Autonomia e solidariedade em rorty: excludentes ou compatíveis?
Por Romano Antonio Scardua Modenesi Pereira | 05/12/2011 | FilosofiaAUTONOMIA E SOLIDARIEDADE EM RORTY: EXCLUDENTES OU COMPATÍVEIS?
Contingência, ironia e solidariedade
“um livro sobre a tensão entre a perfeição individual e a responsabilidade social, (...) a tensão entre a arte e a filosofia radical, ou entre a arte enquanto desenvolvimento de uma consciência individual só por si e a necessidade de pôr de lado os assuntos particulares de cada um em benefício do interesse público.”
Richard Rorty
A contingência liberal e a ironia privada
Pensadores como Nietzsche, Freud e Wittgenstein nos permitiram encarar nossas sociedades como contingências históricas. Essa percepção irônica da condição humana tem seu valor na esfera privada, mas é incapaz de promover os objetivos sociais e políticos do liberalismo. Para Rorty, a literatura, e não a filosofia, é a única capaz de promover a verdadeira solidariedade humana, pois as palavras de romancistas como Orwell e Nabokov foram mais eficazes na tentativa de nos sensibilizar diante da crueldade que as indagações de inúmeros filósofos.
Rorty procura apontar para um tipo de sociedade liberal, utópica ainda, em que as pessoas, acredita ele, possam ser mais livres para desejar e buscar satisfazer seus desejos; e também mais solidárias, contribuindo assim para que os outros possam também satisfazer seus desejos e a dor alheia possa com isso ser, se não evitada, ao menos reduzida.
Rorty descreve o que, para ele, seriam atitudes que promoveriam uma aproximação desse ideal de sociedade e, por outro lado, atitudes que precisariam ser abandonadas para que não se tornem, como já são, obstáculos à pretendida sociedade.
Os pressupostos teológicos e metafísicos são as velhas armadilhas a serem evitadas. A busca por fundamentos, que são o modo como essas correntes de pensamento se movimentam, já não merece mais uma estatura de regra universal para se conseguir articular novos horizontes.
A teologia buscando seus fundamentos na religião, prescreve regras morais que seriam necessárias à vidaem comunidade. Afilosofia tradicional, com a metafísica, não faz algo muito diferente. Coloca a razão como valor absoluto e norte para orientar a conduta moral, também esta hipoteticamente necessária para a convivência social.
O historicismo ajudou a libertar-nos parcialmente da teologia e da metafísica, da tentação de buscar uma fuga do tempo e do acaso; a substituir a Verdade pela liberdade como meta do pensamento e do progresso social. Mas, ainda assim, a tensão entre o publico e o privado permanece. Historicistas identificados com a autocriação, a autonomia privada, como Nietzsche, Heidegger e Foucault, são acusados de esteticistas por historicistas como Dewey e Habermas.
Rorty propõe que não tenhamos a tentação de escolher entre eles, mas dar-lhes igual importância e utiliza-los para fins diferentes.
Mas, para se alcançar ou ao menos se caminhar na direção da sociedade liberal que Rorty preconiza, passos devem se dar de outra forma. Os vocabulários finais dos teólogos e metafísicos já não precisam nem devem mais serem assumidos com estatura de necessidade, regra universal. Isto é, a busca pelos fundamentos que possam por sua vez conduzir cada vez mais a uma “verdade” absoluta não é o vocabulário final bom para a sociedade liberal.
Um vocabulário múltiplo, aberto, e que não obstrua ou se coloque em posição hierarquicamente superior a outros, que promova a criatividade e a imaginação, buscando absorver e mesclar elementos das mais variáveis matizes culturais quanto possível.
Rorty esboça a figura do “ironista liberal”, sendo este alguém suficientemente historicista e nominalista para crer que suas convicções e desejos centrais são contingentes, portanto da ordem do tempo e do acaso. O liberal é aquele que considera a crueldade a pior coisa que podemos fazer. Mas não há resposta argumentativa para convencer alguém a ser assim.
Para Rorty, a maioria dos não-intelectuais ainda tem alguma forma de fé religiosa e/ou de racionalismo iluminista. Assim, o ironista é percebido como avesso a democracia, a vida em sociedade.
Em sua utopia liberal, a solidariedade humana seria um objetivo a ser alcançado não pela indagação, mas pela imaginação, de ver, por exemplo, pessoas estranhas como semelhantes sofredores. Essa maior sensibilidade torna mais difícil marginalizar pelo pensamento as pessoas diferentes de nós.
Para Rorty, esse processo de “sensibilização” não é uma tarefa para a teoria, mas uma quetão de “olhar” detalhadamente as pessoas desconhecidas e redescrever quem somos nós mesmos. Para tanto, ele aponta para gêneros como jornalismo, cinema, televisão e, principalmente, o romance, no lugar do sermão e do tratado, como principais veículos de mudança e progresso morais.
É uma guinada contra a teoria e a favor da narrativa. Assumindo a contingência da linguagem, os múltiplos vocabulários, desistindo de se buscar um metavocabulário que pudesse abarcar todos os outros, todas as maneiras de julgar e sentir. Usar a imaginação para criar novas formas de se viver, ao invés de tentar a convergência para uma verdade já existente.
Uma filosofia que abandona suas pretensões de fundamentação transcendental ou ontológica e deixa-se ver como prática retórica de mediação, engajada na promoção de uma cultura “liberal”, uma cultura em que a descrição do que é o “nós, humanos” pode e deve transformar-se continuamente, incluindo cada vez mais formas de vida e práticas sociais. A diminuição da crueldade é o objetivo dessa prática cultural, que assume sua contingência e a sua ausência de “fundamento” em uma idéia ontológica do “humano”. Uma vez que o “humano” é o que a comunidade define para seus propósitos, incluir cada vez mais exemplares nessa categoria é tarefa maior da política liberal do intelectual filósofo, bem como do romancista, do crítico literário e do antropólogo. Não é possível ao filósofo pretender qualquer privilégio epistêmico para o desempenho dessa tarefa. Ao contrário, ele é, com freqüência, o menos cotado para desempenhá-la bem, uma vez que não se dirige prioritariamente à imaginação e ao sentimento de identidade dos indivíduos da comunidade.
Nessa perspectiva, “objetividade” é um nome enganoso, inventado por realistas ingênuos em epistemologia e em ética, perseguidores de uma universalidade independente das práticas humanas. Rorty propõe substituir “objetividade” por “solidariedade”, isto é, pelo acordo intersubjetivo, sempre limitado, contingente e histórico. O pragmatista concebe o universo epistêmico e moral não como fundado em realidades objetivas independentes, mas como conjunto de práticas cooperativas de construção de crenças, desejos e sentimentos. Não há como falar de objetividade para além dessas práticas.
BIBLIOGRAFIA
RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. São Paulo: Martins Fontes, 2007.