Cabra-cega
Por Caroline Lana | 04/12/2009 | ContosSentei e trouxe minha respiração a galope, ao ouvi-la dizer que contaria sua história. Dissera que o acontecido, o achado, achara-a.
-- Por que não uma história que se conta sozinha?
Digo a princípio, desculpem a menina. A menina não sabe mais como contar. É feita de uma história assim, que as letras vão saindo, não conhece bem o caminho e se perde entre tantas árvores. Pedras também. Mas como diz o poeta, no meio do caminho tem o bastante delas. Assim resolve a menina que pula de pedra em pedra. Perdida anda, anda e parece chegar a lugares errôneos. Bate às portas e pergunta quem moram nas casas. Ouve os barulhos, sente os cheiros e sabe que está em lugares errados. Ela se sente mal e não quer mais.
Vai andando na ansiedade normal de ter encontrado uma cabana ao léu e por lá, no fim da rua, com seus pés descalços, pára.
-- Há alguém por aí?
Pelo cheiro bom de bolo de abacaxi sabe que está no lugar certo. Apenas se aquietará a ansiedade pela resposta de suas batidas as portas. Sim... Todas as vezes que eu passava por aquela rua, sentia um frio interno, como se não pudesse entrar, e não pude. E era tanto o frio que nem ousaria tentar. Então observei, e esperei, e esperei, em vão. Ninguém veio. O vento me observava, eu sei. E por mais que ele não acreditasse, eu não queria entrar sem vê-la. Mas só porque não importa o quanto eu gritasse ou por qual nome eu a chamasse, ela o negaria.
Sabe, nem sempre a rua foi assim. Não, era encantada. Eu sei, parece mesmo piegas, histórias pra que não deixem de acreditar. Eu entrava já sorrindo, dei alô aos gigantes, gritei aos coelhos que corriam em volta do lago e resolvi pegar uma das três marias só pra que as outras sentissem sua falta. E aquela música, ah, tinha o poder de me puxar e extraviar para o lugar que você, ao ouvir, sentisse vontade de ir. Os golfinhos espirravam água numa imensa árvore com flores brancas que caíam lentamente sobre o gramado amarelado, verde, e sobre o lago azul manchado de um cinza quase que irreconhecível.
Eu nem conseguia achar correto tanta beleza em uma rua, um jardim só, uma música, um canto. Como alguém que já entrou conseguiu sair sem ao menos relutar ou sacrificar algo?
Será que me imaginava vestida de um xadrez vermelho, pés descalços, e olhos vendados? Girada para um lado, depois para o outro. Barulho. Tonta e sem ver direito, se guiou por vultos e vozes. Cabra cega no quintal. Por isso, nunca me senti no direito de estar lá. Então entrava às vezes, quando me era permitido. Mas eu não sabia e nem ela, que toda vez que eu entrava, ela entrava mais em mim do que eu nela. Algo que não existia, algo inexplicável. E eu sabia que estava chegando a hora de eu devolver o que estava recebendo. Então subi aos céus, e fiz um pedido que me foi concedido.
Lá estava em minhas mãos, o mais lindo Lírio da terra. E dentro dele, minhas escolhas e meu destino. Sim, assumo não ter sido nada racional com tal pedido. Lá fui eu, em direção a ela e seu bordado. Já havia escrito tantas juras, histórias, realidades, fantasias naquela árvore que não tinha como não a reconhecer. Como sempre, lá estava em seu toco de madeira. Quase nua, se levantou, e foi se aproximando de mim a cantar. Meu Deus, nem o rosto havia mostrado e em um só dia eu a via por inteiro. Não me assustei muito menos hesitei enquanto minha primeira lágrima derramou de seu olho.
Chegando a dois passos de mim, ela parou. Olhou ao redor e viu o quanto sua rua era protegida e linda. Todos aqueles seres encantados ajoelhados aos seus pés, todo o laranja irradiado no lago refletia sua imagem. Ela se sentia segura, confortada, conformada. Já vira o mundo lá de fora, sabia como era. Pensou: não, não vale a pena. Insisti. Como insana, ergui minha mão e lhe dei o lírio. E foi tudo o que ela viu... Um simples lírio. Como todos os outros que já lhe haviam sido oferecidos. Então ela se virou, foi até o tronco e se vestiu. Voltou desta vez sem voz. Não havia música, todos pararam inclusive as nuvens de se mexerem, vento, silêncio.
Abaixa-se, coloca o lírio no lago e solta sem saber que estava me deixando sem escolhas e sem que o destino pudesse repensar. Virei-me, sem olhar pra trás com medo de me transformar em uma estátua de sal, e saí da rua.
E agora, ela está assim. Fria. E eu sei que o lírio está no lago congelado. Mas eu não tenho permissão de entrar e se entrasse, ver o lírio seco e congelado cegar-me-ia. E eu prefiro continuar a ver, pra, quem sabe, um dia meus olhos encontrem, na mesma sintonia, na mesma música, na mesma árvore, seus olhos... E enfim, não só arrepia-la, mas tocar sua alma.
Contou tudo do que era sem nunca ter sido e aquilo me atordoou tanto, era tão repugnante a certeza de ser passado, que haveria de ter uma resposta na certa. Como era mesmo o nome da rua?
Aí, me veio uma lembrança daquela rua que terminava em uma escadaria, onde não passo mais, onde não posso mais. Eu a enfeitei de flores, carregada de sonhos e caminhos abertos. Tive a impressão de andar lá contigo, juro que tive. Só que nesse tempo tão pouco sonhava com sua existência. Fiz-me forte pra te esperar lá, bem na primeira escadaria, tentando imaginar do que você me chamaria dessa vez: "mi alma, meu bem", tanto faz.
E lá aparecia, colhendo as margaridas pra me entregar quando dobrasse a esquina com seu cheiro de baunilha. Só que ela não sabia que já fui muito marcada por margaridas e parecia que essas flores tinham espinhos, mas não, não tinham. Eu que os inventei. Não importava, a margarida que me mostrava seu perfume estava em outra estação que não a minha.
Quem sabe o roteiro ela que escrevia, e de tão entretida com o bordado pra entregar o quanto antes, nem ao menos percebeu? Sim. Ela roubava sutilmente minhas lembranças. Não lhe dei direito a isso! O presente já é tão grande e tão seu. O antes não. O antes eu não compartilho! Então eu fui me perdendo em suas narrativas, e cada dia que passava me perdia ainda mais. Até o ponto de fazê-lo completamente. Sim! Perdi o rumo da história. Ou porque eu não tinha um manual de interpretação pra saber o que se passava na fábula criada, ou porque eu queria que ela me levasse a pular janelas e alcançar a "realidade fantasiada". Pois bem, escolhas e destino, pois bem, nada bem.
Fiquei naquela escadaria apenas por mais alguns minutos. Sabia que podia o sol ir procurar seu recanto que eu não a teria mais. Fechei aquele meu caderno amarelado que escrevi a história que ela me contou. Fechei e qualquer dia eu abro de novo, até saber que eu ainda coloco um lírio seco dentro dele. E desse jeito, te fazendo de um descanso particular foi que aprendi a ser assim, oito ou oitenta, dez ou cem, sete ou setenta, todo o conjunto que você julgar necessário. E você veio uma, duas, três, mil vezes até mim. E, todas essas vezes, eu nunca te mandei embora, sempre te dei abrigo. E, toda vez que eu morria um pouco, era você quem me matava. Tripudiava, gritava aos quatro cantos da minha cabeça quadrada que você tinha passe livre ali e que eu nada podia fazer a respeito disso, afinal, quem criou você fui eu. "Desculpe a menina aqui".
Sua tolerância com os meus desacertos, serenou o tumulto da minha cabeça e me ajudou a aquietar o coração como um anjo realmado. Então eu creio que desencontros podem ser encontros em potencial - talvez em novo formato ou noutro ritmo.
Desculpa ainda te dizer isso através de metáforas, do que não é teu, mas que acabou sendo. Queria ser nua e crua aqui pra não deixar mais sombras de dúvidas. Achei que você me esperava na escadaria. Parecia-me tão sutil isso que eu queria descer com você. Não entenda por mal, "mas pro nosso samba foi vital". Surpresas pequenas em chocolates brancos e pretos. Mas eu ainda arrumo uma cartilha de interpretação pra compreender tudo que me dizias e eu me deixei levar. Já peguei minha munição para eu merecer o que vem através de você. Hoje quero só a caixinha da Filó pra eu ficar, tá?
Logo nos perdemos.