Bioética e os desafios do século XXI

Por Margareth de Oliveira Kuster | 03/09/2011 | Filosofia

Bioética: desafios do século XXI

Margareth de Oliveira Kuster



Resumo: Este artigo é uma contribuição para as pessoas em geral, que se interessam por Bioética , numa reflexão sobre o pensamento e a cultura ocidental do século XVI ao século XXI. Insere a Bioética enquanto ciência do século XX que chegou para unir especialidades e trazer de novo a fundamentação filosófica para a análise dos problemas do nosso tempo. Tem a preocupação de ser compreendido por todos, desde profissionais, estudantes diversos e leigos, sendo esta uma proposta da Bioética, unindo todos os interessados nas discussões que envolvem a vida e o viver, a morte e o morrer neste século. Os problemas estão colocados e precisamos mudar nossa forma de pensar e intervir no social maior, para um futuro melhor para esta e as novas gerações que estão por vir. É um chamado a todas as pessoas sensíveis ao outro e ao planeta, para se incluírem de forma mais participativa e solidária rumo a um mundo melhor para todos.


Palavras chaves: Bioética, Cultura ocidental, Século XXI.



Abstract: This article is an contribution for all the people that are interested for Bioethics, in a reflexion about the western thought and culture of the century XVI until the century XXI .It inserts Bioethics while science of the century XX that was born for unite specialities and bring again the philosophic substantation for the analysis of the problems of our time.
It has the worry of to be understood by all the professionals diverses, students and laymen, being one of the proposals of Bioethics adhering interested people in the discussion that involves the life and the living, the die and the diving, in this century.
The problems are put and we need to change our way of to think and to intervene in the biggest social, for a better future for this news generations that are coming.
It is call for all sensible people to others and the planet, to be included in a more participative and solidary way, which will lead to a better world for all.


Key words: Bioethics, Western culture, Century XXI.









" Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal assegurados, não podia ser senão mui duvidoso e incerto, de modo que me era necessário tentar seriamente uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências. (.....)".
( Descartes, 1973,pg.93).


A dúvida cartesiana é o ponto de partida de Descartes para todo o pensamento que desenvolveu, e parece que ela o acompanhou ao longo de toda sua vida, pois em "Meditações", publicado nove anos antes de sua morte (1641), ela permanece como condição essencial de seu próprio pensar filosófico.
Convido, portanto os leitores, a uma "imaginária" volta ao mundo do século XVI, período onde vive o nosso filósofo/pensador (1596-1650), com as notícias que poderíamos dizer que apareceriam como manchetes dos grandes jornais internacionais: "surge o calendário moderno", "o Brasil e a bússola são descobertos ", "tem início à reforma protestante na Alemanha ", "Camões publica "Os Lusíadas" em Portugal ", "Leonardo da Vinci, Michelangelo e Rafael imprimem um jeito novo de arte na Itália que se expande para o mundo", "Copérnico apresenta a hipótese de um universo heliocêntrico, causando o rompimento drástico do mundo antigo e medieval com a era moderna".
Época das grandes navegações, intercâmbio cultural e científico, permitindo aos povos influenciar e serem influenciados por outros. Todo o mundo ficou interdependente e antigos limites pareciam não existir mais. Era a Revolução científica chegando e a filosofia progressivamente se separando da teologia, fazendo surgir novas igrejas e muitos conflitos religiosos e culturais. Historiadores falam da emergência de uma nova consciência do ser humano que se expande de forma rebelde, ambiciosa e criativa (TARNAS, 2000).
Nesse cenário tenso de novidades e descobertas, desenvolve-se o "Humanismo ", movimento de estudiosos da cultura clássica antiga, que vai dar mais atenção às necessidades das pessoas, valorizando os direitos e o acesso delas à cultura e ao conhecimento. O humanismo
torna-se marca essencial dos intelectuais da época, principalmente os italianos (médicos, sacerdotes, outros), eram homens de boa conduta, grande destaque social e sabedoria.
A medicina na época se ocupava da dissecação de cadáveres em suas aulas de anatomia, ganhando impulso com as obras artísticas de da Vinci, que também utilizava os "nus" com interesses de arte, chegando ele mesmos a dissecar mais de 30 cadáveres. O homem assim descrito perde seu caráter anterior de mistério divino da criação e assume o lugar de objeto controlável e manipulável.
O corpo passa a ser compreendido como "soma de partes", e acreditava-se que bastava se dividir em partes para se compreender o todo. Herança da ciência cartesiana que divide para conhecer. Na medicina o compromisso ficou com o biológico do corpo, separando mente e corpo, e os médicos intervindo no corpo e considerando as doenças como processos meramente individuais, naturais e biológicos ( SIQUEIRA, ZOBOLI, KIPPER, 2008).
Como conseqüência na própria formação médica, essa visão faz crescer o número de especialidades médicas, onde cada vez se conhece mais do menos. Era o binóculo cartesiano nas ciências médicas e o predomínio do pensamento essencialmente racional sobre os fenômenos e as pessoas.
Exames complementares e equipamentos tecnológicos substituindo a clínica e o avaliar pela história do doente. Mecaniciza-se o contato e as hipóteses de diagnóstico, ficando estes para as imagens radiográficas e exames cada vez mais sofisticados. O simples tornou-se complexo, e o acesso restrito à minoria.
Nesse contexto de compreensão da realidade, outro filósofo contemporâneo de Descartes, nos aponta que é impossível se conhecer as partes sem conhecer o todo, tampouco conhecer o todo sem conhecer as partes (PASCAL, 2003). O desencantamento em relação ao mundo era grande e a expansão científica em todos os campos tornou-se irrestrita. Havia um fascínio em cada descoberta e o ser humano foi
colocado como centro do universo e senhor de todas as coisas. Chamamos essa forma de pensar o homem de antropocentrismo, que se estendeu por vários séculos até o atual.


Racionalidade, Tecnologia e Conseqüências: Assistimos do século XVI ao século XX, a grandes descobertas. Surge o automóvel, o avião, o vôo espacial, o rádio, a TV, o celular,
outros. A mulher conquista direitos e independência em vários aspectos, e a arte e o cinema dominam o tema dos entretenimentos. O universo passou a ser
indeterminado, infinito, assim como a realidade ficou mais complexa e pluralizada. O homem e seu saber científico (comercial, industrial, tecnológico) dominou tanto o objeto natureza que quase a comprometeu totalmente. É o antropocentrismo irresponsável e predatório ( BOFF, 1999).
Em meio a tudo isso produzimos duas grandes guerras mundiais , com conseqüente depressão econômica, ascensão e queda de ditaduras, holocausto, acesso a armas nucleares, ao laser e muito mais. O desmatamento assumiu proporções gigantescas e o planeta ficou ameaçado. O mundo até o século XIX era perigoso para todos e cresceu a corrida armamentista dos países ricos, já se prevenindo de uma temida terceira guerra. O progresso trouxe consigo conseqüências não previstas anteriormente e a natureza foi imensamente sacrificada.
Após quatro séculos de mudanças econômicas, políticas e sociais, o mundo dos homens predominantemente racionais fragiliza-se nas certezas, e o saber fragmenta-se. De novo vamos recorrer a Descartes em suas "Meditações ", quando diz: "Não existem métodos fáceis para resolver problemas difíceis". É exatamente nesse contexto social que focaremos nosso interesse nas descobertas mais essenciais no campo das ciências médicas, pois é nosso propósito acompanhá-las para compreendermos os desafios atuais da Bioética.

Surgimento da Bioética: A Bioética surge nos anos 70 nos Estados Unidos, com amplas preocupações na maneira de se perceber e encarar o mundo, a vida e o viver, a morte e o morrer. Bioética significa de forma mais simples a ética da vida, e para Potter, oncologista americano que assim a definiu na década de 70 , a bioética é uma grande preocupação com a interação do problema ambiental às questões da saúde, da vida e do viver.
No ano de 1971 o Kennedy Institute nos EUA, praticamente reduziu sua atuação ao campo biomédico e individual para as difíceis questões relacionadas à vida e ao morrer nos hospitais gerais. Passou a ser motivo de grandes reflexões a respeito do uso de tecnologia médica nos pacientes terminais, e recebeu em duas décadas muitas críticas pelo reducionismo prático. Em 1988, o professor Warren Reich incorpora à proposta da Bioética a abordagem interdisciplinar, pluralista e sistemática, incluindo problemas de meio ambiente e outros. De 1970 a 1988 a Bioética assumiu caráter mais individual, e para Garrafa ( 2005), a autonomia parece ter prevalecido à justiça, e o individual foi ocupando o lugar do coletivo.


Podemos dizer que o movimento da bioética surge nos anos 60 nos Estados Unidos, com a preocupação com os pacientes que precisavam fazer hemodiálise, e o número de equipamentos disponíveis era insuficiente, porém com o nome bioética se firma nos anos 70 nos EUA, nos anos 80 na Europa, nos anos 90 na Ásia e nos países em desenvolvimento. Com características distintas e considerando realidades locais é campo crescente em todos os países, principalmente ocidentais, marcados pelas dificuldades no processo de se viver e do como morrer.
Nos anos 90 na América Latina surge uma nova proposta epistemológica: A Bioética de Intervenção, com base filosófica e consequencialista. Esta proposta apóia-se no filósofo Hans Jonas quando diz: "não comprometas as condições de uma continuação infinita da humanidade na terra". Em 1998, o 4º Congresso Mundial de Bioética em Tóquio, retoma os princípios do professor Potter e reafirma suas ideias iniciais criando o termo Bioética Global; porém tal enfoque ficou confundido com o termo globalização e então se optou pela definição de Bioética Profunda. Pretende assim entender o planeta como sistemas intrelaçados e mutuamente interdependentes, não tendo o homem como centro e sim a vida, e esta não somente do homem, mas de toda espécie viva (grifo nosso). É o resgate dos pensamentos iniciais de Potter que voltam e assumem destino prático na ordem do cotidiano. O desafio parece ser o de combinarmos o conhecimento científico com o filosófico, para as ações do dia a dia em todos os contextos.
Em 2001 a Organização Pan Americana da Saúde define a Bioética como área de reflexão da vida, da saúde e do ambiente de forma ampla, plural, interdisciplinar e crítica em relação aos novos conhecimentos, em todas suas propostas e áreas. O final do século XX foi assim marcado pelos avanços das ciências que surpreendem com o avanço das biotecnologias, projeto genoma humano, movimento transumanista , dentre outros.
Discussões bioéticas interdisciplinares se expandem e requerem novas adequações. Os temas são em relação à clonagem humana, abortos, eutanásia, ortotanásia, biodiversidade, finitude da vida, recursos naturais, alimentos transgênicos, racismo, alocação de recursos para a saúde, engenharia genética, dentre outros.
Para Bernard Lown (1997), um dos mais destacados cardiologistas do século XX, jamais a medicina avançou tanto no diagnóstico e tratamento das mais variadas doenças como no século passado e nunca o ser humano foi tão mal cuidado.


Chegamos assim ao século XXI: Mundo globalizado e intercambiado, e a internet como ferramenta essencial da vida civilizada. Acordos internacionais propondo diálogo como princípio fundamental de todos os encaminhamentos dos problemas globais. A economia torna-se recessiva e aumenta a distância entre ricos e pobres. Nesse cenário de graves problemas sociais de difícil solução, iniciativas particulares e não governamentais propõem o resgate do fazer solidário, da compaixão, da busca de uma ética para além do instituído e governamental. Alguma coisa acontece e os resultados fazem crescer a esperança por novas possibilidades. O terceiro setor cresce e também exige novas roupagens para demandas também não previstas.
Muitos avanços tecnológicos na área médica são indiscutíveis quanto aos benefícios em detecção e prevenção de várias doenças, tratamentos precoces, métodos não invasivos para diversos procedimentos cirúrgicos, outros. Há também aqueles que causam discussões e polêmicas, dando muito poder a quem os oferece, ao mesmo tempo em que aumentam a distância entre médico e paciente.
Desde a década de 70, morre-se na maioria das vezes nos hospitais e de forma muito individual e até mesmo solitária, ligado a aparelhos e sem pessoas familiares presentes, numa solidão desumanizante. Alguns recursos tecnológicos, muitas vezes são usados sem critérios claros, e não raro nos parecem desumanos; e do ponto de vista financeiro, são recursos caros, principalmente para os países em desenvolvimento que ainda se vêem com problemas de saneamento básico por resolver. Ainda se morre de desnutrição e gripe, em meio à alta tecnologia com pacientes crônicos e terminais em alguns centros, o que a princípio parece-nos contraditório.
A medicina moderna amplia o divisor social de quem precisa do atendimento em saúde, principalmente se pensarmos em saúde pública. Para Dirceu Greco (1999, pg. 191), para que se possam controlar as doenças existentes e as que estão por vir, fazem-se necessárias a eliminação da pobreza e a acentuação da ética. A ética da correta utilização dos recursos públicos, a priorização de aplicação dos mesmos em atividades que beneficiem a maioria da população, principalmente nas áreas de educação, saúde pública e saneamento. A Bioética nesse contexto é uma reflexão pertinente a toda formação profissional, trazendo questões emergentes sérias do contexto da vida e das articulações desta com as ciências e as relações sociais. É uma postura global e inclusiva para os difíceis problemas do nosso tempo.
Em se tratando da Bioética clínica, precisamos ampliar as questões colocadas, pois ainda somos tímidos em discussões abertas para casos clínicos de difícil manejo, como o uso ou não de alta tecnologia em pacientes em cuidados paliativos, eutanásia, ortotanásia, aborto, morte encefálica, técnicas de reprodução, outras. Enquanto isso avançam as descobertas do projeto genoma humano, manipulação do DNA e a lei de biosegurança. No Brasil temos, desde 1995, a Lei de Biosegurança (Lei número 8.974-95) ligada ao Ministério de Ciência e Tecnologia, visando à proteção da saúde humana, dos animais, das plantas e do meio ambiente de forma não hierarquizada. Esse último aspecto representa um fato inédito no país, pois não existia nenhum outro documento legal que abordasse a questão da saúde ambiental até então.
A Bioética do século XXI adquire identidade pública e não mais dependente da consciência e autonomia das pessoas. Para Garrafa (2005, p. 132), "[...] ela exige a responsabilidade do Estado frente aos cidadãos, principalmente aqueles mais frágeis e necessitados, bem como frente à preservação da biodiversidade e do próprio ecossistema." Em 2005 foi aprovada a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO, consagrando os direitos humanos como referencial teórico fundamental da Bioética, se caracterizando pelos direitos ambientais e pela solidariedade, transcendendo a noção de país e estado. O Brasil e os outros países em desenvolvimento presentes, incluem nas discussões em Bioética o campo sanitário, social e ambiental, em oposição aos países ricos que a queriam novamente restrita ao campo biomédico e biotecnológico (GARRAFA, 2005).
No início desse novo milênio podemos apontar no mundo ocidental, três formas de pensarmos e atuarmos em Bioética. A americana, que privilegia a autonomia das pessoas para os casos e procedimentos. A européia que vai se ocupar mais com a fundamentação filosófica, e a latino-americana, que tenta conjugar a influência americana e européia com a inclusão dos problemas sociais pertinentes às questões e aos procedimentos.

A crise do paradigma dominante: O modelo do homem antropocêntrico parece não responder aos problemas de difícil manejo do nosso cotidiano. Questões sociais graves assumem manchetes de TV e revistas semanais, e somente o pensamento racional não parece ser suficiente para os problemas que temos e as soluções que precisamos. Como utilizarmos nosso saber profissional, história de vida, subjetividade, para as intervenções que se fazem necessárias, quando temos por objeto a pessoa humana e seu destino, é por demais desafiante .
O homem expandiu conhecimentos, enfrentou competições, assumiu poder e dominou impérios, mas tornou-se só e solitário. "O mundo virtual criou um novo habitat para o ser humano, caracterizado pelo encapsulamento sobre si mesmo e pela falta do toque, do tato e do contato humano." (BOFF, 1999, pg. 11). A felicidade inicialmente sonhada não aconteceu. Felicidade entendida como o mundo de valores, sendo esta um valor positivo, interpessoal e historicamente determinada.

"Como Descartes mesmo nos propõe em ?Meditações", fomos outra vez buscar os fundamentos e então o encontramos em Aristóteles (384-322 a C.) quando diz que o homem precisa de companhia de outro ser humano para tornar-se mais humano, consequentemente mais solidário. Precisamos de mudanças na forma de pensar, de forma estrutural e epistemológica, percebendo o homem para além do ser competitivo por natureza, mas ao mesmo tempo solidário por opção, superando a visão meramente economista reducionista dos últimos quatro séculos. A economia cresceu, o mundo transformou-se, e nosso conviver humanitário carece de reflexão e novas tomadas de posição. Momento de avançarmos do modelo cartesiano para uma nova construção do saber, incluindo o desafio do ser humano complexo e com múltiplas integrações concomitantes. Um ser integral bio-psico-social-espiritual e preocupado com o habitat e a qualidade de vida de todos.


Nova proposta, novo paradigma : Assmann e Sung (2000) defendem que a felicidade como o fim essencial do homem está ligado a si próprio, mas também a todo o planeta, requerendo para isso que "o desejo de solidariedade se transforme em necessidade vital personalizada como experiência própria em um número crescente dos habitantes desse planeta". A essência humana é vista não como fundamentada na racionalidade, mas na nossa capacidade de desejarmos uns para os outros uma verdadeira alegria de viver, um amor solidário que se complementa na felicidade do outro, enquanto o outro igual a si próprio.
O caminho proposto é o do reconhecimento do outro enquanto outro = "alter", de forma inclusiva, participativa, cooperativa e valorativa. Muda-se o paradigma dominante, pois se na idade média a confiança estava no poder da igreja, no mundo atual a confiança parece se estabelecer em torno do mercado financeiro. As teorias econômicas com estranhos pontos em comum com as teorias teológicas, onde se busca um salvador para todos, num apelo para uma confiança irrestrita no outro = instituição, Deus.
Nessa perspectiva acreditamos que se o homem é fruto da cultura, portanto da experiência, pode-se mudar a forma de se desejar e viver a experiência, portanto a cultura. A tríade cérebro, enquanto substrato anatômico e físico; mente, enquanto construção subjetiva a partir da interação com o meio; e cultura, enquanto da ordem do social maior, nos mostra que nossa humanidade é construção integrada e não única, imprinting cultural de que nos fala Morrin. Um novo paradigma se faz emergente, com a aproximação entre ciência e filosofia, numa busca de integrar com mais humanidade o saber e construir uma nova sociedade (CAMUS, 2000).

A sociedade pós moderna precisa ser reconceituada, pois é por demais marcada pela razão que luta contra a ambivalência que ela mesma se impôs. Como conseqüência vemos aumentar a intolerância, a rigidez e a exclusão entre as pessoas. A cultura atual, na tentativa de acabar com a ambigüidade inerente à condição humana, faz surgir os medos e as ansiedades pelos diferentes, e então estes são projetados nos que estão à margem da ordem social, os excluídos; daí se querer distância deles, e até mesmo eliminá-los. Assim acontece quando em Bioética alguns defendem que só tendo utilidade, função, o ser humano está apto para a vida, negando a própria ambigüidade desta.
É preciso olhar e nos relacionarmos com o ser humano de um modo e razão diferentes, levando-se em conta o aspecto transdisciplinar de análise, incluindo os temas do desejo, da epistemologia, da sociologia, da psicologia, da antropologia, outros. A solidariedade podendo ser um princípio que facilite as relações entre as pessoas, devendo estar presente nas discussões dos valores fundamentais da Bioética. Faz-se necessário nesse novo paradigma emergente, a prática consciente e constante do diálogo, e para Siqueira (2008, p. 60), "[...]precisamos nos preparar para o tempo de falar e ouvir." Propõe o resgate da maiêutica socrática, onde o diálogo é o instrumento que busca a verdade. A felicidade da maioria podendo ser desejada e afirmada em possibilidades reais, numa relação mais simétrica e horizontal, numa busca de vínculos relacionais que promovam crescimento e satisfação para um maior número de pessoas, para também no futuro não meditarmos sobre as mesmas dúvidas das gerações passadas.


Considerações Finais: Analisando historicamente a estrutura do pensamento ocidental dominante desde o século XVI com Descartes, até o momento atual da Bioética enquanto campo de conhecimento de saberes compartilhados, podemos concluir que um novo paradigma se faz emergente para dar conta das angústias e sofrimentos da vida moderna. O resgate da sociabilidade cooperativa como princípio articulador da coesão social, onde o diálogo e a solidariedade sejam os instrumentos para se medir as complexas situações humanas vivenciadas, em detrimento da confrontação, da competitividade e da lógica mercantil. Não desaparece a competitividade, mas o mundo do outro aparece como mundo co-afirmado, mundo possível e de pertença igualitária.
Os problemas do nosso tempo são complexos e exigem posturas mais dialogais e consensuais. O saber bipartido busca novas integrações e formas de lidarmos com a vida e o morrer, e esses são imperativos no nosso cotidiano. Certezas rapidamente são transformadas em questionamentos e a cautela e a ponderação são valores pertinentes às questões do dia. Avanços tecnológicos sem reflexão ética têm se mostrado perniciosos e perversos na economia de mercado vigente. É preciso discutir com critérios mais claros o que é mais adequado fazer e porque, sem a sedução das promessas mágicas que vem junto com cada descoberta tecnológica e científica. A Bioética do século XXI traz o resgate da reflexão filosófica para os encaminhamentos práticos que precisamos ter na ordem do dia. O pensar filosófico como aquele que perpassa toda ciência procurando soluções criativas aos problemas existentes. Para o filósofo, conversar ? falar ? argumentar é o exercício de uma arte que fala de seu amor à sabedoria, para além de qualquer saber bipartido e linear.
De acordo com Pessini (2008), a filosofia assume seu lugar junto às ciências médicas, apontando uma outra possibilidade de análise dos problemas da Bioética clínica, trazendo o paciente como pessoa (Salvador, 2009), num momento muito oportuno, quando este havia se tornado um número, um órgão ou um consumidor. Pessini ( 2008) propõe reflexões éticas não apenas em relação aos seres humanos, mas a todos os seres vivos, incluindo em sua análise as questões dos valores que temos para a vida; do meio ambiente; da cultura; da mediação com um tipo de progresso que facilita e garante a vida sem ameaçá-la. Por um resgate no século XXI da filosofia com a ciência no enfrentamento das difíceis questões do nosso tempo.
Faz-se, portanto, necessária nossa participação ativa, prática, inclusiva, pois boa parte de nossa conviviabilidade depende das escolhas que fazemos ao longo da vida e de como estabelecemos laços comunicativos e formas de pertencimento. É preciso uma ética que leve as pessoas e o Estado a respeitar acordos internacionais, não como normas ou impositivos, mas como postura diferenciada diante da vida. E mais que acordos com os outros, precisamos de uma nova tomada de posição interna diante da vida e do universo, com atitudes cuidadoras que facilitem o conviver e a inclusão do outro no mundo de significações possíveis.
Como nos afirmamos em nossos relacionamentos com outras pessoas, e a forma como intervimos com nosso saber racional e subjetivo, são construções históricas e afetivas de processos conscientes e inconscientes que vão facilitar ou dificultar a vida desta e das futuras gerações.
Concluindo, podemos dizer que Potter, assim como Descartes no final de sua vida, reconhece que a Bioética tornara-se algo muito além do que imaginara, e em seus escritos finais de 1998, assim se expressa em Pessini (2008, p.50): "[...] o que lhes peço é que pensem a Bioética como uma nova ética científica que combine a humildade, responsabilidade e competência, numa perspectiva interdisciplinar e intercultural e que potencialize o sentido de humanidade das pessoas".



Referências


1- ASSMANN, Hugo e SUNG, Jung Mo. Competência e sensibilidade solidária: educar para a esperança. Petrópolis: Vozes, p.166-205, 226-267, 2000.

2- BEAUCHAMP, Tom. CHILDRESS, James. Principles of biomedical ethics. New York: Oxford, 2001.

3- BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano e compaixão pela terra. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

4- CARBINATO Margareth, MOREIRA Wagner Wey. Corpo e saúde: a religação dos saberes. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, 27 (3): 185-200, ano de 2006.

5- CAMUS, Albert. A quem falar de urgência? In: RANDON, Michel. O pensamento transdisciplinar e o real. São Paulo: Triom, 2000.

6- DESCARTES, René. Meditações. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

7- GARRAFA, Volnei. Da bioética de princípios a uma bioética interventiva. Revista Bioética, volume 13, número 1, 2005.

8- GARRAFA, Volnei; SELLI, Lucilda; MENEGHELI, S. N. Bioética, solidariedade, voluntariado e saúde coletiva: notas para discussão. Revista Bioética, volume 13 número 1, 2005.

9- GRECO, Dirceu. Ética, Saúde e Pobreza - As Doenças Emergentes no Século XXI. Bioética - vol.7 n 2, 1999. p. 189-198,

10- GOLDIM, Jose Roberto. A evolução da definição de Bioética de Vans Potter, de 1970 a 1998. Site da UFRGS, www: goldimbioetica.com.br.Consultado em 26 de setembro de 2009

11- JONAS, Hans. El principio de responsabilidade: ensayo de uma ética para civilizacion tecnológica. Barcelona: Herder, pg. 36-40, 1995.

12- LOWN, Bernard. A arte perdida de curar. São Paulo: JSN, 1997.

13- MORRIN, Edgar. A religação dos saberes: o desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

14- PASCAL, Blaise. Pensamentos. São Paulo: Martin Claret, 2003.

15- PESSINI, Leocir. BARCHIFONTAINE, Christian. Problemas atuais de Bioética. 8ª edição, revista e ampliada. São Paulo: Loyola, 2008.

PESSINI, Leocir. Bioética e o desafio do transumanismo: ideologia ou utopia, ameaça ou esperança? Revista Bioética, vol. 14, número 2, 2006.

16- SALVADOR, Helder. Elementos para compreensão filosófica do ser humano como pessoa. Redes: Revista Capixaba de Filosofia e Teologia. Ano 7, n.12, 2009.

17- SIQUEIRA, Jose Eduardo; ZOBOLI, Elma; KIPPER, Delio Jose (orgs). Bioética Clínica. São Paulo: Gaia, 2008.

18- TARNAS, Richard. A epopéia do pensamento ocidental: para compreender as idéias que moldaram nossa visão de mundo. Tradução de Beatriz Sidou- 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

19- VALLE, Silvio. Regulamentação da biossegurança em biotecnologia. Rio de Janeiro: Auriverde, 1998.