BRICANDO DE GATO E RATO

Por sebastião maciel costa | 27/03/2023 | Educação

Brincando de Gato e Rato

     Conta um recorte das histórias em que animais irracionais dão verdadeiras aulas que valem por uma vida, que em certo espaço simples de uma comunidade igualmente simples, viviam em aparente harmonia, um cachorro sem pedigree, uma gato mirrado e um faceiro rato que tripudiava dos dois primeiros, enganando, rindo e fazendo hora com os mesmos. Na sua visão, ele era o melhor dos três, o mais hábil, o mais esperto, aquele que melhor se saia de quaisquer embaraços.

     Os donos dos referidos animais sabiam o quanto custava mantê-los, mas, como foi mencionado, os animais também não eram os mais felizes ali. Eles tinham que buscar o seu sustento, cada um do seu jeito, cada um fazendo o que fosse necessário para melhor se manter vivo. Mas não estava fácil. Deixemos os humanos fora desse recorte, afinal os protagonistas são o gato, o rato e o cachorro.

     Na luta pela sobrevivência, travou-se uma perseguição sistemática do gato com o rato. Era um desafio para o rato sobrevier e, ponto de honra para o gato que precisava devorar aquela espécie que pertencia historicamente à sua cadeia alimentar. Não havia trégua, não havia chance de pacificação entre eles. Um dia, dez dias, um mês... Três meses... um ciclo sem fim de chances e impedimentos; de conquistas e derrotas. Ninguém mais se envolvia naquela contenda sem fim. O cachorro, que também não gostava do gato, optou por defender o rato. Ali prevalecia a compreensão de o maior defender o indefeso contra aquele que parecia tão hábil  e ardiloso: o cachorro aliou-se ao rato, na luta inglória dos mesmos.

     Foram pensadas, estudadas, testadas várias formas de preservar o rato dos ataques do gato. Firmou-se um pacto: o gato só saia da toca, para passear em campo aberto, se antes ouvisse o latido do cão, o latido era a senha,  pois era a certeza de que o mesmo estaria por perto do rato, protegendo-o do iminente ataque. Aparentemente, estavam em harmonia: o rato só saia se ouvisse o latido. Isso significava que o cachorro estava por perto e o rato estava protegido.  Esse jogo funcionou por um bom tempo: ouvindo o latido, o rato saia, passeava, comia alguma coisa e voltava para a sua toca, para amanhã voltar ao seu “passeio”. O gato não se conformava com essa aliança que tantos dissabores lhe tinha causado. Mas era preciso agir. Era preciso encontrar uma forma de quebrar aquela aliança que lhe era prejudicial.

     O tempo passou e a rotina se fez sentir. Ouvindo o latido, o rato passeava. Certa manhã, como de costume, o rato ouviu o latido, saia faceiramente, quando de repente: “Creu”. O gato abocanhou o infeliz rato que diante da surpresa não sabia o que dizer. Tinha certeza de ter ouvido nitidamente o latido do cão. Irremediavelmente perdido, arriscou: - Grande e bravo gato, sei que não terá piedade de mim. Mas me explique o que ouve, pois eu ouvi o latido que me garantia que o cachorro estava por perto. Mas o gato, não respondeu. Por que? – Não podia, não queria, não sabia, não convinha... Pensemos um pouco, aqui no plano dos humanos: qual a razão para o rato ter sido “derrotado”? E por que o gato não conseguiu explicar?

     Nos dias de hoje, as relações entre as  pessoas e suas respectivas classes sociais têm sofrido grandes revezes que nos levam a crer que o caminho de volta às raízes do bom senso se torna cada vez mais sombrio. Gato mia, cachorro late e rato... Qual a voz do rato? Em que instrumento ele toca? Qual o diapasão de equilíbrio entre os que têm voz e aqueles que não têm ou se têm, não podem ou não se permitem usá-la?  Em pleno Século XXI, o homem, acreditando-se no pico da pirâmide do conhecimento e no topo da manipulação da inteligência, se confunde a ponto não saber onde começa a efetiva inteligência e a incontestável inabilidade com o óbvio: gente que não sabe cuidar de gente por não se reconhecer gente.

     O gato, como o homem dos nossos dias, sentiu-se invadido em sua capacidade de agir, ferido na sua essência de ser um animal sagaz, ágil e felino, principalmente no que lhe convinha. O cachorro, muitas vezes, amigo do homem, é confiável, enquanto espécie dócil e de fácil adestramento , sentia-se útil aos interesses do rato, aquele que pouco perigo lhe apresentava. Apoiar-lhe não parecia uma tarefa difícil. Mas por trás disso, quais interesses estavam em jogo? O que, de fato, pretendia ele, se dispondo a poiar o rato? Como o homem dos nossos dias, não estaria planejando para obter qualquer retorno que lhe conviesse e apenas fingia ser amigo?  O rato, finalmente na nossa mira, seria aquele que conseguiu ficar em uma zona de conforto que lhe convinha, sem nada ter feito para tanto. Afinal, ele não pediu, até porque, como foi dito, o rato não tem voz. Não pediu, mas obteve uma parceria que resultou, por muito tempo, uma segura convivência já que o cachorro garantia o salvo-conduto e aparente tranquilidade.

     Mas ainda não obtivemos a pretendida resposta: “o que o gato respondeu ao pobre rato, quanto interpelado sobre o fato de ele ter ouvido o latido do cão e o que deu errado, já que houve falha no “sistema”? Falha no sistema: o mote para justificar todas as falhas que a inteligência humana sem  querer assumir, transfere para a tecnologia, a grande vilã dos nossos tempos. Entre as várias classes sociais que se digladiam pelo poder e controle da situação, por oportunidade ou por facilidades, esse conflito está presente em todas as linhas de raciocínio e em todos os planos elaborados em nome da evolução social. O cachorro representa guarda que garante a segurança da sociedade, dentro de suas limitações e de acordo com normas previamente acordadas para que alcance os seus objetivos “institucionais”, com salário pago pelos impostos, pela fatia da sociedade trabalha para contribuir para o perfeito funcionamento de uma sociedade moderna, eficiente e equilibrada.

    O rato, na sua pequenez e aspecto aparentemente despretensioso, representa os que acidentalmente são protegidos. Tal proteção pouco representa, mas acalenta, reduz riscos, mas não garante estabilidade, paz e qualidade de vida. Ele representa o cidadão comum que, cansado de lutar contra os fatos. Ele representa a parcela da sociedade que acredita na possibilidade de crescer, estudar, avançar, aprender, conquistar através de seus próprios esforços, ser protagonista do seu tempo, presente no contexto que produz, que age, que ocupa os espaços que a sociedade lhe concede e, em repetidas possibilidads, busca e conquista aqueles “nacos” que lhes são  negados.

     A esta altura dos acontecimentos, retomemos à pergunta feita pelo rato quando antevia o seu fim, nas garras do gato: -“sei que não terá piedade de mim, mas me explique o ouve, eu ouvi latidos...” Certamente, você ouviu latidos, mas não eram do cachorro, que nem sei por onde andava naquele momento, o latido que você ouviu foi meu. Eu percebi que sendo eu, capaz de ocupar espaços, eu poderia agir a partir da minha capacidade de ser, o que pretendia ser: agente de minhas ações no tempo da minha história, aprendi a latir do meu jeito, dentro de minhas limitações. Mas fui tão bem que você foi convencido a acreditar que ouvira um latido. Teria sido um latido ou lamento? Um grito de expectativa  ou a confirmação de que somos o que queremos ser porque assim o somos?

O rato, sem entender o que ouvira, insistiu por uma explicação e o gato reforçou: no mundo em que vivemos, pessoas agem como irracionais e, esses, seguindo os exemplos dos homens, começam a “trocar os pés pelas mãos”, na expressão da palavra, criando situações embaraçosas que brotam entre espécies que se antagonizam nos seus espaços naturais. Nesse ponto, eu preciso ser mais claro, falava o gato, neste mundo que tantas conquistas, de tantos avanços e retrocessos, os sistemas falham, as pessoas enfraquecem e recuam diante dos fatos, as máquinas emperram, o mundo recua, quem não aprender a cada dia, quem não alargar horizontes a cada atitude, quem não protagonizar-se, não terá futuro. Eu, na prática, para vencer na nossa constante briga de rato e gato, aprendi a latir. Isso é competência. Com um detalhe: o tempo não recua. Lições passadas não voltam e, nunca devemos esperar para aprender com as nossas próprias falhas, enquanto não falhamos, aprendamos com as falhas do outro.

     Quem para de aprender não precisa viver, continua o gato. Nós, por exemplo, somos capazes de dar grandes lições, tais como o sentido de responsabilidade: quem cuida de nós não nos esquece. Prezamos pela empatia: se percebemos alguém triste, chorando, lambemos ou esfregamos nossa cabeça na pessoa que está triste. Isso acalma e faz bem. Somos defensores do respeito pelo outro: enquanto dormimos não nos perturbam. Despertamos o interesse pela comunicação: nossos cuidadores conversam conosco.

Ainda na analogia entre o comportamento dos protagonistas, o gato, o cachorro e o rato, o que trouxe para si os reflexos e reflexões foi o gato, com lições que nos deixam inquietos como: o que aprendemos de novo, o que ensinamos de velho? Como aprendemos as lições de vida e como as passamos adiante? Somos “ensinantes” ou “aprendentes”? Aprendemos o quê e ensinamos de que forma? Como quem aprende conosco nos vê? Que busquemos respostas para todas as perguntas aqui formuladas, por você gato; pelo outro, rato ou cachorro. Por você cachorro; pelo outro rato ou gato. Por você rato; pelo outro cachorro ou gato.

     Urge que reflitamos sobre os rumos que pretendemos dar ao mundo, que recebemos gratuitamente dos nossos ancestrais, pautando sempre as nossas ações, em atitudes que nos tornem referência e que sejam reflexos para a constatação de que vence quem aprende a pensar, a fazer, a dizer, a ser.

*Sebastião Maciel Costa

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