Cachorro de mercado...

Por Francisco Antônio Saraiva de Farias | 28/06/2012 | Crônicas

 

Cachorro de Mercado...

Garganta ressequida pelos raios de sol causticante, o pensamento voltado para os dois filhotes que deixara no sótão da casa grande, espera concluir, em bom grado, aquela espera angustiante, sentado, ao cair da tarde, na porta do mercado.
Àquela era mais uma luta contraposta à sua vontade. Tinha como compromisso moral sair vitorioso, custe o que custasse. A coisa de mais sublime que possuía era a vida dos dois filhotes que largara no sótão da casa grande. Por eles, tudo arriscava nada o intimidava... 
A posição estática revelava a ânsia intranqüila... Esperava tenso, pronto para dar o bote no primeiro pedaço de carne que encontrasse. Traseira ou dianteira, não importava, pois para ele não havia liberdade de escolha. Para escolher e expressar livremente era preciso deixar de ser cachorro... Pensamento interiorizado estaria livre de uma surpresa desagradável... Resta o consolo de que nada é impossível... No Ceará já chove... Oh! Angustiosa espera. - Será que ninguém o via?... Só tinha certeza duma coisa, triste, irracional, mas estimulante e compreensiva por conta da situação bestial que ora enfrentava: àqueles que por ele passavam, disfarçados robôs aristocráticos e raciais, tinham olhos frios e inexpressivos, como se olhassem para o próprio interior... Cadáveres ambulantes!... Seres consumidos pelo egoísmo e ambição desmedida, tragados por uma farsa racial e tecnocrata, que distinguem e classificam a todos como se mercadorias fossem...
Opa! O açougueiro parece que o viu: ajeita o avental, faz um trejeito abusado e lança mão da faca peixeira... São Lázaro! - Qual seria a sua intenção?... 
A resposta veio fúnebre e imediata: o peludo braço do açougueiro desceu rápido e um amigo seu, mais afoito, tombou ejaculando sangue por um orifício profundo, ficando o gesto trágico do açougueiro retratado em um pedaço de carne que o cachorro teimosamente prendia à boca... Finalmente o livraram da angustiante espera... 
Melhor mesmo era baixar mais uma vez no pirarucu do seu Freitas... Caminha trôpego, pardacento e já sem muitas pretensões, rumo ao gerador de piras... 
Inesperadamente, tudo aconteceu: polícia, blitz, e aquela violenta pancada no traseiro, aplicada pelo braço armado dum Estado que, irônica e paradoxalmente, fora criado pra lhe proteger...
Sob a égide dum manto regulador, que espelha, dentre outros preceitos, ser “todos iguais perante a lei”, o Estado, de forma burlesca, o tratava como filho bastardo... 
Sangrando, voltou ao mercado... Esgotado e abatido pelo cansaço, encolhe-se num cantinho dum Box vazio e, em meio aos constantes zumbidos dos mosquitos e do odor forte de sangue das vítimas abatidas, concluiu impotente, adormecendo... 
Longe dos filhotes que o esperavam no sótão da casa grande, termina mais um dia de cachorro, no mercado...