Boneca De Louça

Por Orlando Rodrigues | 15/02/2008 | Contos

Minhas lembranças são vagas, minha cabeça dói. Dói todo o meu corpo, mal consigo respirar e falar.Lembro-me de ter saído de casa ainda cedo. Maldito horário de verão. O dia é sempre comprido para quem ganha a vida à noite, enquanto os mortais normais dormem.

Mas muita gente ganha a vida à noite e é normal. E também não se importa com o tamanho do dia. Pra quem é normal é tudo igual. Não sei se sou. As pessoas acham que não. Claro! Nem todas as pessoas. Apenas 99%. Faz sentido. 1% da população do mundo é diferente. Se alguém duvidar que faça conta. Eu fiz. Comecei pela minha rua.

Meu Deus, quanta dor.

Lembro-me que escolhi o vestido mais bonito. Um vermelho bem curtinho, presente de um ex-namorado. Lembro o nome dele. Hércules. E ele fazia jus ao nome. Era forte, musculoso. Lutava jiu-jitsu. Só que eu me lembro que durou pouco tempo nosso namoro. Ele era casado. Um dia ele me mostrou a foto da esposa. Era linda. Ele disse que a amava. Eu não entendi muito bem...

Está difícil para respirar.

Sempre gostei de homens fortes, também me lembro. Desde criança adorava ver os filmes na TV. Aqueles heróis musculosos e destemidos me chamavam a atenção. Minha adolescência foi terrível por causa disso. Eu mesmo não entendia o porquê de ser assim.

Não consigo mexer meu corpo.

Lembro de ter entrado em uma loja. Comprei cigarros, preservativos e uma bebida energética que bebi com uma dose de uísque. Esse eu carrego em uma espécie de cantil, na minha bolsa. Todos presentes do Hércules.

Minha boca está seca e amarga. Sinto muita dor.

Agora me lembro. O Hércules havia prometido que a gente ainda iria se ver, mesmo que fosse pela última vez. Eu não acreditei muito naquilo. Já tive outros homens na mesma situação. Ficam com a gente um tempo e depois somem. Somem de vergonha. Passam a sentir nojo. Cruzam o caminho da gente e fingem que não vê. Vários cruzaram meu caminho na rua, de braços dados com mulher e filho. É uma sensação estranha. Comportamento esquisito de pessoas normais.

Já ganhei muitos presentes desses homens casados. Vários homens carinhosos ealguns muito grosseiros. Já ri de muitas histórias e situações. Muitos queriam sentir o que sinto. Queriam um prazer diferente. O Hércules era assim.

Não consigo engolir nenhum gole de água. Gosto de sangue.

Lembrei. Saí da loja. Acendi um cigarro. Bebi uma dose de uísque com energético. Parei no local de sempre. Uma avenida movimentada. Os carros iam e vinham. Algumas pessoas buzinavampara mim. Uns mais atirados gritavam: Gostosa! Uns paravam o carro, perguntavam como era meu esquema e de repente iam embora. Várias mulheres me convidaram a entrar em seus carros. Saí com algumas. Imagine. Uma delas me deixou uma foto. Isso faz pouco tempo.

Minha respiração está muito difícil.

Estava naquele lugar já há algum tempo. Aí um carro passou devagarinho por mim. Tinha insul-film; algo assim. Saiu em disparada com o som ligado em um volume muito alto. Instantes depois ele voltou.

Eu não conseguia entender. Duas ou três vezes vez ele fez a mesma coisa até que parou. Abriu a porta para que eu entrasse. Era Hércules.

Muita tosse. Muita dor, dificuldade para respirar.

Hércules saiu em disparada, sem dizer uma palavra. Não se falei algo com ele. Ele corria muito. Parecia transtornado. Seguiu para um local deserto, sem nada ao redor. Era um lugar escuro.

Tosse horrível. Não estou sentindo minhas pernas. Parecem dormentes.

Ele parou o carro e desceu. O som do carro estava muito alto. Eu não conseguia entender e comecei a sentir medo. Deu a volta e abriu a porta do meu lado.

—Bicha safada; desce do carro, traveco de uma figa.

Ele não esperou eu dizer nada. Arrancou-me do carro com toda força e me jogou ao chão. Minha boca achou o asfalto frio da noite que já se fazia alta. Senti o sangue escorrer ente meus dentes. Pegou-me pelos cabelos, arrancando minha peruca loira blond. Senti quando um violento soco acertou em cheio o meu queixo. Desequilibrado, caí próximo ao carro. Ele me levantou novamente segurando-me pela cabeça coberta por uma touca que prendia meus cabelos crespos, junto com um punhado de grampos. Olhou para mim sorrindo de maneira cínica e terrível. — Você nunca mais vai comer a mulher dos outros, veado nojento. —Disse em tom agressivo.

Uma joelhada violenta quase estourou meus testículos. Caí, praticamente desacordado, enquanto Hércules, ensandecido, desferia seus últimos golpes. Vários chutes em minhas costas e na barriga.

Não me lembro de mais nada, doutor.

Muita tosse, não consigo respirar. Minhas vistas estão escurecendo... Muita tosse, não vejo mais nada, estou morrendo... .