Bíblia: História e Livros Históricos
Por NERI P. CARNEIRO | 25/07/2017 | BíbliaBíblia: História e Livros Históricos
Os textos históricos, na bíblia, possuem algumas características específicas, tornando-os diferentes da história e dos livros de história da sociedade humana ao longo dos milênios. Aquilo que na bíblia se convencionou chamar de livros históricos não apresenta apenas a crônica dos fatos, mas a fé dos hebreus interpretando os fatos. E isso é completamente diferente da história enquanto ciência dos fatos passados, principalmente porque são escritos posteriores aos fatos tratados.
Daí a importância de se diferenciar aquilo que podemos chamar de história da salvação, ou dos hebreus e a história enquanto ciência.
Quase sempre, quando falamos em história ou ciência da história, o que nos vem à mente são coisas do passado. Entretanto, corrigindo o equivoco devemos notar que esta é uma ciência do presente. É o homem atual que, no presente, procura interpretar o passado, utilizando os retalhos que dele sobraram (as fontes ou documentos históricos). Mas tanto o historiador como suas fontes estão no presente. Sendo assim podemos dizer que a história é uma das formas que temos para falar sobre o nosso cotidiano atual a partir de nossas impressões e interpretações do passado. Ao historiador – o homem atual – interessa não é o passado, mas o presente lido, comentado e interpretado a partir de interpretações do passado, retratados na e a partir da documentação.
Deve-se ressaltar, entretanto que:
Esses documentos não são a história nem o passado, mas nos trazem retalhos do passado para o nosso presente. Cabe ao historiador interpretar os documentos fazendo uma leitura do fato. Essa leitura/interpretação pode conter equívocos, os quais podem ser superados ou evitados por meio de novas pesquisas e comparação de documentos. [...]
O fato é que somos nós, em nosso presente, que nos interessamos pelo passado e nele buscamos as informações que nos interessam. São as memórias de quem viveu o fato que produzem as fontes; são os interesses atuais que interpretam os documentos. Nós os interpretamos, atribuímos significado e com eles iluminamos nosso presente... de acordo com nossos interesses... (CARNEIRO, 2016).
Podemos, portanto, reafirmar que o homem atual lê os retalhos do passado utilizando-se da ciência histórica. E isso que dizemos da história aplica-se à história bíblica e aos livros históricos, da bíblia: são a memória de quem os produziu e nós os lemos ou estudamos de acordo com nossos interesses atuais.
Nesse conjunto de escritos bíblicos não estão os fatos, tal qual se deram, mas as interpretações que, do seu passado, fizeram aqueles que produziram os textos. Não se trata, portanto, de história, mas de interpretação teológica de alguns fatos históricos ou, se dermos atenção a alguns arqueólogos atuais, pode-se dizer que os textos bíblicos produziram ou exageraram na narrativa de fatos históricos ou pseudo históricos.
No livro “A bíblia não tinha razão” (FINKELSTEIN; SIBERMAN, 2005) podemos ler a afirmação de que as pesquisas da arqueologia têm encontrado vários documentos com referência ao “antigo povo israelita” e vários de seus vizinhos. Entretanto
Isso não significa que a arqueologia provou ser verdadeira a narrativa bíblica em todos os seus detalhes.[...] Agora é evidente que muitos eventos da história bíblica não aconteceram numa determinada era ou da maneira como foram descritos (FINKELSTEIN; SIBERMAN, 2005. p. 16).
Os mesmos autores falam sobre os eventos do Êxodo, dizendo que os mesmos retratam não a história enquanto fato ocorrido por volta do 1250 aC, mas uma “expressão da memória e da esperança” no tempo do rei Josias (sec VII). Dizem os autores:
A saga do Êxodo de Israel do Egito não é uma verdadeira história nem ficção literária. É uma poderosa expressão da memória e da esperança, nascido num mundo em mudança. A confrontação entre Moisés e o faraó espelhava o significativo confronto entre o jovem rei Josias e o faraó Necau, recentemente coroado. Fixar essa imagem bíblica e uma só data é trair o significado mais profundo da história. A Pascoa dos judeus prova não ser um evento solitário, mas uma experiência ininterrupta de resistência pública contra todos os poderes que existiam e que pudessem existir (FINKELSTEIN; SIBERMAN, 2005. p. 105).
Especificamente a respeito dos livros históricos, os mesmos autores fazem alguns comentários, dizendo que a conquista grandiosa e as espetaculares tomadas de cidades fortificadas narradas no livro de Josué e Juízes não se deram conforme narram os textos bíblicos. E os autores explicam o porquê: de acordo com estudos de documentação relativas ao Egito, a região de Canaã, no tempo da conquista, era uma possessão egípcia; além disso e justamente por ser dominação egípcia as cidades não passavam de pequenos vilarejos fortemente controladas pelos representantes do faraó. Além disso os hebreus, fugidos do Egito ex-escravos e suas famílias, mulheres, velhos e crianças não tinham condições de formar exércitos para derrotar eventuais exércitos organizados.
De acordo com achados “achados arqueológicos” o controle egípcio era severo sobre as regiões conquistadas. Por esse motivo “os príncipes das cidades de Canaã (descritos por Josué como poderosos inimigos) eram, na verdade, pateticamente fracos”. (FINKELSTEIN; SIBERMAN, 2005. p. 112). Pois se fossem poderosos reagiriam e lutariam pela sua independência. Em relação às cidades e suas fortificações, dizem os autores:
A típica cidade tinha apenas um palácio, um conjunto de edificações em torno de um templo e outros poucos prédios públicos, provavelmente residência para altos funcionários, hospedaria e outros edifícios administrativos. Mas não existiam muros em torno das cidades (FINKELSTEIN; SIBERMAN, 2005. p. 112).
O que podemos concluir dessas informações históricas/arqueológicas contradizendo as narrativas dos livros históricos? Sabemos que os fatos narrados nos livros históricos (especificamente Josué e Juízes) tratam de fatos que teriam ocorrido por volta do século XII aC. E os textos em questão foram produzidos séculos depois, possivelmente por volta do século VII aC. Os textos bíblicos são portanto interpretações posteriores de fatos muito antigos.
Mais do que apenas interpretações do passado – pois não retratam os fatos tal qual se deram – mas interpretações teológicas. Ou seja: são textos que pretendem falar sobre a vontade de Deus não a respeito do passado, mas para a sociedade contemporânea dos autores. E isso tudo tem a ver com a finalidade da bíblia que não é ser um livro de história, mas um instrumento para alimentar a fé e a esperança. Por isso é que falamos em interpretação de fatos e não da coincidência dos textos com os fatos.
Acrescentando que, no caso dos textos bíblicos, além da interpretação do fato ele foi relido à luz da fé e de uma certeza: o povo estava se desligando dos preceitos da Aliança e se afastando de Deus, mas Deus não havia abandonado seu povo! E mais: Deus permanece fiel à sua Aliança apesar da infidelidade do povo! Disso vem a finalidade dos livros históricos: mostrar que a consequência da infidelidade produz os percalços da vida e da sociedade e os textos – em diferentes épocas – foram produzidos para convocar o povo a rever seus passos errados e retornar para os caminhos de Deus.
Essa, pode ser apontada, como a principal razão de se terem produzidos os livros históricos. Os seus autores querem falar de sua história. É o seu cotidiano que está retratado naquelas páginas. Mas para tratar disso não se referem do seu cotidiano mas ao seu passado; não os fatos tal qual eles se deram, mas a partir de uma interpretação pela qual se pode mostrar como a graça de Deus vem agindo na história. Os texto podem até dar a impressão de que são uma espécie de crônica dos acontecimentos, mas são releituras posteriores do fato o que se pode comprovar por meio de expressões como: “até o dia de hoje” ou “nesse tempo” (Js 6,25.26).
Referências
A BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1985
CARNEIRO, Neri P. Tudo é história. Disponível em: https://www.webartigos.com/artigos/tudo-e-historia/147511. Acesso em 6/7/2017.
FINKELSTEIN, Israel; SIBERMAN, Neil. A Bíblia Não Tinha Razão. São Paulo: A Girafa Editora, 2005. Disponível em: https://www.scribd.com/document/350862296/A-Biblia-nao-tinha-razao-Israel-Finkelstein-e-Neil-Ascher-Silberman-pdf. Acesso em 6/7/2017.
Neri de Paula Carneiro
Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador
Rolim de Moura - RO