Bolsa Família - uma configuração híbrida
Por Osorio de Vasconcellos | 16/10/2009 | CrônicasBolsa Família ─ uma configuração híbrida
Um dia desses, em conversa com Luca Matéria, fiquei sabendo que ele, na qualidade de contribuinte, sentia-se mais à vontade com o Programa Fome Zero, do que se sente hoje com o Bolsa Família. E foi logo dizendo por que.
Inimigo ferrenho do nominalismo em matéria oficial, vale dizer, inimigo de conceitos subjetivos no trato da coisa pública, LM gostava de ver a expressão Fome Zero reproduzir o reconhecimento da fome social e, no mesmo passo, encaminhar o juízo de considerá-la radicalmente intolerável.
Demais disso, Fome Zero alertava para a necessidade de estabelecer marcos divisórios entre a fome social, diuturna e mórbida, que dói por fora do estômago, e a fome romântica, trêfega e prazerosa, cuja função precípua consiste em espantar o tédio da saciedade. Simultaneamente, no limite Zero de sua tolerância, Fome Zero descortinava, além de elevados propósitos morais, a dimensão relativa do tempo. Fome Zero era finito, visto que, logicamente, se extinguiria com o resgate do último faminto. Em suma, Fome Zero configurava um primor de clareza e distinção.
Na qualidade de contribuinte, portanto, Mestre Luca sentia-se seguro. A inteireza formal de Fome Zero desenhava, de modo iniludível, a destinação, o itinerário e a contrapartida social dos desembolsos governamentais. Distorções, se houvesse, seriam fáceis de identificar e corrigir.
Com o advento do Bolsa Família, o contribuinte Luca Matéria percebe desde logo que o nome do Programa ─ Bolsa Família ─ diferentemente de Fome Zero, não exibe nenhum sinal de finitude, vale dizer, não engatilha nenhuma intenção de extinguir-se.
O raciocínio até que começa bem, começa com Bolsa, que remete à existência de recursos numerários públicos, disponíveis para aplicação gratuita. Mas se desmaterializa em seguida, ao topar com o conceito abstrato de Família.
Com efeito, o rótulo de Bolsa Família implica uma configuração híbrida, na medida em que alude simultaneamente a dinheiros concretos, palpáveis, disponíveis, e a uma abstração, a abstração da Família atemporal, a que os recursos se destinam.
O poder simbólico da Família abstrata, que dá nome ao Programa, é de tal ordem, que, por si só, justifica todos os desembolsos. Não há nenhuma necessidade de vincular os gastos com a sua aplicação final, ─ seja no leite do bebê, seja no chá de boldo da ressaca adulta. O imaginário popular encarrega-se de contabilizar tudo como doações de um Pai amoroso, a quem cumpre reverenciar e retribuir.
E a vertigem da gratidão se acentua com a facilidade dos pagamentos em espécie.
À vista do exposto, o contribuinte Luca Matéria me confessou que descarta a possibilidade de localizar reflexos específicos do Bolsa Família na população, salvo a fidelidade cativa dos elevados índices da popularidade governamental.
Em todo caso, ele circula diariamente pela cidade, praças, praias, periferia, campos de futebol, consultando fisionomias transeuntes.