Bíblia: Palavra de Deus… e dos homens? Noções introdutórias

Por Neri de Paula Carneiro | 27/06/2024 | Bíblia

DIOCESE DE JI-PARANÁ
PARÓQUIA NOSSA SENHORA APARECIDA
Rolim de Moura – RO
Escola Bíblica Permanente

Módulo: 
INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS BÍBLICOS E AO PENTATEUCO


Bíblia: Palavra de Deus… e dos homens?
Noções introdutórias


Neri de Paula Carneiro

Rolim de Moura 
2023
Sumário


Introdução                                                                      4
Parte I
INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS BÍBLICOS                     5
Para começar                                                                  5
1- Distâncias que nos separam da Bíblia                   6
2- Quando a Bíblia foi escrita?                                     8
3- A palavra BÍBLIA                                                        9
4- O autor da Bíblia                                                        9
5- A definição do Cânon                                               11
6- A língua em que a Bíblia foi escrita                        13
7- Bíblia católica e “crente”                                           14
8- Formação dos livros bíblicos                                   15
9- Antigo Testamento e Novo Testamento (AT/NT)  16
10- A Geografia e a História                                         18
11- Os capítulos e os versículos                                   20
12- Como usar os capítulos e versículos?                   21
13- Critérios ou chave de leitura                                  22
Enfim…                                                                             23

Parte II
INTRODUÇÃO AO PENTATEUCO                                  24
Pentateuco: algumas notas                                         24
1- Começando pelo começo                                        23
2- Antes da Bíblia a vida                                               26
3- O chão onde nasceu a Bíblia                                  27
4- Região de conflitos                                                  29
5- Quem era esse povo?                                              32
6- E o Pentateuco?                                                        34
7- O que dizem os textos bíblicos?                            36
8- Os títulos dos livros do Pentateuco                      38
Sugestões de Leituras                                                41

 

 

 


Introdução 


Aqui estão algumas informações preliminares para quem deseja fazer um estudo bíblico. 

A primeira parte é uma introdução geral ao estudo Bíblico. A segunda parte foi produzida como introdução ao estudo do Pentateuco. Por terem sido produzidos em momentos distintos e para públicos diferentes as duas partes se complementam e, ao mesmo tempo, apresentam algumas repetições.

Trata-se de um texto cuja única finalidade é disponibilizar informações básicas aos agentes de pastoral da Escola Bíblica Permanente, da Paróquia Nossa Senhora Aparecida. Esta, por sua vez, tem como objetivo a formação dos agentes inseridos nas diferentes atividades e ministérios e pastorais da paróquia.

Embora estejamos numa Escola Bíblica, este não é um texto acadêmico-científico, mas pastoral. Por esse motivo optamos por não carregá-lo de referências e mesmo ao final apresentamos apenas alguns sites nos quais podem-se complementar as informações. 

Também sugerimos a leitura das introduções na Bíblia de Jerusalém, a qual usamos para as citações deste material. Muito úteis, também, são as introduções da Bíblia Sagrada, Edição Pastoral. Ambas da editora Paulus.

Está disponível para quem desejar utilizar, com a ressalva de que, ao fazer uso ou reprodução do material tem a obrigação moral de citar a fonte e a autoria. Frisando, ainda, que este não é um material de cunho científico, mas unicamente pastoral. 

Por tratar-se de um texto sem revisão, o autor aceita observações, comentários e correções.


Parte I

INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS BÍBLICOS 

Para começar

O que é a Bíblia para nós? A que estamos nos referindo quando usamos (ouvimos, lemos ou falamos) a palavra Bíblia?
A resposta imediata é: a Bíblia é a Palavra de Deus! As Sagradas Escrituras que nos transmitem a Palavra de Deus!
Entretanto, será que isso responde toda a nossa indagação sobre isso que chamamos de Palavra de Deus? Será que não deveríamos ir um pouco além do que sempre ouvimos e falamos? Será que não deveríamos olhar o que se esconde naquilo que nos é tão familiar? 
Isso nos leva a entender que devemos dar alguns passos a mais. Não só movidos pela curiosidade, mas principalmente porque esses escritos estão nos fundamentos de nossa fé cristã. E, como nos ensina o apóstolo Pedro (1Pd 3,15), devemos estar sempre prontos para dar as razões de nossa fé. Pois esse saber, que provém do Senhor, pode nos livrar “da boca do leão” (2Tm 4,17). A fim de não sermos ludibriados pelos falsos profetas, falsos pastores, falsos messias, falsos apóstolos… enviados pelo pai da mentira. 
Somos convidados a conhecer as razões de nossa fé a fim de aderirmos à verdade que é o próprio Cristo Senhor. “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8,32). O apóstolo Paulo acrescenta, indicando como deve ser o caminho da pessoa que tem fé: “Tu, porém, permanece firme naquilo que aprendeste e aceitaste como certo; tu sabes de quem o aprendeste. Desde a infância conheces as Sagradas Letras; elas tem o poder de comunicar-te a sabedoria que conduz à salvação pela fé em Jesus Cristo” (2Tm 3,14-15).
Isso nos leva a constatar que esse estudo nos é cobrado pelo nosso próprio ato de fé. Hoje não somos mais iniciantes na caminhada da Igreja; não somos crianças na compreensão das coisas do céu. Cabe a nós sermos luz a guiar nossas comunidades. Portanto cabe a nós agirmos como adultos na fé. “Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Depois que me tornei adulto fiz desaparecer o que era próprio da criança… Agora meu conhecimento é limitado, mas depois conhecerei como sou conhecido” (1Cor 13,11-12). 
Inúmeros documentos da Igreja nos convidam ao estudo mais aprofundado da Palavra de Deus. Ao longo dos séculos o convite é o mesmo. No Concílio de Trento e no Concílio Vaticano II a Igreja apresente orientações para o Estudo; o Papa Leão XIII, com a encíclica Providentissimus Deus, especificamente com a criação da Escola Bíblica de Jerusalém e o Papa Pio X, com a criação do Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, indicam caminhos.
Também o Papa Pio XII, entre outros, com a encíclica Divino Afflante Spiritu, mostra a importância de considerar o contexto daqueles que produziram o Texto Sagrado. Diz o Papa: “O sentido literal de um escrito, muitas vezes não é tão claro nas palavras dos antigos orientais como nos escritores do nosso tempo. O que eles queriam significar com as palavras não se pode determinar só pelas regras da gramática e da filologia, nem só pelo contexto; o intérprete deve transportar-se com o pensamento àqueles antigos tempos do Oriente, e com o auxílio da história, da arqueologia; etnologia e outras ciências, examinar e distinguir claramente que gêneros literários quiseram empregar e empregaram de fato os escritores daquelas épocas remotas. De fato os antigos orientais, para exprimir os seus conceitos, nem sempre usaram das formas ou gêneros de dizer de que nós hoje usamos; mas sim daqueles que estavam em uso entre os seus contemporâneos e conterrâneos. Quais eles fossem não o pode o exegeta determinar a priori, mas só por meio de um diligente exame das antigas literaturas orientais” (DAS. 20, grifo nosso).


1- Distâncias que nos separam da Bíblia

Na verdade não estamos distantes da Palavra de Deus. Ele está sempre próximo e continua nos falando o tempo todo. E não é só isso, o Senhor nos fala não só pelas Sagradas Escrituras, mas também pela natureza, pelos acontecimentos, pelas pessoas… e diretamente em nossa consciência. Para ouvi-lo é necessário apenas colocar-se na escuta e fazer silêncio interior; olhar para os lados e perceber o clamor dos marginalizados, dos excluídos...
Claro, o Senhor também nos fala pela Igreja. Ou seja, a Igreja, em nossos dias, continua sendo a voz de Deus. Não foi a toa que Jesus disse a Pedro: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (Mt 26,18). Disse, também: “Eu te darei as chaves do Reino dos Céus e o que ligares na terra, será ligado no céus, e o que desligares na terra será desligado no céu” (Mt 16.19). E, ao despedir-se fez uma recomendação especial a Pedro: “Apascenta minhas ovelhas” (Jo 21,17). 
Isso foi o que nos ensinaram os padres conciliares, na Constituição Dei Verbum: “Deus dispôs amorosamente que permanecesse integro e fosse transmitido a todas as gerações tudo quanto tinha revelado para salvação de todos os povos. Por isso, Cristo Senhor, em quem toda a revelação do Deus altíssimo se consuma (cfr. 2 Cor. 1,20; 3,16-4,6), mandou aos Apóstolos que pregassem a todos, como fonte de toda a verdade salutar e de toda a disciplina de  costumes, o Evangelho prometido antes pelos profetas e por Ele cumprido e promulgado pessoalmente, comunicando-lhes assim os dons divinos. Isto foi realizado com fidelidade, tanto pelos Apóstolos que, na sua pregação oral, exemplos e instituições, transmitiram aquilo que tinham recebido dos lábios, trato e obras de Cristo, e o que tinham aprendido por inspiração do Espírito Santo, como por aqueles Apóstolos e varões apostólicos que, sob a inspiração do mesmo Espírito Santo, escreveram a mensagem da salvação. 
Porém, para que o Evangelho fosse perenemente conservado integro e vivo na Igreja, os Apóstolos deixaram os Bispos como seus sucessores, «entregando lhes o seu próprio ofício de magistério». Portanto, esta sagrada Tradição e a Sagrada Escritura dos dois Testamentos são como um espelho no qual a Igreja peregrina na terra contempla a Deus, de quem tudo recebe, até ser conduzida a vê-lo face a face tal qual Ele é (cfr. 1 Jo 3,2)” (DV 7)
Entretanto, mesmo Deus estando em permanente comunicação conosco; embora a bíblia esteja ao alcance de nossas mãos… esse conjunto de escritos está, ao mesmo tempo, distante de nós. Precisamos entender essa distância para superá-la e nos aproximarmos do Senhor, como nos orientou o Papa Pio II (DAS 20).
Então, de que distâncias estamos falando?
Vejamos por partes:

História
Embora não seja um livro de história, entendida como ciência, a Bíblia nos apresenta alguns elementos e nuances da história de um povo, que não somos nós; a história do povo da Bíblia não é a nossa história. Entretanto, por meio da Bíblia, Deus quer nos falar em nossa história, quer iluminar nossa vida. Podemos dizer que a Bíblia é uma leitura teológica da história e foi escrita para alimentar a fé e a força do povo, ajudando-os a vencer os percalços de sua vida… e hoje ela é luz para a nossa vida e nossa história.

Geografia
Vivemos no Brasil, país da América Latina. Repleto de problemas sociais, econômicos… entre outros. Estamos a milhares de quilômetros de distância da região do Oriente, onde foram produzidos os textos bíblicos. O relevo e as nações que estiveram envolvidas na produção dos textos bíblicos ajudaram a definir a linguagem, os exemplos, as comparações usadas nos textos… e tudo isso é diferente da nossa geografia. E tudo isso interfere no texto: na sua produção e na sua compreensão, hoje.

Cultura
Esta é mais uma distância entre nós e o texto, a história e a região em que nasceram os Escritos Sagrados. O povo da Bíblia tinha outros costumes, outra língua, outra comida, outras roupas, outras formas de relações familiares… E tudo isso era diferente da nossa cultura. Por isso, os elementos culturais do texto bíblico precisam ser compreendidos a partir daquele contexto, pois alguns deles acabam nem fazendo sentido para a nossa cultura.

Cronológica
Essa é a distância mais evidente. Vivemos num mundo de tecnologia avançada, no século XXI. O povo da bíblia viveu há mais de dois mil anos. Na verdade são vários povos mencionados nos escritos bíblicos. Povos que representam um período de milhares de anos. Entre os povos mais antigos, mencionados na bíblia, e nossos dias há uma diferença de aproximadamente cinco mil anos. 
Todas essas “distâncias” nos separam da origem do texto bíblico e precisam ser levadas em consideração quando estamos lendo ou estudando os Escritos Sagrados da Palavra de Deus. Entretanto, nada disso impede nosso contato com Deus, mediante sua Palavra e não impede que ouçamos o que nos diz, cada vez que lemos ou ouvimos com fé e em sintonia com a comunidade e com a Igreja. 
Além disso, esses escritos nasceram em comunidades e para alimentar a fé das pessoas dessas comunidades. Por isso, a compreensão e a vivência do que a Palavra propõe fica mais fácil em comunidade. Não nos esqueçamos que Deus também é uma Comunidade de três Pessoas. E esse Deus Comunidade se deixa conhecer melhor pelo povo reunido em nome da sua Palavra. 

2- Quando a Bíblia foi escrita?

Não temos uma data exata. Mesmo porque são vários livros e eles não foram escritos ao mesmo tempo nem de uma só vez. Também foi escrita toda no mesmo lugar nem pela mesma pessoa. Por tudo isso não dá para definir, com exatidão, uma data para cada livro. Menos ainda para toda a Bíblia.
Na verdade, antes de ser escrita, a Bíblia foi contada. E antes de ser contada foi vivida. A Bíblia é o resultado do que foi vivido, depois contado para, só depois, ser escrita. Por isso, podemos dizer que a Bíblia é o resultado da vida das pessoas em contato com Deus.
Quer dizer, em algum momento da história do povo, diante de alguma dificuldade, alguém ou o grupo todo, pediu ajuda de Deus para resolver algum problema. Resolvido o problema, alguém ou toda a comunidade, percebeu que a solução veio de uma intervenção divina. 
Esse fato e essa solução passou a fazer parte da história, de forma que nas reuniões do grupo o fato era relembrado e as pessoas agradeciam a Deus pela vitória, pela solução encontrada. Com o tempo as pessoas começaram a celebrar essa vitória, sempre agradecendo a Deus...
Exatamente como nós fazemos hoje. Pedimos uma graça. Ao sermos atendidos, contamos e recontamos e outros repetem nossa história, mostrando como Deus foi bom. Damos, assim, testemunho da graça alcançada.
Assim, um fato vivido passou a ser contado. A data desse fato se perdeu nalgum cantinho da história, mas o fato e a gratidão permaneceram. E assim, geração após geração, o fato vais sendo relembrado, celebrado e a gratidão permanecendo… até que alguém resolveu fazer uma poesia, um romance, uma narrativa de heróis ou criou algum outro gênero literário… e aquele fato que era uma tradição viva da história virou texto… e continuou a ser usado nas celebrações. Passou a ser lido nas celebrações como um jeito de animar a fé.
Com o transcorrer dos tempos o fato, a tradição do fato e o texto contando o fato foi entendido como sendo uma mensagem divina. Passou a ser visto como Palavra de Deus. E continuou sendo usados nas celebrações da comunidade. E as pessoas entenderam que Deus se manifesta com sua graça e se deixa reconhecer pela comunidade.
Algo parecido com nossos cantos litúrgicos mais antigos: “Bendita e louvada seja, no céu a divina luz...”; “Louvando a Maria, o povo fiel, a voz repetia, de são Gabriel...”; “Viva a mãe de Deus e nossa...”. Nossos avós cantavam; nossos pais nos ensinaram e hoje, muitas comunidades, continuam cantando.... Mas quem os compôs? Quando foram compostos?
Em relação aos textos bíblicos, inicialmente vida cotidiana, depois memória do fato e por fim a redação. Nesse processo muito tempo se passou. Só como exemplo tomemos os episódios relacionados a Abraão. Os fatos remontam a aproximadamente 1800 anos antes de Cristo (aC). Entretanto suas aventuras e andanças foram redigidos aproximadamente 1000 anos depois. Mesmo assim não temos as datas exatas. 
Em síntese, podemos dizer, em relação ao Antigo Testamento: o processo da redação dos primeiros fragmentos deve ter se iniciado por volta do anos 1250 aC. Esse processo terminou por volta do ano 100 aC. Portanto, foram mais de 1000 anos para se formarem os textos do Antigo Testamento, contando o que se viveu milhares de anos antes...
Em relação aos escritos do Novo Testamento, o processo foi semelhante. A diferença é que o tempo entre os fatos vividos e a redação foi mais curto. Sabemos que os textos mais antigos teriam surgido por volta de 20 anos após a morte e ressurreição de Jesus. Ou seja, começou a ser redigido por volta do ano 50 e ficou pronto por volta do ano 100. Ou seja, o Novo Testamento demorou cerca de 50 anos para ser redigido. Mas aqui também não temos datas exatas e nem os autores definidos com absoluta certeza.


3- A palavra BÍBLIA

Para nós, lida pela nossa fé, a Bíblia é Palavra de Deus. São as Sagradas Escrituras. São os Livros Sagrados. São Palavras Santas. São Palavras de vida. É Palavra do Senhor. É Palavra de Salvação… Quanto a isso não temos a menor dúvida.
Mas também para nós ela pode ser fonte de estudo e conhecimento para chegarmos mais perto daquilo que Jesus de Nazaré quer de nós. Conhecendo melhor a Bíblia, podemos ser mais fiéis aos seus ensinamentos e mais nos aproximamos da proposta de Deus.
Assim sendo, perguntemo-nos, o que significa a palavra bíblia?
Trata-se de uma palavra que se originou da língua grega. Passou a ser usada em nossa língua para simplificarmos a comunicação. Em vez de usarmos as expressões: Palavra de Deus ou Sagradas Escrituras, usamos apenas BÍBLIA.
Entretanto, em seu sentido inicial e original, essa palavra significa um conjunto de livros. Uma coleção de livros. E quando observamos cada um dos vários escritos que a compõem podemos dizer que essa coleção forma uma biblioteca. 
Uma biblioteca que, para o catolicismo, é formada por 73 livros. E eles tratam dos mais diversos assuntos: tem poesia, tem histórias de heroísmo, história de namoro, amor e casamento, tem escritos de aventura e novelas… tem até um livro de suspense, parecendo ficção científica e filosofia. Mas tudo isso só tem um ponto de origem: a fé do povo. Também podemos dizer que tudo isso tem uma base teológica: a crença na companhia de Deus! Sem a fé, que dá a certeza da companhia de Deus ao longo da jornada, os textos da Bíblia seriam lindos textos, com belas mensagens… A fé de um povo esperançoso foi que entendeu serem esses lindos textos repletos de belas mensagens, a Palavra de Deus a nos guiar.
Isso ocorre porque essa biblioteca tem livros escritos com os mais diversos GÊNEROS LITERÁRIOS, ou seja, são diferentes estilos e formas de escrever, para contar algo, para ajudar a refletir, para rever a própria vida, para oferecer inspiração e rumos por onde continuar a vida e, principalmente, para ajudar a rezar e encontrar Deus. 
Entretanto, aqui e neste momento, basta saber que a Palavra de Deus é formada por vários livros aos quais chamamos de Bíblia. E quando usamos a palavra Bíblia nos referimos, ao mesmo tempo: às Sagradas Escrituras e aos vários livros com os diferentes estilos de redação.


4- O autor da Bíblia

A autoria da Bíblia não é uma questão que pode ser tratada de forma simplificada. 
Não por ser difícil, nem complicada, mas porque não temos apenas uma resposta. Ou, dizendo melhor: não temos como saber QUEM, ou seja qual foi a pessoa que a redigiu este ou aquele texto.
Sabendo que são 73 livros (e estamos falando da Bíblia Católica), a gente poderia supor que teriam sido 73 pessoas a escrever. Mas não é bem assim…
Ah! bem lembrado! Alguém deve estar se questionando e nos lançando a pergunta: Se a Bíblia é Palavra de Deus, então não é Deus o seu autor?
Na verdade são duas questões: uma é a autoria. A outra a redação. Sem falar da questão da Inspiração, que está na base da Palavra de Deus.
Não temos dúvida. De fato, o autor da Bíblia é Deus. É Ele quem inspira! 
Isso nos ensinam os padres conciliares, na Constituição Dogmática “Dei Verbum”, afirmando que “para escrever os livros sagrados, Deus escolheu e serviu-se de homens na posse das suas faculdades e capacidades, para que, agindo Ele neles e por eles, pusessem por escrito, como verdadeiros autores, tudo aquilo e só aquilo que Ele queria” (DV 11). 
Isso é o que nos ensina Paulo, ao escrever para Timóteo: “Toda escritura é inspirada por Deus e útil para instruir, para refutar, para corrigir, para educar na justiça” (2Tm 3,16). Ou seja, foi Deus quem INSPIROU algumas pessoas a colocar por escrito a sua mensagem. Mas não foi Deus mesmo que se sentou pegou papel e caneta – ou o computador, se fosse em nossos dias – e se pôs a escrever. Portanto, Deus INSPIROU as pessoas que fizeram a redação. 
E a inspiração também não acontece como se Deus tivesse sentado ao lado da pessoa e lhe falado: “escreve isto e mais aquilo...”. A inspiração pode ser aquela sensação, quase certeza, de que devemos agir ou falar determinadas coisas. Popularmente nos referimos a ela como “a voz da consciência”. Essa inspiração pode acontecer, como o afirmam alguns profetas e o próprio texto do Apocalipse de João, na forma de uma “visão”. Por exemplo, no caso do profeta Habacuc: “Oráculo que o profeta Habacuc recebeu em visão” (Hab 1,1). 
Nessas visões o profeta ou o visionário recebe a ordem de escrever: “Escreve a visão, grava-a claramente sobre tábuas para que se possa ler facilmente” (Hab 2,2). Algo semelhante nos informa o livro do Apocalipse de João: “Revelação de Jesus Cristo: Deus lha concedeu para que mostrasse aos seus servos as coisas que devem acontecer muito em breve. Ele a manifestou com sinais por meio de seu anjo, enviado ao seu servo João” (Ap 1,1).
Com isso chegamos ao redator, ou ao texto na forma escrita.
Inspirado por Deus, alguém escreve. Redige aquilo que se celebra nas festas da comunidade ou que alguém conta que aconteceu com os antepassados. Mas é muito difícil saber quem foi essa pessoa que escreveu. 
No mundo antigo não era estranho que alguém atribuísse seu próprio texto a uma pessoa famosa. Isso dava credibilidade. E as vezes gerava confusão, como na comunidade de Tessalônica. “Não percais tão depressa a serenidade de espírito, e não vos perturbeis nem por palavra profética, nem por carta que se diga vir de nós, como se o dia do Senhor estivesse próximo. Não vos deixeis enganar de modo algum...” (2Tes 2,2-3). Ou falando à comunidade da Galácia (Gl 6,11) “Vede com que letras grandes eu vos escrevo, de próprio punho”.
Mesmo quando dizemos “Livro do profeta Amós”, “Evangelho segundo Lucas”; “Carta de Paulo aos Filipenses”… não temos como dizer que esse texto, de fato, tenha sido redigido por Isaías, Lucas ou Paulo. 
Podemos exemplificar isso com alguns escritos paulinos. Assim termina a carta aos Colossenses: “A saudação eu, Paulo, a faço do próprio punho. Lembrai-vos das minhas prisões. A graça esteja convosco” (Col 4,18). O raciocínio é simples: se a saudação é “do próprio punho” significa que o restante do texto não é.
Veja a solução que o apóstolo encontrou para as cartas falsas. Escrevendo à comunidade da Tessalônica diz: “A saudação é do meu próprio punho, Paulo. É este o sinal que distingue minhas cartas. Aí está a minha letra. A Graça de nosso Senhor Jesus Cristo esteja com todos vós” (2Tes 3,17-18). Muita gente estava dando orientações erradas e usando o nome do apóstolo. 
Podemos, também, tomar o caso da visão de Jeremias, na qual recebe a ordem: “Toma um rolo e escreve nele todas as palavras que te dirigi”. Cumprindo a ordem, Jeremias chama seu secretário “que escreveu num rolo, conforme o ditado de Jeremias, todas as palavras que Javé lhe dirigira” (Jr 36,1-4).
Então, quem escreveu a Bíblia?
Pessoas inspiradas por Deus. Pessoas usando seu próprio nome ou o de algum personagem importantes para as comunidades. Podemos usar as palavras do frei Carlos Mesters, tirada de um livrinho de 1986, chamado: “Bíblia, livro feito em mutirão”. Lá ele diz: “Não foi uma única pessoa que escreveu a bíblia. Muita gente deu sua contribuição: homens e mulheres; jovens e velhos; pais e mães de família; agricultores, pescadores e operários de várias profissões; gente instruída, que sabia ler e escrever e gente simples que só sabia contar histórias...”


5- A definição do Cânon

Hoje sabemos que a Bíblia não ficou pronta da noite para o dia. E nem tudo que os antigos escreveram sobre Deus e sua ação na história entrou para a Bíblia. Então quem definiu quais dos antigos escritos correspondem à palavra de Deus e quando foi isso?
Também não temos respostas exatas! O que sabemos é que houve um longo e tortuoso processo para a definição do Cânon. 
Comecemos dizendo que os escritos que formam nossa Bíblia atual, ou os livros da Bíblia, formam uma lista. Essa lista de livros precisou de um longo tempo para ser definida. A isso é que chamamos de definição do Cânon. 
E CÂNON é uma palavra de origem hebraica. Em sua origem referia-se a uma vara usada para medir. Transcrita para o grego e depois para o latim ficou CÂNON, com o sentido de régua, regra, norma. 
No site: “abiblia.org”, Luiz da Rosa nos informa que: “O vocábulo ‘cânon’ é um descendente direto, através do grego e do latim, de uma palavra semita que significa ‘cana’(kaneh em hebraico) . Por ser longa, fina e reta, a cana pode ser usada para medir, como hoje usamos o metro; por isso, a palavra para cana veio a denotar uma vara de medida, depois, por extensão metafórica, uma regra, um padrão, uma norma. Com o tempo ela serviu tanto para ser uma medida quanto para representar padrão de alguma coisa, de norma de vida, por exemplo.
A partir do Sínodo de Laodiceia (360), os livros da Bíblia são chamados canônicos por que a Igreja os reconhece como normativos para a fé e para a vida dos fiéis sobre a base do seu conteúdo objetivo”  (Confira: https://www.abiblia.org/ver.php?id=1171) 
Devemos nos lembrar que inicialmente costumava-se contar as histórias. Algumas delas foram redigidas e esses escritos, sobre um determinado fato, passaram a ser lidos. Sendo lidos foram preservados e quase inalterados; e ficaram mais conhecidos. E quanto mais conhecido, mas apreciado… A respeito de alguns desses textos, algumas pessoas começaram a dizer coisas como “quando ouço essa leitura, parece que Deus esta falando comigo”. 
Podemos tomar como exemplo as cartas no início do segundo livro dos Macabeus. Estimulando a participação na festa da Dedicação do Templo e lembrando as coleções de escritos dos antigos. Aí se afirma que Neemias reuniu livros para formar sua biblioteca, “da mesma forma que Judas recolheu todos os livros que tinham sido dispersos” (2 Mac 2,13-15). 
Podemos dizer que havia muitos textos avulsos, espalhados pelas comunidades. Muitos deles eram lidos nas várias festas e comemorações da tribo. Eram lidos, nas celebrações para: agradecer as colheitas; lembrar uma vitória; celebrar um casamento; falar de alegria; lamentar um problema. E, quase sempre, percebiam a ação de Deus nos fatos, narrados na leitura. 
O povo tinha profunda convicção de que nos escritos antigos havia algo da divino e eram usados como inspiração: “temos por consolo os livros santos que estão em nossas mãos” (1Mac 12,9). Neste caso de Macabeus,  essa confiança, que provém do Senhor ajudou a renovar a amizade com os espartanos.
Também devemos ter presente, entretanto, que nos tempos antigos não havia livros, como os nossos. Os textos, de modo geral, eram anotados em papiro ou pergaminho. Esses papiros, ou os pergaminhos, eram guardados em rolos. Em vários lugares formaram-se coleções de rolos com textos antigos, como mencionado na carta do livro dos Macabeus (2Mac 2,13-15)
As comunidades, em suas diferentes celebrações, usavam essas coleções de textos em momentos importantes da vida celebrativa: agradecendo, lamentando ou pedindo as graças de Deus. E esse foi um processo que durou muitos séculos durante os quais foram se formando conjuntos de textos. Essas coleções eram preservadas, copiadas e ajudavam a alimentar a fé, a esperança e o sentido de agradecimento. 
Na forma como temos hoje, a lista dos livros que a Igreja considera INSPIRADOS foi definida no Concílio de Trento (1545 a 1563). A decisão do Concílio, entretanto, foi um ponto no final de um percurso de mais de três mil anos de formação e controvérsias. Não é demais relembrar que o Concílio Vaticano II (concluído em 1965), mediante a Constituição Dogmática “Dei Verbum” reafirmou aquilo que havia sido definido no Concílio de Trento.
Em relação ao Antigo Testamento, ainda no século I da era Cristã, os fariseus tinham uma coleção de escritos que acreditavam terem sido inspirados por Deus. Mesmo assim havia divergências entre os diferentes grupos político-religiosos. 
A decisão veio no ano 90 de nossa era. Na cidade de Jâmnia reuniu-se um grupo de judeus estudiosos. Eles decidiram aceitar a lista divulgada pelos fariseus. Fizeram isso, aparentemente para se contrapor aos cristãos que haviam assumido uma tradução grega dos escritos antigos (tradução dos setenta), usada pelos judeus da diáspora. 
Mesmo assim as divergências não cessaram. Por exemplo, Santo Agostinho adotou a versão dos LXX. Por seu lado São Jerônimo adotava a versão hebraica, como era comum entre os Padres Orientais. Prevaleceu a postura agostiniana que se oficializou no Concílio de Trento.
O que é a versão dos LXX?
A versão dos setenta, ou LXX, assumida pela Igreja e ratificada pela “Dei Verbum” (DV 22)  também chamada de septuaginta é a versão mais antiga que se conhece da Bíblia Hebraica traduzida para a língua grega comum (grego coiné). Ela foi realizada em Alexandria, entre os séculos III e I aC, com a finalidade de atender aos judeus da diáspora. Essa tradução, mais alguns livros que foram produzidos em grego, foi assumida pelos cristãos, porém não é aceita pelos judeus ligados a Jerusalém.
A origem lendária dessa tradução diz que setenta e dois sábios judeus reuniram-se para traduzir a Bíblia para a língua comum da região de Alexandria. Teriam trabalhado durante setenta e dois dias e ao final cada um tinha feito uma tradução, e quando foram conferir, todos os textos estavam exatamente iguais. 
Em relação ao Novo Testamento, as controvérsias não foram menores. Entretanto o período de definição foi mais curto. Havia alguma sintonia em relação a vários escritos Paulinos e aos Evangelhos. Em relação a algumas cartas, a Hebreus e ao Apocalipse, por muito tempo houve divergências. Em 367, santo Atanásio enumera os atuais 27 livros do Novo Testamento, como os conhecemos hoje. Mesmo assim alguns lugares continuaram a usar alguns apócrifos ou a negar a autenticidade de outros tantos escritos. 
A definição coube aos Padres do Concílio em Trento. Portanto, somente a partir do século XVI é que temos a definição o Cânon cristão, usado pela Igreja.


6- A língua em que a Bíblia foi escrita

Claro que o texto das nossas Bíblias, aqui no Brasil, está escrito em Português. 
Entretanto, queremos saber em que língua aqueles que escreveram os textos bíblicos redigiram seus escritos. 
O fato da Bíblia ter sido escrita em outras línguas tem gerado uma pequena dificuldade para algumas pessoas compreenderem o sentido de algumas passagens. Entretanto isso pode ser sanado porque nos dias atuais temos excelentes traduções, feitas diretamente das línguas originais. 
E quais são essas línguas?
Quase todo o Antigo Testamento foi produzido em Hebraico. 
Entretanto, durante o período do Cativeiro Babilônico, essa língua quase que se perdeu. Quando voltaram do exílio, os judeus usavam o Aramaico como língua do dia a dia. Por esse motivo alguns escritos do Antigo Testamento foram produzidos em Aramaico. Porém, os textos sagrados continuavam sendo copiados e lidos em Hebraico, durante as celebrações.
A partir do século III aC, havia muitos judeus espalhados pelo mundo, e por esse motivo, seus textos sagrados foram traduzidos para a língua grega. Nessa língua também foram produzidos mais alguns textos (lembrando que esses, quando se definiu o cânon, foram rejeitados pelos judeus, na definição de seu Cânon da Tanakh).
Algo semelhante ao que acontece na Igreja. Todas as nossas celebrações, nossa bíblia, os textos litúrgicos que usamos, estão em português. Mas isso só aconteceu depois das decisões do Concílio Vaticano II. Antes era tudo em latim. E ainda hoje, a língua oficial da Igreja é o latim, só que tudo está traduzido para a língua de cada país, pois são raras as pessoas que ainda estudam o latim.
Entre os judeus aconteceu algo semelhante. Com o passar dos tempos (principalmente durante depois do Exílio, 538), foi necessário que se criassem escolas, nas cidades, para as crianças aprenderem a ler e escrever o Hebraico, a fim de que o povo pudesse entender as leituras sagradas durante as celebrações. 
Jesus, com certeza, frequentou uma dessas escolas, chamada escola sinagogal, pois quase sempre estava ligada à sinagoga.
Uma pequena parte do Antigo Testamento foi produzido em Aramaico. Apenas o livro da Sabedoria foi redigido em Grego, além de algumas partes dos livros de Ester e Daniel.
Para os Judeus e depois também para as Igrejas da Reforma, não são inspirados os textos veterotestamentários (do Antigo Testamento) que foram redigidos em Aramaico e Grego. 
Em relação ao Novo Testamento, todos os cristãos o assumem sem restrições. E todo ele foi redigido em grego. Ressaltando que o Novo Testamento é um livro apenas dos cristãos, pois os judeus consideram Jesus como um herege e blasfemo. Seu livro sagrado é somente o Antigo Testamento (Tanakh) escrito em hebraico e eles continuam esperando o Messias.
Portanto, em que língua foram escritos os textos da Bíblia? Hebraico, Aramaico e Grego.


7- Bíblia católica e “crente”

Por que as bíblias dos “crentes” e dos católicos são diferentes?
Tem a ver com a língua em que os textos foram escritos e com a história do povo judeu.
Vimos que no período pós-exílico, a partir de 538 aC, os judeus passaram a usar a língua Hebraica na liturgia e o Aramaico como língua do dia a dia. Vimos também que produziram os textos sagrados principalmente em Hebraico e algumas partes em Aramaico.
Aconteceu que a partir do século III aC houve um processo de helenização na região. Ou seja, a cultura grega (língua e costumes) aumentou sua influência e quase todos passaram a usar a língua grega no comércio e em várias atividades do dia a dia. Assim os judeus, em casa usavam a língua aramaica. Na liturgia o Hebraico e nas relações sociais e comerciais usavam o grego. Nessa língua foram escritos alguns textos que depois foram aceitos no cânon cristão, especificamente o livra da Sabedoria.
Aconteceu, também que, nessa mesma época, os judeus do Egito já não entendiam mais suas línguas antigas. Usavam apenas o grego, pois era a cultura dominante. 
Diante dessa situação, um grupo de pessoas decidiu traduzir os escritos sagrados para o grego, a fim de preservar a fé judaica. A lenda diz que foram 70 sábios judeus que fizeram esse trabalho. Assim a primeira tradução da Bíblia passou a ser chamada de Septuaginta ou a tradução dos Setenta ou LXX.
Foi essa tradução que estabeleceu o primeiro cânon do Antigo Testamento, a Bíblia dos Judeus. Os judeus da Palestina, entretanto, não aceitaram essa versão dos LXX. Continuaram usando apenas os escritos em Hebraico, anteriores a essa tradução. O que estava sendo redigido em grego ficou de fora dos escritos que os Judeus assumiram como Escritura Sagrada, ou seja os textos redigidos em grego ficaram fora do cânon judaico. 
Entretanto, os livros que foram escrito em grego antes e depois dessa tradução foram adotados pelos cristãos e tudo ia bem. Mas aconteceu a chamada Reforma Protestante. 
No século XVI, Lutero e outros reformadores afastaram-se da Igreja. E um dos pontos de divergência foi o Cânon. Os Reformadores optaram por seguir o Cânon judaico. E os católicos continuaram a usar a versão da Septuaginta, e os textos redigidos posteriormente a essa tradução. (Leia mais sobre isto: https://www.abiblia.org/ver.php?id=3924 )
Os livros que os Judeus e os Reformados recusaram como inspirados, mas aceitos pelo catolicismo, são: Baruc, Tobias, Judite, Sabedoria, Eclesiástico, 1 e 2 Macabeus. Além de alguns trechos de Ester e Daniel, os quais foram redigidos em grego. 
A visão das Igrejas da Reforma, na ótica presbiteriana, a respeito do Cânon pode ser acessada em: https://filadelfiafranca.com.br/o-canon-biblico-2/, num um artigo de Paulo R. B. Anglada
Em relação ao Novo Testamento o catolicismo e as Igrejas da Reforma usam o mesmo cânon. Evidentemente o Novo Testamento não é usado pelos Judeus, pois estes são textos que dizem respeito apenas ao Cristianismo.
Em razão desses eventos históricos a Bíblia dos católicos é formada por 73 livros, ou seja: 46 livros do Antigo Testamento e 27 do Novo. Por sua vez as Igrejas da Reforma usam uma Bíblia com 66 livros, ou seja: 39 do Antigo Testamente e 27 do Novo. 
Como se pode ver, do ponto de vista bíblico, há muito mais em comum do que o que nos separa…


8- Formação dos livros bíblicos

A partir do que vimos até aqui já podemos ter uma ideia de como se formaram os livros da Bíblia. Não surgiu tudo em um só tempo e lugar. Cada livro teve o seu processo de formação. Para ser exato, temos que dizer que assim como toda a Escritura foi se formando aos poucos, cada livro também teve um longo processo de formação.
Não vamos tratar de cada um desses processos, mas procurar entender o processo básico que pode ser aplicado a todos os escritos sagrados. 
Sabemos que antes de ser Escritura Sagrada os textos bíblicos foram vividos. Mas, da mesma forma que a vida não acontece inteira em um só momento, os livros bíblicos também foram sendo formados aos poucos. Como os recém casados: primeiro sonham e planejam seus filhos. Só depois os concebem e mesmo assim ainda esperam nove meses para podê-los abraçar e ver crescer. Assim foi com os livros da Bíblia.
Podemos dizer que cada comunidade teve a sua vivência de sintonia com as ações de Deus. E nas rodas de conversa, nas reuniões de família e nas celebrações esses fatos eram relembrados. Chegou um momento em que alguém decidiu contar por escrito o que ouviu por muitas vezes nas rodas de conversa ou nas celebrações da tribo. Assim escreveu, contando esse fato, tantas vezes recontado e celebrado. 
Numa outra comunidade também aconteceu fenômeno semelhante. E numa terceira e quarta comunidade o processo se repetiu. 
Ocorria com o povo de Deus o mesmo que acontece conosco. Em nossa paróquia ou na diocese, vez por outra ocorrem encontros ou festas em que se reúnem pessoas de várias comunidades. Nesses encontros ocorrem trocas de informações e de experiências. As pessoas contam o que deu certo e o que deu errado em suas comunidades. E todos tiram lições e agradecem a ação de Deus. 
Também podemos perceber esse processo de formação em nossos livros de cantos litúrgicos. São muitos os cantos litúrgicos que nascem em nossas comunidades. Até que alguém tem a ideia de reuni-los num livreto. Ali não estão todos os cantos que se usa nas comunidades. Mas o que ali está ajuda em nossas celebrações e são comuns em várias comunidades. 
De tempos em tempos o povo de Deus reunia-se nas celebrações comuns, nos santuários. Nesses celebrações cantavam e contavam suas experiências e sua percepção da ação de Deus em suas vidas. Contavam e cantavam suas descobertas, suas alegrias e tristezas. E em tudo percebiam a ação de Deus. Nessas celebrações também mostravam seus escritos, nos quais preservavam a memória dos fatos. E as vezes trocavam textos ou copiavam o que a outra comunidade trouxe por escrito. Um exemplo desse processo, pode ser lido na carta aos Colossenses: “Depois que esta carta tiver sido lida entre vós, fazei-a ler também na Igreja de Laodiceia. Leiam também a que escrevi aos de Laodiceia” (Col 4,16). E assim se difundiam as experiências e nelas se percebia a ação de Deus...
Com o transcorrer do tempo passou-se a usar não só as histórias contadas, mas também passaram a ler os escritos nos quais se narrava a intervenção divina. E eram inúmeros escritos.  Alguns mais longos, outros mais curtos. E, em muitos casos, os ouvintes, os sacerdotes ou a própria assembleia celebrativa percebia interligações entre essas histórias e esses escritos. 
Essa percepção os levou a colecionar os textos e as histórias, dando-lhes o formato de um escrito maior. Hoje chamamos isso de livro, mas o trabalho dessas comunidades deu origem aos primeiros rolos dos escritos da Palavra de Deus. Isso porque nos tempos antigos não existiam livros. Os textos eram registrados em papiros ou em pergaminhos.
Com o tempo esses rolos passaram a ser usados nas celebrações. Alguém lia e todos percebiam quão grande havia sido a ação de Deus na vida da comunidade. Alguns desses rolos eram mais outros menos usados nas celebrações. Alguns alimentavam mais a fé e a esperança e a recordação da história e a certeza da presença de Deus em sua caminhada. Esses mais usados passaram a ser copiados e preservados. Passaram a ser levados de um lugar para outro, como orientou Paulo aos seus leitores, na carta que acabamos de mencionar (Col 4,16). 
Nem precisamos de muito esforço para entender que muitos escritos antigos se perderam…porém, entre escritos preservados. No meio desses tantos é que se manifesta a Palavra divina.
Esse processo demorou muitos séculos. E hoje, quando lemos nossas Bíblias com bastante atenção, podemos perceber e junção de pequenos textos que ora se repetem (como as duas narrativas da crianção, no livro do Gênesis 1,1–2,4) ora se completam, como os quatro evangelhos; ou as cartas de Paulo: são textos diferentes, tratando do mesmo assunto.
Em todo caso foi um longo processo humano para perceber a constante comunicação de Deus.   Um longo processo para entender que a Palavra manifesta-se constantemente. Um processo para entender que Ela se apresenta de forma concreta e palpável, na pessoa de Jesus de Nazaré. Um processo para entender que Deus continua se manifestando hoje: em sua Palavra Santa, nas relações interpessoais que valorizam o ser humano, na celebração dos sacramentos e, principalmente, em nosso cotidiano.


9- Antigo Testamento e Novo Testamento (AT/NT)

Sabemos que as expressões “Antigo Testamento” e “Novo Testamento” referem-se às duas grandes partes da Bíblia. 
Além disso, também sabemos que a Bíblia não nasceu pronta; nem se formou toda ao mesmo tempo e nem num só lugar. Sabemos que esse conjunto de escritos contêm a Palavra de Deus e suas orientações para melhor vivermos em nosso cotidiano e na relação com as demais pessoas. Agora vamos entender o porquê da divisão em Antigo e Novo Testamento ou Antiga e Nova Aliança.
Quando pegamos a nossa Bíblia podemos comparar: é evidente o maior volume de páginas correspondendo ao Antigo Testamento. Na Bíblia católica são 46 livros, sendo que as Igrejas da Reforma, seguindo a tradição dos Judeus, reconhecem apenas 39 livros.
Esses escritos, entretanto, para os Judeus não são o que chamamos de Bíblia. Para eles trata-se dos Escritos Sagrados ou Livros Sagrados, a Tanakh, e estão agrupados em três grandes blocos: A Lei, cuja autoria é atribuída a Moisés, os Profetas e os Escritos.
Sua organização dos Livros Sagrados tem uma pequena diferença em relação aos nossos livros. Na Bíblia cristã temos quatro livros: 1 e 2 Samuel e 1 e 2 Reis. Para os judeus são apenas: Samuel e Reis. 
Além disso, aqueles que chamamos de profetas menores, cada um em um livro independente, os judeus denominam apenas de “os Doze”. Em virtude dessas diferenças de organização o conjunto dos escritos sagrados dos Judeus é formado por 24 livros ao passo que a Bíblia católica tem 46 livros. 
Nesses escritos está a mensagem do Deus Libertador, aquele que se apresentou a Moisés, no Êxodo (3,7-10). Ele ouve o clamor do povo oprimido, vê a opressão e desce para libertar. O Deus Libertador, ao longo das páginas dos textos sagrados, estabelece algumas normas de convivência entre as pessoas (Êxodo, por exemplo); oferece algumas orientações litúrgicas (livro do Levítico). Também anuncia a vinda de um Messias Libertador, de acordo com os discursos dos profetas (Isaías e Miqueias, por exemplo). 
Relendo sua caminhada, o povo fez uma leitura teológica da história (Livro dos Juízes,). Ao longo de muito tempo, formou-se uma coleção de cantigas populares e litúrgicas (Salmos). E assim por diante, no conjunto do Antigo Testamento podemos vislumbrar várias e diferentes faces do Deus Libertador. E uma dessas faces é, justamente, a sua capacidade de interceder pelo oprimido.
Em todo o Antigo Testamento encontramos as raízes de uma importante promessa: Deus enviará um Libertador definitivo; alguém que instaurará a justiça; que dará atenção preferencial aos marginalizados; um Messias propondo um Reino de paz e harmonia… Enfim, e isso caracteriza o cristianismo, todas as promessas do Antigo Testamento se concretizam na pessoa de Jesus de Nazaré. Para o cristão o Antigo Testamento é a porta de entrada para o Novo, para a Nova Aliança. Para a concretização da promessa divina da antiga aliança.
Como sabemos disso? Foi o próprio Jesus que o disse: após ler um trecho profeta Isaías (Is 61,1-2) afirmou categoricamente: “Hoje se cumpriu aos vossos ouvidos essa passagem da escritura” (Lc 4,21). Também podemos pegar o exemplo de Felipe catequizando o Eunuco etíope (At 8,26-35).
Podemos dizer, também, que os cristãos denominam de Antigo Testamento porque é nesse grande conjunto de escritos que se concentram os desdobramentos da Aliança. Ali está o pacto de Deus com o povo escolhido para ser o primeiro anunciador de sua presença no mundo. O povo que deveria testemunhar seu amor para com as pessoas; que deveria mostrar que Ele é o Criador e que não abandona a obra que brotou de sua Palavra criadora. 
E, hoje, podemos dizer que depois de ter escolhido seu povo, este o traiu em diversos momentos. Pior do que isso, no último momento, quando o Senhor enviou seu Filho para concluir a Aliança, o povo escolhido, mais uma vez traiu a confiança de Deus e executou o Verbo encarnado, que ressuscitou mostrando o destino daqueles que aderem à sua proposta.
Como havia uma promessa divina, ela se cumpriu em Jesus de Nazaré. Ele formou um grupo de discípulos que, após sua morte e Ressurreição, difundiram sua mensagem. Para ajudar a preservar seus ensinamentos, os discípulos do Messias Jesus, redigiram seus principais ensinamentos: o conjunto de 27 livros formando o Novo Testamento. Nos escritos do Novo Testamento estão os princípios da Nova Aliança firmada por Jesus, com seu sangue na cruz. 
Uma Nova Aliança que tem as mesmas bases da Antiga: a justiça, a paz, o amor… e a fidelidade de Deus que deseja resgatar seu povo dominado pela ambição, pela violência, pelo ódio, pela ganância, pela divisão e exclusão social, além de outras diferentes manifestações do pecado! O Deus Libertador (Ex 3,7-10) que fala ao povo, no Antigo Testamento, manifesta-se como Palavra Viva e Libertadora, na pessoa de Jesus de Nazaré.
Quando Moisés indaga sobra a identidade do Deus Libertador, recebe como resposta: “Eu sou” (Ex 3,14). Mas a resposta definitiva vem da boca de Jesus. Ao se apresentar como “caminho verdade e vida” Jesus também afirma “Eu sou”. Da mesma forma que se apresenta a Paulo, no caminho para Damasco (At 9,3-5). Caindo por terra ouve a pergunta crucial: “Por que me persegues? Ainda sem entender o que se passa, Paulo pergunta: “quem és, Senhor” e recebe como resposta: “Eu sou”. Nesse momento ocorre a plenitude da revelação: o Deus Libertador apresenta-se na pessoa de Jesus: “Eu sou Jesus, aquele que tu estás perseguindo”. Ou seja, o Deus que ouve, vê e desce para libertar, e que se manifestou lá no Êxodo, também está se manifestando como Jesus de Nazaré “um profeta poderoso em obra e em palavra, diante de Deus e diante de todo o povo” (Lc 24,19).


10- A Geografia e a História

Algumas noções da história e da Geografia do Oriente Médio são importantes para a compreensão tanto da formação da Bíblia como dos processos que definiram o Povo de Deus e a atuação de Jesus de Nazaré.
O ponto de origem da Bíblia foi o povo Hebreu (descendentes de Abraão). Povo que se instalou na Palestina. Uma pequena região espremida entre o Mar Mediterrâneo e o Deserto Arábico, no sentido leste-oeste. O deserto também é um limitador ao sul, sendo que ao norte localiza-se a Síria. Essa pequena região, entretanto, era o corredor de passagem para as grandes potencias do norte (Babilônia, Assíria...) e do sul (Egito). Uma região com menos de cem km de largura, em sentido leste-oeste e menos de quatrocentos quilômetros em sentido norte-sul.
Outra forma de delimitarmos o chão em que nasceu a Bíblia é situando-a na região do Oriente Médio que também é denominada de Crescente Fértil. Recebe esse nome porque envolve regiões fartas em água e adequada à prática agrícola. Trata-se da faixa de terra entre desertos e o mar Mediterrâneo. Ao norte começa na Mesopotâmia (entre os rios Tigre e Eufrates) desde sua foz no Golfo Pérsico. A principal faixa de terras localiza-se entre o Mediterrâneo e a região do rio Jordão. E vai até o norte do Egito, na região do rio Nilo. 
Os escritos da Bíblia formaram-se nas várias localidades do Oriente Médio. Atualmente é a região circundada pela Grécia, Turquia, Irã, Iraque, Arábia Saudita e Egito. Dentro desse círculo de países estão localizados: Síria, Jordânia, Líbano e Israel. Para o Novo Testamento também podemos acrescentar a região da atual Itália. Algumas dessas localidades são mencionadas na narrativa do Pentecostes, no livro dos Atos dos Apóstolos (At 2,1-13).
Podemos dizer que dentro dessa vasta região viveram as pessoas que tiveram profundas experiências religiosas e perceberam a ação de Deus em suas vidas e um povo que se percebeu como centro da atenção libertadora de Deus, pois Ele tomou sua defesa contra a escravidão. E, a partir disso, redigiram seus escritos e, mesmo sem o saber, legaram ao mundo aquilo que o Senhor lhes falou e o que quer nos dizer.
Também não se pode esquecer que essa foi uma região próspera. Em tempos que se perderam nos cantinhos da memória, os povos dessa região produziram inovações que perduram até nossos dias. Uma delas é a arte da escrita. Desenvolveram técnicas para a agricultura e o comércio… e a arte da guerra. Sendo que vários povos dos atuais Irã e Iraque fizeram inúmeras guerras entre si e contra o Egito. Nesse mundo efervescente de guerras, o povo da Palestina as vezes envolvia-se outras vezes era envolvido, visto que ali era o corredor de passagem para o contato comercial ou militar entre povos do norte (Assírios, por exemplo) e o Egito, ao sul.
Com certeza já vimos a referência a alguns desses povos, na Bíblia: os Caldeus, os Assírios, os Medos, os Persas, os Babilônios, os Elamitas, os Gregos, os Romanos… e os povos do Egito. 
No livro do Deuteronômio (26,5-10), podemos ler a respeito de Abraão. Ele é mencionado como um “Arameu errante: ele desceu ao Egito” (ou seja, migrou de Arã para o Egito).
Esse pequeno trecho do Deuteronômio, profissão de fé dos judeus (descendentes de Judá;  desse povo vem o nome de sua religião, o Judaísmo), resume perfeitamente os conflitos que ocorreram no período que vai de aproximadamente 2500 aC até a completa dispersão dos judeus, em 135 da era cristã.
Nesses 2500 anos, entretanto, ocorreram altos e baixos na história do povo hebreu, desde a eleição de Abraão e a promessa da descendência e terra. Em razão dessa promessa, ele sai de Ur e dirige-se para Canaã e de lá para o Egito (Gn 12,1-10), de onde volta, novamente em direção a Canaã. Notando que Canaã é a terra dos Cananeus os antigos habitantes da região.  Os hebreus a denominaram de Palestina ou a terra conquistada dos Filisteus (esses conflitos são mencionados no livro dos Juízes).
Aqui cabe um parênteses que ajuda e entender parte dos conflitos atuais, que proliferam nessa região. Devemos nos lembar que aí onde Abraão se instalou era uma região habitada por vários povos. Os descendentes de Abraão, inúmeras vezes fixaram-se e foram retirados da região enquanto outros povos sempre se mantiveram ali vivendo. Entre outros motivos, de ordem política e econômica, esse dado histórico ajuda a entender os conflitos atuais.
O pequeno trecho de Gênesis 12,1-10, também nos sugere o volume de problemas sócio-econômicos e políticos que ocorriam na região. Nos sugere que o povo de Deus, além do conflito com as grandes potências: Assíria, Pérsia, Babilônia e Egito, também se defrontava com os povos locais, na região do atual de Israel (o nome do país se deve ao filho de Jacó) e Palestina. Por isso é que afirmamos: a história das conquistas dos hebreus ajuda a explicar os atuais conflitos entre Judeus e Palestinos, em nossos dias, agravados com a criação do atual Estado de Israel (1947), no final da II Guerra Mundial, ocorrida em 1945.
Sugere, além disso, que a região era palco de constantes guerras e que os hebreus estiveram envolvidos nelas: atrito com seus vizinhos (conforme livros de Josué e, principalmente, Juízes) ou sendo vítimas das grandes potências (exemplo: Macabeus, sob dominação Grega). 
Essas guerras constantes são temas dos profetas Isaías e Jeremias, por exemplo. Profetas que denunciam os erros estratégicos dos reis, aliando-se ora a uma ora a outra potência, o que ocasionou as invasões dos Assírios e mais tarde o cativeiro Babilônico. 
Na reconstrução, depois do retorno do cativeiro, foram produzidos os livros de Neemias e Esdras. E pouco tempo depois chegam as dominações dos gregos e dos romanos.
No tempo de Jesus a região era dominada pelo Império Romano. Entretanto ainda havia muita influência da cultura greco-helenista. Entre os judeus havia grupos que reagiam contra essa dominação, como os Zelotes e grupos que aceitavam a presença dos invasores, como os Saduceus, que, sendo da classe rica e dominante, usufruía dos privilégios auferidos com a bajulação aos romanos. 
Tanto os Fariseus como os Saduceus não queriam atritos com o poder romano e, por esse motivo, perseguiram Jesus. Eles temiam que o dominador proibisse sua religião e seu templo, em represália às pregações humanitárias de Jesus. E isso explica a prisão de Jesus, por parte das autoridades dos Judeus e sua condenação à morte, por parte do poder romano.


11- Os capítulos e os versículos

Em nossas Bíblias é relativamente fácil localizar uma determinada passagem, graças à divisão em capítulos e versículos. Mas nem sempre foi assim.
Nos tempos antigos os documentos eram redigidos em papiros ou pergaminhos. 
Os papiros eram feitos com as folhas de uma planta, o papiro. Faziam-se as peças na forma de tiras. Depois de feitas as anotações ou redigidos os textos, o papiro era enrolado e guardado.
Mais tarde desenvolveu-se o pergaminho. Estes eram feitos com couro de ovelha preparado para receber a escrita. Essas peças eram emendadas formando longas tiras, sobre as quais se escreviam os textos ou as anotações. 
Tanto o pergaminho como o papiro eram enrolados e guardados. Para consultar um trecho determinado, desenrolava-se a tira de pergaminho, ou papiro, e fazia-se a leitura. Jesus fez isso na sinagoga, para ler o trecho de Isaías: “Hoje se cumpriu essa escritura” (Lc 4,14-22).
Os textos não tinham parágrafos. E, no caso dos textos bíblicos, além de não ter parágrafo não tinha os capítulos nem os versículos, como as nossas Bíblias.
Com a estruturação da liturgia, na Igreja, os escritos da Bíblia, diferentemente de outros textos ou documentos, precisavam ser manuseados diariamente, pois em cada celebração havia a necessidade de se proclamar a Palavra de Deus. Por isso, ao longo dos séculos foram sendo procuradas alternativas que facilitassem a localização e leitura. 
Várias alternativas foram feitas. Mas somente no século XIII foi que se encontrou uma solução mais duradoura. Pouco antes de sua morte, em 1228, Stephen Langton, arcebispo da Cantuária, na Inglaterra, organizou um divisão do texto bíblico em Capítulos. Além de outros, também o cardeal Hugo de Santo Caro, entre 1244-1248, fez o mesmo trabalho. Entretanto o modelo do arcebispo inglês se popularizou e passou a ser usado pela Igreja.
Já os versículos tiveram que esperam mais 300 para serem organizados. Coube a um editor francês, Robert Estienne, fazer o trabalho. 
Traduziu os textos do hebraico e do grego; juntou vários textos antigos para fazer uma tradução crítica. Sua intenção era chegar o mais fielmente possível ao sentido original do texto. Em razão de seu trabalho com notas explicativas, foi perseguido pela inquisição. Teve que fugir da França. Em seu exílio, na Suíça, continuou o trabalho crítico e em 1553 publicou a primeira Bíblia inteira com capítulos e versículos. 


12- Como usar os capítulos e versículos?

Nossas Bíblias (católicas) ainda hoje utilizam esta forma de organização textual. Cada livro tem capítulo e versículos. Assim fica bem mais fácil a localização de qualquer texto que desejarmos usar em nossas celebrações, em nossas reuniões da comunidade ou para nossas orações pessoais.
Mas como utilizar esses recursos? 
Usamos a numeração que está na Bíblia e alguns sinais de pontuação. Vejamos alguns exemplos. 
Vírgula: Separa capítulo e versículo.
Jo 1,1 – Lê-se: Evangelho de João, capítulo 1, versículo 1.
Ponto e Vírgula: Indica separação de capítulos ou livros, numa sequência de citações.
Ex 3,7-10; Js 24,14-15; Jz 1,1 – Lê-se: Livro do Êxodo capítulo 3, versículos 3 até 10; livro de Josué capítulo 24, versículos 14 e 15; livro de Juízes capítulo 1, versículo 1.
Ponto: Indica interrupção entre versículos, num mesmo capítulo. 
Is 49,3.5-6 – Lê-se: Livro do profeta Isaías, capitulo 49, versículo 3; versículos 5 e 6.  
Hífen: Separa versículos. 
Gn 1,1-5 – Lê-se: Livro do Gênesis, capítulo 1, versículos 1 até 5. Pode-se usar, também, o hífen para indicar uma sequencia de capítulos: Lc 1-2. Neste caso está indicando que se deve ler os capítulos 1 e dois, inteiros do Evangelho segundo Lucas.
Travessão: Indica sequência entre capítulos diferentes. 
Gn 1,1–2,4a. – Lê-se: Livro do Gênesis, capítulo 1, versículo 1 até capítulo 2, versículo 4a. Neste caso apenas a primeira parte do versículo 4 do capítulo 2, o que é indicado pela letra “a”.
Letras a, b, c: Indica que se está lendo apenas uma parte daquele versículo.
Gn 2,4a. Neste caso só a primeira parte do versículo 4, do capítulo 2. Este recurso é largamente usado na liturgia, para indicar os trechos específicos que serão lidos naquela celebração. Exemplo: 1Sm 3,3b-10.19; – Lê-se: Primeiro livro de Samuel, capítulo 3, a segunda parte do versículo 3 até versículo 10 e depois vai lá para o versículo 19. 1Cor 6,13c – Lê-se: Primeira carta aos Coríntios capítulo 6 e somente a terceira parte do versículo 13.
s e ss: indicam seguinte ou seguintes.
Pode ocorrer que estejamos lendo um texto e apareçam citações como estas: Fl 2,6s; Ex 3,7ss. Indica, respectivamente que se está falando dos versículos 6 e 7 do capítulo 2 da carta de Paulo aos Filipenses. No outro caso está indicando que se deve ler os versículos 7 e os seguintes do capítulo 3 do livro do Êxodo.
“Evangélicos”: ponto e dois pontos:
No universo das Igrejas da Reforma e todas as pentecostais (os irmãos aos quais popularmente chamamos de Evangélicos, crentes, protestantes…) usam outra sinalização. No lugar da vírgula para separar capítulo e versículos usam dois pontos (:) ou ponto (.). Numa citação católica escrevemos: Jo 1,1; numa citação “evangélica” vai estar escrito: Jo 1:1 ou Jo 1.2. Também é comum o uso da vírgula, onde usamos o ponto, para separar uma sequência de versículos num mesmo capítulo. Uma citação católica usa:  1Sm 3,3b-10.19. Uma citação “protestante” usará:  1Sm 3:3b-10,19.
De posse destas informações, vamos, agora tomar nossas Bíblias e entrar em sintonia com o Senhor para melhor nos colocarmos a seu serviço.


13- Critérios ou chave de leitura
O que fazer, quando desejemos entrar por uma porta que esteja trancada?
É óbvio, procurar sua chave. 
Caso contrário teríamos que arrombar a porta. Mas isso não é certo, se a casa for de outro; ou causa prejuízo, se for a nossa casa. Então, qual é a chave para abrir a porta da Bíblia?
Não que a Bíblia seja uma porta trancada. Pelo contrário, a porta da Palavra sempre esteve aberta. Nós é que nem sempre sabemos como entrar. Para facilitar a entrada por essa porta que conduz à casa de Deus ou ao Reino anunciado por Jesus de Nazaré, podemos usar alguns critérios facilitadores. 
O primeiro critério é entender que Deus faz opções. Ele é puro amor, pleno de perdão, completa misericórdia, mas também é a fonte suprema da liberdade. Não quer que o abandonemos, mas se essa é nossa opção, ele a respeita. Mas antes oferece muitas oportunidades para a conversão a fim de receber a redenção. E sua Palavra, nas Sagradas Escrituras, é uma delas. Por isso é necessário saber ouvi-la, para não a corromper.
Faz opções porque não se revela nos atos daqueles que provocam e promovem o sofrimento das pessoas, mas está presente nos atos daqueles que oferecem condições para que as pessoas vivam bem. E somente se manifesta para os excluídos. Ele está do lado da vítima, condena a agressão… não tolera a maldade, mas aceita a conversão daqueles que se arrependem, sinceramente, do mal praticado.
Quer um exemplo?
Enquanto vivia junto ao Faraó, Moisés não era mau. Mas por estar mergulhado na riqueza não conhecia as dores do povo. Entretanto, um dia saiu do palácio. Viu alguém agredindo uma pessoa indefesa. Foi em sua defesa e no confronto tirou a vida do agressor. Tornou-se um foragido. (Ex 2,11-15)
Somente quando se deu conta de que não tinha mais os privilégios da corte foi que Deus se manifestou a ele (Ex 3,1-6). Somente então conheceu o primeiro critério que podemos usar para entender a Palavra de Deus (Ex 3,7-10). Somente então, ao receber a missão, se deu conta de sua fragilidade. Foi quando ouviu a proposta da libertação (Ex 3,11-12). Foi então que recuperou a história de luta de seu povo (Ex 3,13-15)
O critério, portanto é: a) Olhar para a realidade do povo, constatando sua condição de oprimido. b) Desatrelar-se ou distanciar-se das pessoas ou instituições geradoras de sofrimento. c) Fazer um silêncio indagador frente a realidade, para ouvir o apelo de Deus (Moisés estava só, na montanha; Jesus retirava-se para orar, mas nunca deixava de atender aos sofredores). d) Tomar consciência de suas limitações para assumir a missão. e) Assumir a história sofrida do povo, pois é nela que Deus se manifesta. 
Outro critério, ou outra chave de leitura, para entrar em sintonia com Deus e ouvir sua palavra libertadora está na cena que chamamos de “discípulos de Emaus”, narrado em Lucas 24,13-35. Aqui o procedimento de Jesus é o mesmo do Êxodo.
Os discípulos amedrontados, voltavam para casa. Comentavam o ocorrido. Falavam de suas esperanças. Jesus os acompanha e lhes interpela sobre suas angústias e os leva a rever a realidade circundante, constatando os resultados dos atos dos detentores do poder: sacerdotes e governo imperial (Lc 24,13-24).
Jesus retoma as escrituras. Lê a realidade à luz da Palavra Sagrada (Lc 24,25-27). O passo seguinte, de Jesus, é provocar uma tomada de atitude em relação ao outro. E os discípulos convidaram o estranho para partilhar o pão. E na partilha reconheceram Jesus (Lc 24,28-32).
Olhar e compreender a realidade, partir o pão com quem precisa, são posturas que ajudam a reconhecer Jesus e despertam para a missão; por-se a caminho para anunciar que o Ressuscitado está convidando para a partilha; fazer a partilha eucarística e partilhar o pão de cada dia; e anúncio dessa novidade transformadora (Lc 24,33-35).
Portanto, em Ex 3,7-10, está uma das chaves que nos ajudam a abrir a porta da Bíblia, pois ela nos mostra com quem Deus se identifica. Também Lc 24,13-35 nos dá outra chave de leitura. Aqui temos que olhar para os gestos de Jesus e a postura dos discípulos que decepcionados, com a morte, reconhecem o Ressuscitado no ato da partilha.
Retomando a indagação inicial: que é a Bíblia? É a palavra de Deus que nos convida a assumir a missão: libertar todos as vítimas do poder e domínio do mal, tanto social como politico, econômico e, principalmente religioso. Assumir a missão de anunciar a proposta do Reino que é de “liberdade, de fraternidade, paz e comunhão”.


Enfim...
Tudo que vimos, até aqui, são apenas mais algumas informações. Servem como suporte para o nosso contato com a Palavra de Deus. Podem nos ajudar no trabalho de divulgação da Palavra. Entretanto, estas informações só têm sentido quando queremos, não só aprender mais sobre a Palavra Inspirada, mas principalmente quando queremos nos colocar numa maior sintonia com o Senhor e seu Plano para que o Reino cresça entre nós. Só têm sentido quando nos colocamos a serviço da instalação desse Reino.
Devemos ter presente que se Deus nos fala é porque tem algo importante a nos dizer. Porque sua palavra quer transformar algo em nós ou em nossa vida. Porque sua Palavra quer resultados em nós. Ele mesmo nos diz isso, pelo profeta de Isaías 55,10-11. Ele nos diz que assim como as águas das chuvas não caem sem molhar e tornar a terra fecunda, assim a Palavra que sai do Senhor não retorna sem produzir os resultados para os quais foi proferida.


Parte II

INTRODUÇÃO AO PENTATEUCO


Pentateuco: algumas notas

Vamos começar um estudo bíblico, não tentando converter nem convencer incrédulos, mas procurando ajudar a esclarecer e estimular a crença de todos. Portanto, nosso ponto de partida é a fé que cada um já alimenta, mas que pode e deve ser mais esclarecida e, ao mesmo tempo, mais engajada. Afinal, nos ensina Pedro, é preciso estar preparado: “Santificai a Cristo, o Senhor, em vossos corações,estando sempre prontos a dar razão da vossa esperança a todo aquele que vo-la pede” (1 Pd 3,15)
Nosso estudo, portanto, parte da fé e tem como ponto de referência a história. 
A história (pré-texto em que nasceu o texto bíblico) será nossa guia, conduzindo-nos na direção de um maior entendimento da Bíblia, o Texto Sagrado, com a finalidade de iluminar o dia a dia das comunidades, hoje, nosso contexto. 
Esse “triângulo hermenêutico” gera outro triângulo que é o nosso pré-texto, a realidade histórica do povo atual. E o ponto de chegada, o destino e destinatário dessa interpretação do Texto é o contexto de todos os que viveram concretamente nas comunidades cristãs, que fazem a vida da Igreja, que caminham e alimentam a expectativa do Reino. 
Assim sendo, podemos dizer que a vida do povo da Bíblia explica a menagem de Deus para o nosso dia a dia. A dinâmica, portanto, é partir da realidade a ser iluminada com a Bíblia a fim de clarear a vida das comunidades: a realidade gera a indagação; a Bíblia se manifesta e se apresenta como luz e resposta, pois é Palavra de Deus e ao beber dessa Palavra a Comunidade compreende e reconhece os caminhos para superar as mazelas que tentam impedir a plenitude da vida.
Entretanto, e isso nunca podemos nos esquecer, vamos nos basear na história, para entender a Bíblia, mas a Bíblia não é um livro de História nem foi escrito para contar história. 
A Bíblia foi escrita para que as pessoas pudessem reconhecer a presença de Deus em sua história e na história de suas comunidades. No máximo podemos dizer que, ao se referir à história, os redatores do texto bíblico fizeram uma Teologia da História.


1- Começando pelo começo

Já sabemos que a Bíblia começa com o Gênesis e termina com o Apocalipse. Também sabemos que Gênesis significa começo e começa contando como tudo começou; sabemos, além disso, que Apocalipse significa revelação. Mas não revela o fim do mundo!
O problema é que tem gente pensando que é uma revelação sobre o fim do mundo. Fim dos tempos…, mas, na realidade é a revelação dos caminhos de esperança para momentos e situações de dificuldade.
Agora é hora de sabermos um pouco mais sobre esse livro que na realidade é uma coleção. (A palavra Bíblia significa exatamente isso: coleção de livros.) E essa coleção pode ser vista como uma biblioteca. O próprio povo de Deus tinha consciência de que não era um livro, mas uma coleção deles. Referiam-se a esses escritos como “os livros sagrados” verdadeiros pontos de apoio na caminhada do povo: “Não sentimos necessidade de apoio e alianças, tendo em mãos para o nosso conforto os Livros Sagrados” (1Mc 12,9)
Essa coleção se justifica porque nos tempos bíblicos não existiam livros, como nós entendemos hoje. De modo geral os escritos eram feitos de papiro ou em pergaminho. Papiro é uma espécie de planta da qual se fazia uma espécie de folha, semelhante ao papel (aliás, a palavra papel vem de papiro). Pergaminho era produzido com couro – normalmente de carneiro – preparado para fazer anotações. 
Esse material era guardado em rolos. Daí que a palavra Bíblia, na realidade se refere ao conjunto de rolos de escritos; uma coleção de rolos de escritos, dos tempos antigos.
Embora nossa fé nos diga que toda a Bíblia revela a palavra de Deus (isso nos ensina Paulo, ao dizer que "Toda a Escritura é inspirada por Deus e é útil para ensinar, para persuadir, para corrigir e formar na justiça" 2Tm 3,16), aqui não vamos comentar o livro da Revelação (Apocalipse). Nem os escritos dos profetas, nem os escritos de sabedoria, nem os evangelhos ou as cartas... Vamos começar a entender somente o começo; vamos começar pelo começo que é o começo da Bíblia.
Então vamos começar pelo livro do Gênesis? Pois o livro do Gênesis, de acordo com o significado dessa palavra, é o livro das origens.
Na verdade não vamos começar pelo Gênesis. Vamos começar pelo começo da formação da Bíblia. O começo da Bíblia, embora seja palavra de Deus (portanto essa é sua origem), foi a vida das pessoas, pois ela foi escrita pelos homens. Sendo assim, para entender a palavra de Deus precisamos entender que ela se manifesta como palavra dos homens. É palavra de Deus escrita pelos homens. Isso significa que na Palavra de Deus está misturada a palavra dos homens que emprestaram a Deus as suas mãos e transmitiram a palavra de Deus com palavras humanas!!!
Portanto, a Bíblia não nasceu pronta. Desenvolveu-se como palavra humana falando das coisas de Deus, manifestando a palavra de Deus. É Palavra humana expressando as coisas de Deus. É um recado que Deus manda à humanidade e escolheu algumas pessoas e povos para transmitir esse recado, como podemos ler em Jeremias (Jr 36,2): "Toma um rolo e escreve nele todas as palavras que te dirigi a respeito de Israel."
Antes disso, entretanto, vale a pena lembrar que, de acordo com Santo Agostinho, não foi a Bíblia a primeira mensagem de Deus para a humanidade. Antes de falar pela Bíblia, Deus falou pela Natureza. A natureza é a primeira carta de Deus à humanidade. Só que as pessoas não entenderam. E ainda não perceberam que a Natureza é dom de Deus, manifesta Deus, comunica a grandeza de Deus… entretanto, como as pessoas não entenderam isso, agrediram e continuam agredindo-a...
Mas agora, vamos começar pelo começo. E o começo da Bíblia não é o texto como o conhecemos hoje, mas a vida das pessoas, que depois virou história e depois virou texto e muito tempo depois virou Bíblia.

2- Antes da Bíblia a vida

Como qualquer outra produção humana, a Bíblia não nasceu pronta. E não nasceu Bíblia. Nasceu quando as pessoas começaram a perceber alguma manifestação de Deus nos fatos do cotidiano. Começaram a desenvolver a consciência de que Deus lhes falava...
O povo passou a perceber que Deus lhes falava de diversas e diferentes formas e nas mais diferentes situações: tanto na alegria como nas situações de sofrimento. Na carta aos hebreus podemos ler: "Muitas vezes, e de muitos modos, Deus falou aos nossos pais, pelos profetas, mas, ultimamente, falou-nos por seu Filho" (Hb 1,1-2). 
O povo percebeu que Deus fala e se manifesta pelos e nos acontecimentos e, por isso ao longo de muitos séculos, foi registrando por escrito, alguns acontecimentos ou a interpretação desses acontecimentos. Também ocorria que, por vezes, um determinado personagem sentia-se tocado por Deus para escrever sua mensagem, como o caso de Jeremias, que empresta sua palavra a Deus. E explica isso comentando a ordem de Deus: "Toma um rolo e escreve nele todas as palavras que te dirigi a respeito de Israel” (Jr 36,2).
A Bíblia desenvolveu-se, inicialmente na forma oral. Por isso falamos em tradição oral. Ou seja, ela foi sendo gerada nas noites ao redor da fogueira ou nos momentos de celebração durante as festas da tribo, quando os anciões contavam as histórias dos antigos. Contavam como o deus da tribo interferira em favor da tribo e em defesa de um patriarca. 
Essas histórias passaram a formar uma tradição. E os mais novos, ao envelhecerem, contavam as histórias que os antigos lhes haviam contado. Eram, sempre, histórias recheadas com as experiências do cotidiano. Era uma espécie de reflexo do cotidiano. Era a vida sendo contada, cantada e revivida. 
Por conta dessa tradição oral é que antes de uma verdadeira consciência a respeito de Deus, havia uma noção de que um deus acompanhava o povo de uma determinada tribo; de um deus que gostava do povo desta tribo específica; de um deus que escolhia conviver com o povo daquela tribo. Também por esse motivo em diversos pontos dos livros do Pentateuco aparecem nomes distintos para Deus: Yahweh (Gn 4,1-16), Deus Altíssimo (Gn, 14, 17-23), El-Shadai (Gn 35,11) entre outros. Isso nos indica que foram juntados num mesmo livro (inicialmente rolo), tradições de tribos diferentes. Somente séculos depois se desenvolve a consciência de que se está falando de um único Deus que é inominável e, na conversa com Moisés (Ex 3,13-15) apresenta-se como “Eu sou”.
Somente depois de muitos séculos de tradição oral foi que aquelas histórias contadas e recontadas ao redor da fogueira e nas celebrações da tribo começaram a ser anotadas, redigidas. Diferentes tribos registraram diferentes experiências e isso foi, cada vez mais, enriquecendo as narrativas. Embora fossem histórias e tradições e experiências diferentes, todas tinham um elemento em comum: a convicção de que nessas experiências de vida ocorrera uma manifestação divina. 
Esses contadores das histórias tinham consciência de que estavam narrando fatos, situações relacionadas à sua tribo, mas também sabiam pela fé, que eram histórias em que ocorrera uma manifestação de Deus. Por isso valorizavam a história e a vida da tribo, pois estavam convictos de que se tratava da narrativa da intervenção de Deus em sua história. Era, portanto, a vida da tribo que começava a ser não só contada, mas principalmente registrada em pequenas e diversas versões escritas.
Foram surgindo, em diferentes localidades e ligadas a diversas tribos, inúmeros escritos que passaram a ser colecionados, lentamente e ao longo de muitos séculos. Pequenos fragmentos juntados a outros fragmentos, ao longo de muito tempo, eram juntados para formar um rolo, contendo várias histórias; várias versões de celebrações; várias versões da percepção da ação divina no cotidiano; várias versões sobre o cotidiano de diferentes tribos. Da junção de tudo isso, pequenos retalhos de vida, formaram-se vários livros (rolos de papiro ou pergaminho) sobre a vida.
E a vida virou Bíblia…


3- O chão onde nasceu a Bíblia

Para entendermos a mensagem da  Bíblia não é suficiente ler apenas o texto, como se fosse algo mágico. Precisamos entender as condições em que cada texto bíblico foi produzido. Podemos chamar isso de contexto em que o texto foi vivido e foi escrito. 
Esse deve ser o ponto de partida e um importante critério para entendermos a Bíblia e, especialmente, os cinco primeiros livros: o conjunto de textos chamados de Pentateuco, visto que eles nasceram em situações e contextos diferentes. Ou seja, cada livro do Pentateuco: Gênesis, Êxodo, Números, Levítico, Deuteronômio tem sua história de formação e cada um nasceu com a finalidade de mostrar uma face da história e da fé de um povo que se percebeu merecedor de uma atenção diferenciada da parte de Deus.
E, talvez o mais importante: percebeu que Deus não estava ligado a um santuário, a uma região, uma árvore, ou a uma montanha. Mas era um Deus que se manifestara em diferentes momentos da história e que caminhava junto com seus escolhidos. Assim acompanhamos Abraão construindo altares para o mesmo Deus que o havia escolhido (Gn 12, 6-9). Recebendo de Deus a promessa de longa e farta descendência (Gn 15,18). E, diante de Moisés, Deus afirma ser o Deus dos pais: “Eu sou o Deus de teus pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó.” (Ex 3,6.13). E na caminhada, pelo deserto em busca da terra da fartura, Deus caminhava à frente do povo, iluminando o caminho: “E Iahweh ia adiante deles, de dia numa coluna de nuvem, para lhes mostrar o caminho, e de noite numa coluna de fogo, para os alumiar, a fim de que caminhassem de dia e de noite. Nunca se retirou de diante do povo a coluna de nuvem durante o dia, nem a coluna de fogo, durante a noite” (Ex 13,21-22).
E assim podemos começar retomando uma antiga afirmação: Da mesma forma que dizemos que a Bíblia não nasceu pronta, também não foi gerada num único lugar. O vento da inspiração divina (“o vento de Deus pairava sobre as águas”Gn 1,2 ) espalhou a semente da palavra por diversos lugares e, por isso, foram muitas as pessoas que a acolheram e colheram seus frutos, produzindo, inicialmente a fala dos antigos e em seguida, a redação dos textos.
Podemos dizer que o chão em que nasceu a Bíblia é a região do médio Oriente a qual também recebe a denominação de Crescente Fértil. Trata-se de uma faixa de terra espremida entre desertos e o mar Mediterrâneo. Ao norte começa na Mesopotâmia (entre os rios Tigre e Eufrates) desde sua foz no Golfo Pérsico, região central do deserto Arábico. Passa por uma estreita faixa de terra entre o mar Mediterrâneo e a região do rio Jordão. E vai até o norte do Egito, na região do rio Nilo.
Nessa região, atualmente, localizam-se alguns países (ou pelo menos parte deles) cujos nomes aparecem constantemente nos noticiários, em virtude dos conflitos que lá ainda ocorrem: Israel, Jordânia, Líbano, Síria, Iraque, Egito, Turquia e Irã. 
Nos dias atuais, muitos outros interesses estão envolvidos, mas as origens desses conflitos estão no fato da instalação do povo de Deus numa terra já habitada. Quando Abraão chegou a Canaã, diz o Gênesis “nesse tempo os cananeus habitavam nessa terra” (Gn 12,6). E os operários fugindo do Egito não foram pelo caminho mais curto, onde viviam os filisteus, mas pelo deserto e só mais tarde chegaram a Canaã, atravessando o rio. “Ora, quando Faraó deixou o povo partir, Deus não o fez ir pelo caminho no país dos filisteus, apesar de ser mais perto, porque Deus achara que diante dos combates o povo poderia se arrepender e voltar para o Egito” (Ex 13,17).
A denominação de “Crescente Fértil” se deve ao fato da região, no mapa, apresentar o formato de uma lua crescente. E em virtude da presença desses rios e mares, entre desertos e montanhas, essa é uma região com condições para cultivo. Foi justamente nessa região, nas proximidades dos rios Tigre e Eufrates que a história localiza  algumas das mais antigas civilizações. Além, é claro, da civilização egípcia, nas margens do Nilo, no continente africano, tão antiga quanto a mesopotâmica.
Ou seja, essa é outra das característica dessa região: o fato de, há mais de 10 mil anos, aí terem surgido os primeiros aglomerados humanos dedicados à agricultura. E pelo que conhecemos hoje, isso ocorreu justamente onde hoje se localizam Jordânia e Síria, além de Irã e Iraque e, é claro, o Egito.
Vale destacar que o desenvolvimento da agricultura diferenciou essas sociedades de outras que, inicialmente, viviam da coleta e caça. O fato de terem desenvolvido a agricultura as forçou a desenvolver outro estilo de vida: os grupos humanos, antes nômades (como o grupo de Abraão, migrando “de acampamento em acampamento”, nos informa gn 12,9), passaram a se fixar numa mesma região por mais tempo, num processo chamado de sedentarismo. 
A experiência sedentária permitiu a criação de organizações sociais básicas, as cidades-Estado e posteriormente códigos de leis (como o de Hamurabi) e os rudimentos da escrita (cuneiforme na Mesopotâmia; e ideográfica-hieroglífica no Egito). Em virtude dessas inovações a região é considerada Berço da Civilização.
Esses rudimentos culturais: organização social/política, escrita, código de leis, entre outros, estão na base do surgimento da Bíblia. Com o nascimento da escrita (experiência que demorou vários séculos para se concretizar) as diferentes sociedades passaram a registrar elementos de sua história. Não como livro de história, mas como documentação contábil e registros dos produtos armazenados (essa era a função de José, no Egito, conforme Gn 39,1-6). Partes desses registros, mais tarde, foram incorporados à Bíblia formando seus trechos mais antigos.
Na parte central da crescente fértil localiza-se o atual Estado de Israel, que sempre esteve em conflito com os povos mais antigos que habitavam a região. Em tempos mais antigos essa região era conhecida como Palestina. Também foi chamada de Canaã. 
Embora a história bíblica envolva a região mesopotâmica e egípcia, o centro dos episódios bíblicos é a Palestina. Para ali convergiram Abraão e seus descendentes, vindos da Mesopotâmia, mas especificamente de Harã Em Gênesis 12,4-10 podemos ler esse episódio, mostrando a trajetória de Abraão até Canaã, em uma lista de localidades: Abraão saiu de Harã, chegou a Canaã, foi a Siquém e Moré onde recebe a promessa da terra (“À tua descendência darei esta terra”) nas proximidades de Betel e Hai. Mais tarde, possivelmente em razão de alguma crise de produção (“Havia fome naquela terra”), Abraão migrou para o Egito. 
Séculos depois desse episódio ocorreu outro fenômeno marcante, mencionando várias localidades e diferentes povos. No episódio do Êxodo, o grupo de Moisés, para reinstalar-se em Canaã, fez contato com vários povos locais. E no livro de Josué e Juízes são narradas as disputas pela posse da região.
Após atravessarem o deserto, vindos do Egito, o grupo de Moisés chegou às terras em que viviam cananeus, heteus, amorreus, perizeus, heveus, e jebuseus, conforme se lê em Êxodo 3, 6-10. Contra esses e outros povos é que se dão as disputas narradas em Josué e Juízes.
Essa terra “que mana leite e mel” (terra fértil; terra de fartura) foi prometida a Abraão que a conquistou dos seus antigos habitantes, por volta do século XIX aC. Posteriormente ao Êxodo a região foi reconquistada pelos sucessores de Moisés, a partir de 1250 aC. Dali os hebreus foram retirados – pelo menos suas lideranças – e levados para a Babilônia (cativeiro ou exílio babilônico entre 597-538 aC). E séculos depois, no início do século II dC, foram novamente dispersos, por determinação do imperador de Roma.
Na Palestina viveram os profetas e ali pregou Jesus de Nazaré. Esse pano de fundo histórico mostra quão conflituosa foi a relação entre os povos antigos; e também ajuda a entender os conflitos atuais, em que estão diretamente envolvidos os atuais israelitas, sírios e palestinos e indiretamente as outras nações da região. 
Os conflitos com os vizinhos são uma marca da trajetória do povo de Deus, mas não dá para dizer que esse processo fosse um propósito do Senhor. Podemos dizer, pelo contrário que Deus pretendia uma integração pacífica, pois evitou o confronto (Ex 13,17). Podemos dizer mais: os confrontos e conflitos fazem parte da ação humana que caminha junto com a proposta de Deus, pois ou prometer a terra para Abraão disse que a daria, mas não disse que a tomaria dos seus habitantes (Gn 15,18-19). 
Podemos dizer que a semente da Palavra se espalhou por toda a região fértil do Oriente Médio. Germinou na vida de muita gente. Mas essa planta deu frutos, na forma de texto final, na Palestina. 


4- Região de conflitos

Conhecendo o “chão onde nasceu a Bíblia” podemos entender que essa não é uma região que se caracteriza pela paz. Pelo contrário, manifesta-se como um caldeirão em ebulição. Essa fervura vem produzindo inúmeras guerras ao longo de mais de cinco milênios de história. Desde antes da Bíblia ser escrita, a relação entre os povos era conflituosa. Nos mais de mil anos em que ela foi redigida permaneceram os conflitos e nos dias atuais os noticiários, quase que diariamente, nos falam das guerras entre os povos que se desenvolveram na região. 
Ao lermos a Bíblia temos a noção do volume dessa beligerância nos quais os hebreus estão diretamente envolvidos. Só a título de exemplo podemos tomar o livro dos Juízes que é a narrativa das guerras dos seguidores de Moisés na  conquista de Canaã. Nesse livro um dos episódios mais conhecidos é a epopeia de Sansão (Jz 13-16), o hebreu que se relaciona com uma estrangeira filisteia. Pode-se destacar, além disso, que nesse contexto, os hebreus vivem sob domínio dos filisteus, como se pode ler em Jz 14,4: “nesse tempo, os filisteus dominavam sobre Israel”.
Além desse, vários outros episódios poderiam ser elencados para ilustrar a beligerância dos hebreus e de seus vizinhos: a saga da travessia do mar vermelho, no livro do Êxodo; a simbólica conquista de Jericó, no livro de Josué; a própria linguagem do profeta Amós (nos oráculos contra os povos, capítulos 1 e 2)... tudo isso pode ser tomado como um exemplo da violência envolvendo os antigos povos da Bíblia.
Entretanto os conflitos não ocorrem somente na região cananeia, mas em toda a Crescente Fértil. As nações do norte (da Mesopotâmia) disputam entre si a supremacia da região e disputam com o sul (Egito) o domínio das rotas comerciais. Com base nisso podemos dizer que a fertilidade da “Crescente Fértil” não está apenas em seu solo devido a presença de águas, nem pela facilidade de circulação das caravanas comerciais, mas também na potencialidade para os conflitos e pelas disputas entre grupos e nações. Esse panorama nos permite dizer que, diante da pergunta sobre como viviam os povos que produziram os textos da Bíblia, a resposta seria muito fácil: em guerra.
Quais os motivos para tantos atritos?
Seguramente eles não ocorriam por causas religiosas, mas econômicas. Mais especificamente pelo domínio das rotas comerciais. As nações do sul e do norte sempre desejaram dominar a região central – Canaã – porque essa era a melhor rota para as caravanas de mercadores: facilidade de locomoção e presença de água. Além de ser uma região produtora de alimentos. O contato norte-sul somente era possível pelo corredor de passagem nas proximidades do Jordão ou no litoral do Mediterrâneo. Portanto dominar a região significava dominar o comércio e, portanto, impedir os adversários de comercializar também. 
Ilustra isso o alerta do profeta Amós 3,9-11: “‘Mandai recado aos palácios da Assíria e aos palácios da terra do Egito, dizei que se reúnam no planalto de Samaria, para ver quanta desordem, quanta exploração dentro dela. Não sabem viver com honestidade’, – oráculo do Senhor –; com extorsão e exploração acumulam riquezas em suas casas. Por isso, assim diz o Senhor Deus: ‘Os inimigos farão o cerco ao teu país, tua segurança cairá de vez e teus palácios serão todos saqueados’ ”.
Partindo disso, podemos perceber que, além dessa região ter sido a pioneira na organização da agricultura e estruturação de cidades e estados, criou também a prática das nações mais fortes dominarem as mais fracas. Desenvolveu, também a arte da guerra, da qual os assírios foram um exemplo pelo desenvolvimentos de novas tecnologias para a guerra e sua crueldade em relação aos vencidos. 
O fato é que, ao longo de milênios, diversas nações se alteraram no mando da região. Desde os acádios, os sumérios, os babilônios e os assírios. E mais tarde os gregos/macedônios e depois os romanos. Todas essas nações se alternaram na disputa e no domínio da região de Canaã; e isso ocorreu ao longo de quase três milênios da história bíblica. 
Essa sucessão de conflitos repercutiu na literatura e na religião. Quando analisamos as manifestações religiosas dessa região, além dos hebreus, também os mesopotâmicos e egípcios, percebemos que as divindades desses povos também se envolviam nos conflitos humanos. Ou eram beligerantes entre si. Não só os textos bíblicos refletem os conflitos e guerras, mas também textos extra-bíblicos. Temos esses exemplos na literatura e nos mitos mesopotâmicos, egípcios e gregos.
Na mitologia de todos esses povos podemos notar como os deuses brigam entre si, uns querendo dominar sobre os outros. Por vezes uma divindade toma o partido de algum mortal ou de um grupo de humanos, sendo que alguma divindade podia apaixonar-se por algum humano e gerar filhos, como no caso dos semideuses dos gregos. Noutros momentos os deuses agem como se estivessem divertindo-se com os dramas humanos; ou provocando suas tragédias a fim de divertirem-se com o sofrimento. Toda essa situação, em relação aos deuses desses povos, podem ser tomada como reflexo dos conflitos entre as nações antigas dessa região.
Um exemplo dessas desavenças, pode ser tomado da mitologia mesopotâmica. No poema “Enuma Elish” e na epopeia de Gilgamesh. 
O herói lendário, Gilgamesh, se sobrepõe aos seus adversários matando-os. No início dessa epopeia comenta-se a chegada de Enkidu e como Gilgamesh é poderoso e temido. Em razão de tanta maldade os pais lamentam a perda dos filhos, levados por esse filho de uma deusa:
“Gilgamesh correu o mundo, mas, até chegar a Uruk, não encontrou quem pudesse opor-se à força de seus braços. […].
Os deuses escutaram o lamento do povo. Os deuses do céu gritaram para o Senhor de Uruk, para Anu, o deus de Uruk: ‘Uma deusa o fez forte como um touro selvagem; ninguém pode opor-se à força de seus braços. Não há pai a quem tenha sobrado um filho, pois Gilgamesh os leva todos’”.
A mesma ideia, de sociedade conflituosa, pode ser encontrada no poema/mito da criação babilônico, chamado de Enuma Elish. Nesse poema, logo nas linhas iniciais aparece uma discussão entre duas divindades, Tiamat e Apsu, que trocam ameaças:
“Apsu abriu a sua boca e falou e para Tiamat, o cintilante, ele dirigiu a palavra:...o caminho deles...Durante o dia não tenho descanso, e de noite não consigo deitar-me em paz. Mas eu destruirei o seu caminho. Eu o destruirei...”
Algo semelhante manifesta-se nos mitos egípcios. Aqui veremos a divindade Set matar seu irmão Osíris para assumir o governo. É vingado por sua esposa Ísis que recompõe o corpo do marido morto e dessa forma gera um filho, Hórus que derrota Set e restaura a ordem no Egito. Ou seja, as divindades envolvem-se em confrontos mortais, matando seus adversários para se impor sobre eles. As relações políticas se refletem nas relações entre as divindades e os mitos repercutem nas relações sociais.
Séculos depois, na literatura e mitos gregos. Também aqui manifestam-se os atritos e conflitos entre as divindades. Caso clássico é o de Cronos devorando os deuses que são seus filhos. Sobrando apenas Zeus, Hades e Poseidon que se unem para destruir seu pai. Mas depois se tornam inimigos entre si, ao ponto de dividir os mundos sobre os quais cada um vai governar.
Como o texto, enquanto produção literária, é produção humana e os humanos, ao escrever, imprimem no texto reflexos de sua realidade, podemos perceber que o conflito entre as divindades reflete os confrontos entre os grupos que disputam o poder; e se quisermos, também refletem os dramas pessoais...
No caso da literatura que hoje é a Bíblia não é diferente. Olhando os textos bíblicos podemos ver como Yahweh se posiciona ao lado dos descendentes de José, quando estes, seguindo Moisés, fogem do Egito na basilar experiência do Êxodo. Primeiro abre o mar para a passagem dos hebreus, depois afoga os egípcios; coloca-se entre os hebreus e os egípcios ora como uma nuvem, ora como coluna de fogo. Depois, no período dos juízes confabula com eles, sugerindo táticas de guerrilha. Ou seja, o Deus bíblico acaba se mostrando um Deus guerreiro, partidário daqueles com os quais se alia. Em Deuteronômio 3,22, Moisés instrui seus sucessores: “Não tenhais medo deles, pois quem combate por vós é Yahweh, vosso Deus”
Por essas e outras é que podemos afirmar: o Deus bíblico é partidário de seu povo e manifesta-se em sua história. Não se dá a conhecer na paz e na meditação, como na experiência religiosa budista ou em outras experiências orientais, onde a oração e o silêncio são caminhos para a paz. No universo bíblico a paz é o outro lado do conflito. Ou seja, a paz até pode acontecer, mas será uma conquista da espada e da aliança com Deus. Será consequência da vitória sobre os inimigos e, portanto, será sempre uma paz ameaçada pelos inimigos derrotados...
Isso nos aponta para algumas características do Deus bíblico: manifesta-se na história e a partir do conflito; age dentro do conflito em defesa da vítima; escolhe os seus, tomando seu partido, contra os poderosos; não age só, pelo contrário, coloca-se ao lado dos seus escolhidos exigindo compromisso e contrapartida no processo de libertação. Isso é o que se percebe no episódio da sarça ardente, quando o Senhor manifesta-se a Moisés e, em seguida, confia-lhe uma missão: conduzir o povo para em busca da libertação.
“Eu vi, eu vi a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o seu clamor por causa dos seus opressores; pois eu conheço as suas angústias. Por isso desci a fim de libertá-lo da mão dos egípcios, e para fazê-lo subir daquela terra a uma terra boa e vasta, terra que mana leite e mel, o lugar dos cananeus, dos heteus, dos amorreus, dos ferezeus, dos heveus e dos jebuseus. Agora, o clamor dos filhos de Israel chegou até mim, e também vejo a opressão com que os egípcios os estão oprimindo. Vai, pois, e eu te enviarei a Faraó, para fazer sair do Egito o meu povo, os filhos de Israel.” (Ex 3,7-10)
Como se pode perceber, assim como os antigos deuses dos povos antigos, o Deus da Bíblia é um Deus que assume o conflito.  Daria pra dizer mais: ele se revela a partir do conflito porque toma para si as dores do povo. Ele vê, ouve, toma conhecimento, desce e envia… e faz isso não por ser um Deus violento, mas, pelo contrário, é o Deus da paz e da concórdia, mas também aquele que ampara os mais fracos, perseguidos, desamparados, excluídos, marginalizados, injustiçados…


5- Quem era esse povo?

Quem lê a Bíblia com os dois olhos – o olhar da fé e o olhar da curiosidade (que também pode ser chamada de razão ajudada pela ciência) – com certeza já se perguntou: Quem foi esse povo que descobriu a ação de Deus em sua história? Quem foi esse povo que se percebeu escolhido por Deus?
Trata-se de um povo que não tinha uma terra onde viver e cultivar suas sementes, construir suas cidades, pois era um povo nômade, que vivia e convivia com os povos das localidades em que acampavam com seus rebanhos. Fato ilustrado pela saga de Abraão (Gn 12), o migrante (Gn, 12,1-3). “Com suas tendas, Abrão foi estabelecer-se no Carvalho de Mambré, que está em Hebron, e lá construiu um altar a Iahweh” (Gn 13,18). 
Trata-se de um povo que aprendeu a ouvir a promessa e a aliança oferecida por Deus e trazida por Moisés no processo da libertação do Egito: “Tomar-vos-ei por meu povo, e serei o vosso Deus. E sabereis que eu sou Yahweh, o vosso Deus, que vos faz sair de sob as cargas do Egito” (Ex, 6,7). 
Trata-se de um povo que, em assembleia, rememorou sua história pela narrativa de Josué (Js 24,1-13). Foi por ele convidado a servir ao Deus Libertador e desafiado a abandonar aos deuses estrangeiros (Js 24,14). Um povo que, como Josué, optou pelo Deus de sua História.
“Se não vos parece bom servir a Yahweh, escolhei hoje a quem quereis servir: se aos deuses aos quais serviram vossos pais do outro lado do Rio, ou aos deuses dos amorreus, em cuja terra agora habitais. Quanto a mim e a minha casa serviremos a Yahweh” (Js 24,15).
Em assembleia, o povo responde, de forma definitiva: “Longe de nós abandoarmos Yahweh para servirmos a outros deuses. Yahweh, nosso Deus, é aquele que nos fez subir, a nós e aos nossos pais, da terra do Egito, da casa da escravidão” (Js 24,16-17). Portanto, não se trata de um Deus distante, mas que caminha ao lado em todo processo de libertação.
Trata-se de um povo que optou pelo Deus Libertador porque entendeu que em sua história, houve muitas quedas. Mas também percebeu que no arrependimento sincero, Deus foi fiel em sua aliança e em seu projeto de libertação.
E se buscarmos mais explicações, outras respostas poderiam ser acrescentadas a partir de outros textos como algumas passagens do Gênesis. As descrições da criação, do livro do Gênesis (Gn 1 e 2). Depois a descrição da aliança, feita com Noé, após o dilúvio (Gn 9,8). Mas, principalmente teremos a origem desse povo na figura de Abraão: 
“Yahweh disse a Abrão: Sai-te da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai, para a terra que eu te mostrarei. E farei de ti um grande povo, eu abençoarei e engrandecerei o teu nome; sê uma bênção. Abençoarei os que te abençoarem, amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; Por ti serão benditos todos os clãs da terra. (Gn, 12,1-3).”
Em alguns lugares os descendentes de Abraão são chamados simplesmente “filhos de Abraão”. Entretanto, se olharmos para as anotações dos arqueólogos, veremos que na região em que a Bíblia foi se formando ao longo dos séculos, existiram vários povos diferentes. Na volta do Egito os sucessores de Moisés (cf Ex 3,8) disputaram a terra prometida com os cananeus, heteus, amorreus, ferezeus, heveus, e jebuseus.
O fato é que houve muita disputa pela posse da região, hoje ocupada pelo Estado de Israel. E sabemos que num processo dessa natureza, o contato entre povos, invariavelmente ocorre interação cultural. Dessa forma, as tradições, as histórias populares, os mitos, lendas e crenças se entrecruzaram e se influenciaram mutuamente. 
Com base nisso podemos dizer que, do ponto de vista histórico, antropológico e cultural – e especificamente literário – não houve um povo que produziu a Bíblia, mas ela foi sendo gerada ao longo dos séculos pelo contato e interação de diversos povos. 
O resultado desse entrecruzamento foi organizado e redigido pelos descendentes de Abraão. Entretanto devemos nos lembrar que, de acordo com a narrativa bíblica, Abraão havia migrado da região mesopotâmica; interagiu com os povos de Canaã; migrou para o Egito e voltou para Canaã. Nesse processo sempre manteve-se em contato com outros povos. Ele e seus descendentes nunca viveram isolados. Na paz ou na guerra sempre interagia com seus vizinhos.
O mesmo podemos dizer dos seguidores de Moisés (um os descendentes de Abraão), ao conduzir os hebreus (hoje chamados de israelitas). Também esses, no deserto e na reconquista da “terra prometida”, pela paz e pela guerra, interagiu com diferentes povos. 
Podemos dizer, portanto que, o olho da fé nos faz ver a eleição divina. A ação divina é que mobiliza a escolha de um povo. Mas o olho da razão nos permite ver um longo processo de interação do qual resulta um povo. Um povo que percebeu que sua história se constituiu de forma diversa da história de outros povos. Nessa história e nessa tradição é que se forjou a Bíblia. Até que começou a ser compilada vários séculos depois, já no tempo de Salomão e seus sucessores, por volta do século X aC. Nesse período começou a compilação das tradições e dos textos a partir dos quais podemos, até hoje, ouvir a voz de Deus.


6- E o Pentateuco?

Neste ponto alguém pode perguntar: E o Pentateuco?
As pessoas de fé também podem ser curiosas! Deve-se registrar que é justamente essa curiosidade o grande propulsor da história da humanidade. Os avanços, e tropeços... da humanidade derivam dessa característica: a busca pelo saber. Por isso é que ao olharmos para a Bíblia podemos – e devemos – manter abertos os dois olhos: a fé e a razão, dons de Deus e que se complementam e nos completam. 
Com esses dois olhos voltemos nossa atenção para um aspecto da história da Bíblia. Não exatamente a história da formação da Bíblia, mas dos textos já definidos e definitivos, como os encontramos em nossas Bíblias atuais.
Então, enfim, vamos estudar o Pentateuco?
Ainda não. Ou sim! Já estamos estudando Pentateuco. Mas antes de entrarmos nos textos bíblicos, vamos entender mais alguns pressupostos para sua melhor compreensão. 
Primeiro nos indagando: o que é o Pentateuco? Afinal de contas essa não é uma palavra que ouvimos, lemos ou usamos todos os dias. Para muita gente, ela é uma palavra nova ou estranha. Um humorista poderia até dizer que esse é um “palavrão”! Mas não é só uma palavra grande!
Na realidade essa é uma palavra colhida da língua grega. Em sua primeira parte PENTA, indica a quantidade CINCO. Para entender isso, podemos nos lembrar de que o Brasil é PENTAcampeão do mundo, em futebol (cinco vezes campeão); os que gostam de matemática podem se lembrar de uma figura geométrica com cinco lado, chamado de PENTÁgono. 
A outra parte da palavra, TEUCO (que vem de teukos, também do grego), significa estojo e referia-se ao recipiente onde eram guardados os rolos de escritos. Inicialmente, portanto, pentateuco podia ser entendido como o estojo em que se guardavam os cinco rolos da Lei. Mais tarde passou a significar simplesmente LIVRO. 
Daí que Pentateuco diz respeito aos “cinco livros” ou às “cinco partes” iniciais da Bíblia. Ou seja, o pentateuco é uma pequena coleção formada por cinco livros.
O Pentateuco refere-se, portanto, aos livros do Gênesis, Êxodo, Números, Levíticos e Deuteronômio. Do ponto de vista da forma escrita final, podemos dizer que é no Pentateuco que começa a Bíblia. Entretanto ela começou muito antes, na vida. E os primeiros escritos que entraram para a Bíblia nem são, exatamente os do Gênesis. São partes dos chamados livros históricos. Mas essa é a história que se estuda ao estudar os Livros Históricos… Agora nos interessa entender o Pentateuco.
Esses primeiros escritos correspondem ao que os judeus chamam de Torá ou seja, a lei. Na tradição judaica, e numa compreensão superficial, costuma-se dizer que esses escritos foram produzidos por Moisés. No universo cristão, antes dos estudos mais apurados e antes do estudo bíblico ter sido iluminado pela história e pela crítica literária, também se acreditava que Moisés havia sido o autor desses escritos. Essa suposição se fundamenta em textos como Dt 4, 44: “Esta é a lei [Torah] que Moisés promulgou para os filhos de Israel”.
Podemos dizer, portanto, que as narrativas dos livros do Pentateuco, embora tenham uma configuração de narrativa histórica, na realidade é uma Teologia da História. Quando lemos alguns trechos de alguns livros do Pentateuco e os comparamos com a história, notamos que existem fatos ali narrados que não se encaixam com a história. Só pra exemplificar: no final do livro do Deuteronômio é narrada a morte de Moisés. Ora, se estes escritos tivessem sido feitos por Moisés, como diz a tradição e como o entendem alguns fundamentalistas, como poderia Moisés narrar sua morte e seu sepultamento? (Dt 34,1-12).
Entretanto, quando se olha com menos paixão e mais razão, percebe-se que o texto atual  apresenta-se com inúmeros pontos obscuros. Daí ser necessário mais estudo para se perceber maiores detalhes e para que esses detalhes nos ajudem a fundamentar nossa fé. É necessário que saibamos dar “as razões de nossa fé” como nos aconselha a primeira carta de Pedro (3,15).
Com esse olhar foi que inúmeros pesquisadores de diferentes cantos do mundo analisaram os textos bíblicos. Esses pesquisadores (exegetas, arqueólogos e historiadores) afirmam que alguns textos  do Pentateuco são bastante recentes, foram produzidos por volta do quarto séculos antes de Cristo. Outros textos são mais antigos, teriam sido produzidos entre os séculos X e IX, antes de Cristo. E, mais ainda, descobriram que os textos não nasceram na mesma região, mas representam tradições de localidades e povos diversos. 
Assim sendo, a Pentateuco, a primeira parte da Bíblia, representa uma situação complexa. É palavra de Deus, mas resultado de diversas situações humanas, ou seja, a origem da Bíblia nos coloca inúmeras indagações e problemas. A resposta depende de nosso olhar crítico. Daí que a questão, agora é saber: como as condições históricas daqueles povos repercutiram no texto bíblico de forma que possam iluminar nossa vida?
A fé, aliada com a curiosidade e engenhosidade humanas, movem as pessoas. E isso mobiliza os estudos. Olhar só com a fé pode nos conduzir não a Deus, mas atitudes fundamentalistas; olhar só com a razão pode nos conduzir à apostasia ou à descrença. Por isso nos deve guiar a atitude de Paulo, sugerindo a necessidade do processo de amadurecimento da fé. De cordo com o ensinamento de Paulo (1 Cor 13,15): “Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Quando me tornei adulto, rejeitei o que era próprio de criança”, evidentemente criança pensa e age como criança, mas ao crescer deve pensar e agir com maturidade, amadurecendo também sua fé.
Essa ordem paulina foi bem atendida pelos Padres Conciliares, quando nos deram a conhecer a Constituição Dogmática “Dei Verbum” que trata da Revelação divina. E não o faz de forma novidadeira. Pelo contrário, os bispos, no “sagrado Concílio”, com base nos “Concílios Tridentino e Vaticano I” emitiram suas orientações, entre outras, para que os pesquisadores aprofundem os estudos sobre a “Sagrada Escritura”. E assim, com base nos saberes das ciências ponham-se a “investigar com atenção o que os hagiógrafos realmente quiseram significar e que aprouve a Deus manifestar por meio das suas palavras” (DV 12).
Ainda no número 12 dessa mesma Constituição Dogmática que trata da Palavra de Deus: “Para descobrir a intenção dos hagiógrafos, devem ser tidos também em conta, entre outras coisas, os «gêneros literários». Com efeito, a verdade é proposta e expressa de modos diversos, segundo se trata de gêneros histéricos, proféticos, poéticos ou outros. Importa, além disso, que o intérprete busque o sentido que o hagiógrafo em determinadas circunstâncias, segundo as condições do seu tempo e da sua cultura, pretendeu exprimir e de facto exprimiu servindo se os gêneros literários então usados. Com efeito, para entender retamente o que autor sagrado quis afirmar, deve atender-se convenientemente, quer aos modos nativos de sentir, dizer ou narrar em uso nos tempos do hagiógrafo, quer àqueles que costumavam empregar-se frequentemente nas relações entre os homens de então. 
Mas, como a Sagrada Escritura deve ser lida e interpretada com o mesmo espírito com que foi escrita, não menos atenção se deve dar, na investigação do recto sentido dos textos sagrados, ao contexto e à unidade de toda a Escritura, tendo em conta a Tradição viva de toda a Igreja e a analogia da fé. Cabe aos exegetas trabalhar, de harmonia com estas regras, por entender e expor mais profundamente o sentido da Escritura, para que, mercê deste estudo de algum modo preparatório, amadureça o juízo da Igreja. Com efeito, tudo quanto diz respeito à interpretação da Escritura, está sujeito ao juízo último da Igreja, que tem o divino mandato e o ministério de guardar e interpretar a palavra de Deus.


7- O que dizem os textos bíblicos?

Para o homem de fé, a Bíblia é Palavra de Deus. A isso nos orienta o Vaticano II!
Mas para quem não acredita, é uma grande interrogação. 
E quem se deixa levar pela curiosidade da fé vê na Bíblia um universo de novidades que se revelam diariamente… “são rios de água viva!” (Jo 7,38) jorrando para a vida.
Não devemos esquecer que estamos diante da Palavra de Deus em linguagem humana; e a linguagem humana reflete o meio, o ambiente, o contexto e todas as demais condicionantes que produzem o homem. Por isso devemos manter a consciência de que essa Palavra Divina, mesmo sendo palavra libertadora e salvadora é, ao mesmo tempo, condicionada pelas contingências humanas. Daí que cabe aos cristãos procurar a voz de Deus escondida no discurso humano, pois a inspiração divina também se utilizou das sutilezas em que viveram homens concretos.
Ao ler a Bíblia não devemos nos esquecer que ela não nasceu pronta e que seu texto atual foi se construindo aos poucos. E o texto atual é resultado de diversas influências. Sendo assim, quanto mais entendermos a situação humana em que o texto foi produzido, mais claramente perceberemos a palavra de Deus. Ocorre que Ele se dá a conhecer no meio da nossa realidade, em nossa história.
Como estamos falando de uma Palavra Divina, influenciada pela ação e mediação humana, temos que saber quais são as influências que agiram sobre o texto bíblico. Uma linha de influência vem das diversas religiões dos povos com os quais os hebreus fizeram contato. São diversos os sinais de mitos e rituais religiosos de outros povos presentes, principalmente no Pentateuco. Só como exemplo, tomemos o mito babilônio da criação. Parece que esse mito mesopotâmico, está na origem do mito bíblico da criação. Ou seja, o autor do texto bíblico quando falou sobre a criação humana, para transmitir a Palavra de Deus, inspirou-se, entre outros, no mito mesopotâmico da criação. Ou seja, sob inspiração divina, não criou uma novidade, mas também sob inspiração da cultura dos vizinhos, apresentou a sua versão para o gesto do Criador.
Com base em quê podemos fazer essa suposição? Com base em argumentos da arqueologia e da história. Os pesquisadores nos informam que a cultura mesopotâmica é muito mais antiga do que a sociedade hebraica. Os povos que criaram os mitos mesopotâmicos viveram antes do povo hebreu, os quais criaram as narrativas bíblicas. Devemos nos lembrar que as origens do povo hebreu nos levam a Abraão. E Abraão, segundo o relato bíblico, inicialmente viveu na Mesopotâmia. Começou seu processo migratório a partir da Mesopotâmia (Gn 11,31; 12,4).
Um outro argumento nasce dos especialistas que comparam e analisam os textos antigos. Neste caso as narrativas mesopotâmicas e as da Bíblia. A ferramenta teórica que os especialistas usam para isso chama-se critica literária e crítica das formas. E a comparação dos textos mostra muitas semelhanças formais, embora os conteúdos sejam distintos. Nos mitos mesopotâmicos existem divindades criando seres humanos. O mito bíblico também mostra essa ação criadora de Deus. 
Podemos também mencionar um argumento antropológico. Isso significa que o fato de Canaã estar localizada numa rota por onde passavam inúmeras caravanas deixou marcas sobre a cultura dessa região. Além disso, a “família” de Abraão, de acordo com o texto bíblico, é originária da Mesopotâmia, conforme podemos ler em Gn 11,4: “Abrão partiu, como lhe disse Yahweh, e Ló partiu com ele. Abrão tinha setenta e cinco anos quando deixou Harã”. Dessa forma teria trazido em sua bagagem cultural informações daquela região.
Outra linha de argumentos pode ser percebida na teoria das tradições ou das fontes. Essa teoria demonstra que o texto bíblico atual foi sendo produzido ao longo de vários séculos. Na realidade o Pentateuco teria começado a se formar por volta dos séculos X e IX antes de Cristo e teria chegado à configuração que hoje conhecemos depois do século VI, posteriormente ao Exílio (período em que as lideranças do povo de Deus foi deportada para a Babilônia). 
Os pesquisadores encontram pelo menos quatro tradições – ou fontes – distintas como sendo as bases de onde surgiram o texto. Essas tradições orais que deram origem aos atuais textos teriam se desenvolvido em diferentes época e em locais distintos. Seus objetivos também são diferentes. E por isso apresentam a mesma mensagem divina com características diferentes umas das outras. 
Em nossas Bíblias em Português nem sempre percebemos essas particularidades, mas na língua original (hebraico ou grego)  as particularidades da linguagem são mais evidentes. A partir disso foi que os pesquisadores puderam perceber que existem quatro fontes originantes. Duas são as mais antigas, possivelmente anteriores ao Exílio babilônico, ainda do período monárquico. Uma chama a Deus de Yahweh. Por isso os pesquisadores chamarem essa de tradição Javista (J), possivelmente produzida no século IX, em Judá. A outra chama a Deus de Elohin: é a tradição eloísta (E), teria sido produzida em Israel, depois da ruína do reino do norte. Essas duas fontes nos preservaram partes muito antigas do Pentateuco.  
As outras duas fontes foram sistematizadas no período do exílio na Babilônia ou são pós exílicas. Trata-se das tradições sacerdotal (P) e deuteronomista (D). O documento sacerdotal teria surgido durante o período exílico e pouco depois, quando os sacerdotes judeus reinterpretaram sua história para reanimar os exilados e manter a mesma fé. A fonte deuteronomista possivelmente se originou com a reforma do templo no reinado de Josias (sec VII aC).
Essas particularidades de linguagem não são claramente perceptíveis em nossa língua, nas traduções que usamos. Por isso nosso estudo pode se concentrar nas descontinuidades, repetições e semelhanças com outros textos de outras culturas. Levando isso em consideração podemos dizer que o texto atual da Bíblia é uma colcha de retalhos. Temos hoje um texto que, para os olhos leigos, é único e coerente. Mas se olharmos com um pouco mais de atenção começaremos a perceber várias descontinuidades, interrupções ou ligações de ideias quase sem sentido. 
Quando lemos nossas bíblias, para alimentar nossa fé, não nos damos conta dessas particularidades textuais. Mas quando estudamos com um pouco mais de atenção podemos nos perguntar sobre os vários elementos intrigantes: por que são necessárias duas versões da criação, como se pode ver em Gênesis 1 e 2? De onde se originou a humanidade, se após a morte de Abel, Caim foi expulso do paraíso? Se Adão e Eva foram criados por Deus e são os primeiros serem humanos, como explicar que Caim tenha medo de ser perseguido e morto pelos estrangeiros, portando a marca de assassino? De onde surgiu a esposa de Caim? Quem são os estrangeiros, se havia sido criados apenas um casal?
Como explicar duas afirmações da criação do ser humano? Em Gênesis 1,27 lemos: “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele os criou, homem e mulher, ele os criou”. E logo em seguida, em Gênesis 2,7 lemos: “Deus modelou o homem com a argila do solo”. Mais adiante, em Gn 2,18 Deus constata a solidão do homem: “Não é bom que o homem esteja só”. Então o Senhor modelou todas as criaturas e no final apresentou-lhe um ser feito de sua costela. Gênesis 2,23: “Esta sim é osso dos meus ossos e carne de minha carne! Ela será chamada ‘mulher’ porque foi tirada do homem!”.
Isso indica que podemos vasculhar a Palavra de Deus, em busca de elementos que ajudem nossa fé. Uma fé esclarecida é muito mais madura. Ler a Bíblia com os olhos da fé, nos fortalece, mas a fé sendo ajudada pelos olhos da razão fica mais robusta. Uma fé robustecida não vai ser manipulada pelos aventureiros de plantão. A fé de uma criança franzina pode ser facilmente abalada, mas se ela for alimentada com a vitamina do estudo, robustece, fica corada e com coragem de enfrentar os desafios da vida com a certeza de que o Deus da Bíblia é quem segura nossa mão.
Vale ressaltar que a Bíblia não é um livro de história – no sentido da ciência da história – mas uma palavra para alimentar e orientar as ações das pessoas de fé. Podemos dizer que faz uma teologia da história. Por isso, a resposta a essas e outros pontos curiosos, contraditórios ou duvidosos pode ser dada não pela fé, mas pela pesquisa histórica e pela análise literária do texto. Ou, dizendo de outra forma, as informações históricas e da crítica literária (as informações da ciência) podem nos ajudar a superar uma fé infantil para desenvolver em nós uma fé amadurecida, esclarecida, como o desejava o apóstolo Paulo.
Além disso, o fato de sabermos que a Bíblia não nasceu pronta e que é tributária das interações culturais não invalida em nada o fato de ser Palavra de Deus. Apenas reforça a ideia de que Deus age sempre a partir das ações humanas e acompanhando a evolução humana. Ele, certamente, poderia ter influenciado diretamente, como que ditando, o texto bíblico. Entretanto preferiu usar a história humana para demonstrar que não é um Deus ausente, mas presente na história e ao longo da história.

8- Os títulos dos livros do Pentateuco

Quem está acostumado com o que chamamos de estudos bíblicos já sabe que o a Bíblia se formou a partir de vários escritos, aos quais chamamos de livros. E os vários livros bíblicos são agrupados e esses agrupamentos de escritos recebem uma denominação que ajuda o estudante a situar-se no estudo de blocos temáticos; ajuda a direcionar os estudos. 
E quais são esses grupos de livros? 
No Antigo Testamento são quatro grupos de escritos: 7 escritos (ou livros) Sapienciais; 18 escritos Proféticos; 16 livros Históricos e os 5 livros do Pentateuco, totalizando os 46 livros do Antigo Testamento.
O Novo Testamento também pode ser agrupado. Temos os 4 Evangelhos, as 14 Cartas (ou epístolas) Paulinas ou a ele atribuídas, as 7 Cartas Católicas; 1 livro histórico (Atos dos apóstolos) e 1 livro “Profético” (o Apocalipse). Ao todo 27 livros neotestamentários.
Mas aqui nos interessa apenas o primeiro grupo de escritos. Aquele formado pelos 5 livros das origens, e que estão justamente no começo da Bíblia e são denominados de Pentateuco. Esse conjunto de livros, aos quais chamamos que Pentateuco, é o mesmo que na Bíblia Hebraica recebe a denominação de Torá, ou a Lei. São escritos atribuídos a Moisés. Mas, já sabemos, foram produzidos após sua morte.
Recordando, também, que a palavra pentateuco, originalmente, referia-se ao estojo no qual eram guardados os livros da Lei. Os estojo dos cinco livros. Assim como havia outros estojos para se guardar os outros escritos.
Bem, já sabemos que o nosso Pentateuco é formado por 5 livros: Gênesis, Êxodo, Números, Levítico e Deuteronômio. Cada um deles retrata um aspecto da relação do homem com Deus e como Deus se manifesta no cotidiano e na história do povo. Entretanto é bom lembrar que os nomes que usamos em nossas Bíblias, em português, não corresponde ao nome dos livros da Torá, dos Judeus. 
O título dos livros da Torá (o nosso Pentateuco), é retirado das primeiras palavras de cada um dos livros, em hebraico. Assim o livro do Gênesis é: “NO PRINCÍPIO” (Bereshit); o Êxodo, para os judeus é o livro dos “NOMES” (Shemot); o nosso Levítico é intitulado de “CHAMOU” (Vayikra). O livro dos Números, para os Judeus é “NO DESERTO” (Bamidbar). Já o Deuteronômio, os judeus chamam de “AS PALAVRAS” (Devarim). Claro que isso tudo escrito em Hebraico. Isso porque na antiga tradição judaica o título do livro (que na realidade era um rolo de pergaminho ou papiro) correspondia às primeiras palavras daquele texto.
Como mudou para os nomes que damos atualmente? 
Há uma tradição de que um grupo de judeus viveu em Alexandria (no norte da África). Entre eles havia 72 sábios que teriam traduzido os textos sagrados para a língua grega, a fim de facilitar a leitura entre os judeus dessa cidade. Isso porque o texto hebraico já era incompreensível para os judeus da “diáspora” (que viviam em outros países) os quais comunicavam-se em grego.
Segundo essa tradição, a tradução feita por essas sábios, passou a ser denominada de “Septuaginta”. Daí que em muitos estudos e comentários sobre a Bíblia se fala da “versão dos LXX” ou “tradução dos LXX” referindo-se a esses setenta sábios ou a essa tradução do texto hebraico para o grego. Lembrando que foi dessa versão grega que se traduziu a Bíblia usada pelo catolicismo.
Os padres conciliares assim se manifestaram a respeito dessas traduções, facilitando o acesso dos crentes à Palavra Sagrada e sobre a opção da Igreja em usar a versão dos LXX: 
“É preciso que os fiéis tenham acesso patente à Sagrada Escritura. Por esta razão, a Igreja logo desde os seus começos fez sua aquela tradução grega antiquíssima do Antigo Testamento chamada dos Setenta; e sempre tem em grande apreço as outras traduções, quer orientais quer latinas, sobretudo a chamada Vulgata. Mas, visto que a palavra de Deus deve estar sempre acessível a todos, a Igreja procura com solicitude maternal que se façam traduções aptas e fiéis nas várias línguas, sobretudo a partir dos textos originais dos livros sagrados. Se porém, segundo a oportunidade e com a aprovação da autoridade da Igreja, essas traduções se fizerem em colaboração com os irmãos separados, poderão ser usadas por todos os cristãos” (DV 22).
Evidentemente não sabemos se essa tradição – essa lenda – é ou não verdadeira. Não podemos afirmar que tenha ocorrido ou não essa reunião dos sábios. O que sabemos é que foi feita uma tradução da Bíblia para a língua comum (koiné) dos judeus de Alexandria. E foi essa versão grega, de Alexandria, que fez a mudança dos títulos dos livros. Em vez dos títulos a partir das primeiras palavras, como era costume entre os judeus, a tradição dos LXX passou a usar títulos gregos: nesse título usaram palavras que eram uma espécie de resumo do livro.
Dessa forma o livro que os judeus chamam de “NO PRINCÍPIO” passou a ser o livro das Origens: Gênesis (em grego), indicando a origem do mundo, das criaturas, e do povo hebreu. O livro dos “NOMES” passou a ser a narrativa da Saída: Êxodo (em grego), narrando a saída do Egito e as aventuras do povo no deserto, onde receberam as primeiras normas de convivência e seguimento do Deus Libertador. O livro denominado de “CHAMOU” passou a ser Levítico pois trata de uma série de normas para o culto e a convivência; principalmente as normas para os sacerdotes levitas. Por sua vez o livro “NO DESERTO”, passou a ser denominado de Números (Aritmoi, em grego), pois comenta uma série de recenseamentos e recontagens dos hebreus e seus descendentes. Por último o livro que os judeus intitulavam de “AS PALAVRAS”, na versão da Septuaginta foi intitulado de Deuteronômio, que é a palavra grega para se referir a uma segunda lei, uma vez que o Deuteronômio repete muitas das normas estabelecidas no Êxodo.
Essa denominação dos LXX foi incorporada em nossas Bíblias pela Tradição da Igreja. Isso porque no início da Igreja os cristãos de Alexandria tiveram muita influência para a definição do Cânon, que é a lista dos livros que passaram a compor a Bíblia, como usamos hoje, no cristianismo. Como ali se falava o grego, essa foi a língua usada inicialmente quase como se fosse uma língua oficial da Igreja nascente. Tanto que os escritos do Novo Testamento foram produzidos em Grego.
Todos esses comentários nos ajudam a entender que a formação e definição dos escritos bíblicos não se deu de forma mágica e definitiva. Antes, pelo contrário, ocorreu num processo muito humano. Partindo disso podemos dizer que a inspiração divina não ocorreu de forma mágica, ou como se fosse num transe, como se a Bíblia tivesse sido “psicografada”. Como se o redator sagrado fosse escrevendo aquilo que o Senhor “ditava”. Foi, antes uma dinâmica de interação entre o redator do texto sagrado e o Autor Sagrado que é o próprio Deus. Mas essa interação não se deu apenas num momento específico, e sim ao longo da história… pois o Deus Libertador age sempre na história humana, inspirando as ações humanas num constante processo de libertação, de interação, de superação de todas as traves e entraves que dificultam a vida humana ou que tendem a produzir dominação. Por isso a fé cristã não se fundamenta apenas na oração, mas faz da oração um processo de adoração e de ação pela autonomia humana. 
E será sempre a Palavra Sagrada a guiar a voz da Igreja e a ação humana em busca da Libertação: de pecado porque todos nasceram e se destinam à santidade; dos males sociais, da exclusão, da exploração, da pobreza… porque Deus não deu a vida às pessoas para viverem no sofrimento. Portanto com base na Palavra de Deus a Igreja e cada um dos cristãos são convocados a construir a libertação e a vida plena. 
Portanto, e para que a Palavra nos conduza a todos para a Libertação, nos impulsionando  processo da construção do Reino, faz-se necessário além da leitura orante a postura de estudante; além da oração, a ação; além da fé, a ação libertadora que nasce e da sintonia com o Senhor e do conhecimento de sua Palavra. 

Leituras que podem ajudar…


Existem vários livros que podem ajudar no aprofundamento dos conhecimentos bíblicos. Sugerimos aqui alguns deles, juntamente com alguns sites que trazem informações que podem ser úteis para aprofundamento dos estudos.
Esta brevíssima introdução aos Estudos Bíblicos e ao Pentateuco foi elaborada com base na leitura das introduções da Bíblia de Jerusalém e da Bíblia Sagrada - Edição Pastoral (ambas da Paulus) além das obras abaixo mencionadas, entre várias outras.
Além destas obras de cunho acadêmico, o estudante da Bíblia não pode negligenciar a leitura dos documentos da Igreja, sobre o assunto, pois aí estão as orientações do Magistério para a edificação dos cristãos.

Documentos da Igreja:
Constituição Dogmática DEI VERBUM - Vaticano II - sobre a Revelação Divina:  
Carta Encíclica DIVINO AFFLANTE SPIRITU do Papa Pio XII:  

Livros e artigos:
ANGLADA, Paulo R. B. O Cânon bíblico. In: https://filadelfiafranca.com.br/. 2017. disponível em: . Acesso em 12/10/2023
BOTELHO, José Francisco e GARATTONI, Bruno. Quem escreveu a Bíblia? Disponível em: . 2008. Acesso em 10/01/2023
CASONATTO, Odalberto Domingos. Explique a etimologia da palavra Bíblia. Disponível em: 2015. Acesso em 10/01/2023
______________. Quando, Onde, Quem, Em que língua, Para quê a Bíblia foi escrita? Disponível em: . 2015. Acesso em 10/01/2023
FUHR, Moacir. O papiro no Egito Antigo. Disponível em: . 2019. Acesso em 10/01/2023.
GLAVAM EP, Padre Arnóbio José. Quando e como a Bíblia foi escrita? Disponível em 2014. Acesso em 10/01/2023.
MESTERS, Carlos. Paraíso terrestre: saudade ou esperança? Vozes. Petrópolis, 1971
ROSA, Luiz da. O Cânon da Bíblia. Disponível em: 2005. Acesso em 10/01/2023.
SILVA, Daniel Neves. Papiro. Disponível em: Acesso em: 10/01/2023.
TOGNORI, Silvia. O que é tradição javista e tradição sacerdotal? Qual a semelhança/diferença? Disponível em:
TOLEDO, Joilson de Souza. Textos que abrem portas: Leitura Popular da Bíblia apresentada a partir de textos bíblicos. In Interações, vol. 15, núm. 1, 2020. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Disponível em: https://www.redalyc.org/journal/3130/313064676011/html/
VILLASENOR, Rafael Lopez. Como a Bíblia foi escrita? - Disponível em: . 2020. Acesso em 10/01/2023.

Endereço de sites e revistas de interpretação bíblica:
Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos: . Catalogo de publicações sobre diferentes temáticas 
Fontes Literárias do Pentateuco:
Link para a BÍBLIA DE JERUSALÉM, on line: https://liturgiadashoras.online/biblia/biblia-jerusalem/
Link para a BÍBLIA SAGRADA Edição Pastoral, on line: https://biblia.paulus.com.br/ 
Os livros da Bíblia hebraica:
Revista Bíblica, Freis Capuchinhos de Portugal:
Revista oficial da ABIB – Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica:  
Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana (RIBLA):  
Site com perguntas e respostas sobre a Bíblia:  

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