva e mítica deste heterônimo pessoano: “A consciência mítica decifra diretamente a natureza, desenha a paisagem em sua presença mais imediata” (7).

Logo, o essencial no mito é o seu sentido literal, Caeiro rompe com as formas de conhecimento, desestrutura o mito cristão, como por exemplo, o da divindade feito carne, porque com a invenção das religiões, as coisas passam a existir e a ter significado em relação a algo que as transcenda:

“Mas se Deus é as árvores e as flores

E os montes e o luar e o sol,

Para que lhe chamo eu Deus?

Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;”

                                           (O EU profundo e os outros eus, 2001, pp.141)

Em concernência disso, Alberto Caeiro rompe com a linguagem e se aproxima da natureza, para que a palavra/coisa apresente uma relação direta, onde a palavra seja como as coisas reais e não como um signo. Fernando Pessoa diz que Caeiro é o próprio paganismo, à medida que este heterônimo não apresenta idéias e pensamentos, assumindo a própria ideologia pagã convertida e transformada.

ÚLTIMAS PALAVRAS: O SILÊNCIO COMO PRIORIDADE NO

PROJETO-CAEIRO

De tudo exposto, fica evidente que Fernando Pessoa ao construir seus heterônimos, estudou minuciosamente e antecipadamente cada um de seus poetas-ficcionais – tanto Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos como o próprio Fernando Pessoa (ele mesmo), não foram construído por “pura inspiração poética”. Observe que os heterônimos e o ortônimo apresentam em suas concepções projetos diferentes, pois os procedimentos que os arquitetam são distintos. Contudo, para este estudo, nota-se que o heterônimo Alberto Caeiro é considerado o poeta do silêncio – é  uma espécie de “estranho Adão”, que não quer falar ou pensar, mas que é puro corpo e sensação. Para Caeiro, “não-pensar” não é simplesmente calar a boca, mas sim, silenciar a mente, a boca e esse mundo interior que a toda hora nos fala e nos atormenta. Portanto, no projeto-caeiro o silêncio só é possível por meio da ruptura radical do signo lingüístico.

Em suma, Caeiro busca no silencio a significação de todas as coisas, que só pode ser percebida por meio das sensações, sendo assim, significar para Alberto Caeiro é simplesmente sentir com todos os sentidos.

Notas:

(1) Fernando Segolin, Fernando Pessoa: Poesia, Transgressão, Utopia, op. cit., pp.38-9.

(2) Ibidem, p. 38.

(3) Ibidem, p. 38.

(4) Fernando Pessoa, O Eu profundo e os outros eus. op .cit., p. 135.

(5) Ibidem,  p. 140 .

(6) Álvaro Cardoso Gomes, Fernando Pessoa: as muitas águas de um rio. Op. cit., p.22.

(7) Georges Gusdorf, Mito e Metafísica. Op. cit., p.29.

BIBLIOGRAFIA

PESSOA, Fernando (2001). O Eu profundo e os outros eus: seleção poética;  

      seleção e nota editorial [de] Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova fron-

      teira.

SEGOLIN, Fernando (1992). Fernando Pessoa: Poesia, Transgressão, Utopia.

      São Paulo: Educ.

GOMES, Álvaro Cardoso (l987). Fernando Pessoa: as muitas águas de um rio.

       São Paulo: Ed. Pioneira.

LANCASTRE, Maria José de (  ?   ). O essencial sobre Fernando Pessoa.   ??:

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PAZ, Octavio (1982). O Arco e a Lira: Tradução brasileira. Rio de Janeiro: ed.

      Nova Fronteira.

GUSDORF, Georges (1979). Mito e Metafísica: Tradução brasileira. São Paulo:

      Convívio.