Assim falava Zaratustra: um livro para todos e ninguém
Por Jacot Werner Stein | 17/04/2020 | FilosofiaASSIM FALAVA ZARATUSTRA: UM LIVRO PARA TODOS E NINGUÉM
0. Uma das obras mais importantes de Nietzsche (1.844-1.900), que ele próprio caracterizou como "um livro para todos e ninguém".
Contarei agora a história do Zaratustra. A concepção fundamental da obra, o 'pensamento do eterno retorno', a mais elevada forma de afirmação que se pode em absoluto alcançar, é de agosto de 1881: foi lançado em uma página com o subescrito: "seis mil pés acima do homem e do tempo". Naquele dia eu caminhava pelos bosques perto do lago de Silvaplana; detive-me junto a um imponente bloco de pedra em forma de pirâmide, pouco distante de Surlei. Então veio-me esse pensamento. -- Retrocedendo alguns meses a partir desse dia, encontro, como signo premonitório, uma súbita e profundamente decisiva mudança em meu gosto, sobretudo na música. Talvez se possa ver o Zaratustra inteiro como música; -- certamente um renascimento da arte de 'ouvir' era uma precondição para ele. Em uma pequena estação de águas próxima a Vicenza, Recoara, onde passei a primavera de 1881, descobri, juntamente com o meu 'maestro ' e amigo Peter Gast, também ele um "renascido", que a fênix Música por nós passava em vôo, com plumagem mais leve e luminosa do que jamais exibira. Se porém contarmos para a frente a partir daquele dia, até o parto súbito, acontecido nas mais inverossímeis circunstâncias, em fevereiro de 1883 -- a parte final, a mesma da qual citei algumas frases no prefácio, foi concluída exatamente na hora sagrada em que Richard Wagner morria em Veneza --, resultam então dezoito meses de gravidez. Esse número exato de dezoito meses poderia sugerir, entre budistas pelo menos, que no fundo sou uma fêmea de elefante. -- Ao período intermediário pertence a 'gaya scienza', que contém mil indícios da proximidade de algo incomparável; afinal, ela dá inclusive o começo do Zaratustra, na penúltima parte do quarto livro dá o pensamento básico do Zaratustra. -- [...] [EH/EH - Assim falou Zaratustra, §1]
1. Dos livros publicados por Nietzsche (1.844-1.900), Assim falava Zaratustra: um livro para todos e ninguém [Also sprach Zarathustra: Ein Buch für Alle und Keinen] é sem dúvida o mais controvertido. Diversas são as leituras que suscita; de ordem variada os trabalhos a que se presta. O leitor sente-se de imediato atraído por uma sucessão de parábolas que evidenciam o talento estilístico do autor; deixa-se envolver numa teia de imagens oníricas que revelam episódios de sua biografia; acaba arrebatado por uma rede de discursos que põem a nu seus experimentos filosóficos. Isso se explica, em parte, pelo estilo que Nietzsche adota nesse livro. Ele é duplamente específico: constitui uma exceção no contexto da escrita filosófica em geral e, outra, no conjunto de seus próprios escritos. Em seus livros, Nietzsche não hesita em recorrer ao estilo dissertativo ou polêmico, assim como ao aforismo ou ao poema. Ao fazê-lo, não tem a intenção de encontrar um meio de expressão que seja adequado nem de lançar-se em experimentações estilísticas. Mas o pluralismo de estilos presente em sua obra não vem privá-la de estrutura nem conferir-lhe caráter indeterminado. Se os estilos que nela se encontram são plurais, é porque traduzem múltiplas perspectivas e, por conseguinte, exprimem múltiplas condições de vida. Não se poderia, pois, separar as ideias e as diferentes maneiras de enunciá-las, distinguir os conteúdos do pensamento e as formas específicas de exprimi-los.
2. Nietzsche compõe o livro em pouco mais de dois anos. Em janeiro de 1883, ele redige a primeira parte [dez dias]: em julho do mesmo ano, a segunda [mais dez dias]. Em janeiro de 1884, escreve a terceira [também em dez dias]; em janeiro do ano seguinte, a quarta [por fim, dez dias - o deserto de Nietzsche: 40 dias]. Schmeitzner, seu editor, leva meses para publicar a primeira parte; aceita ainda editar a segunda parte e a terceira juntas; recusa-se, categórico, a publicar a quarta. Dela, Nietzsche custeia uma tiragem de quarenta exemplares; nem mesmo dez são as pessoas a quem pensa enviá-los em caráter confidencial.
3. A relação que Nietzsche estabelece com Assim falava Zaratustra transforma-se à medida que escreve e publica as diferentes partes da obra. Em abril de 1883, quando faz aparecer a primeira, ele considera o livro concluído. Em abril de 1884, quando prepara com Peter Gast a edição da terceira, entende que esta é a última. Em abril do ano seguinte, quando traz a público a quarta, faz questão de intitulá-la 'Quarta e última parte'. Algum tempo depois, renega as três primeiras partes e pensa elaborar um novo Zaratustra a partir da quarte. Planeja, ainda, compor a quinta e a sexta mas não chega a fazê-lo. Até o outono de 1888 mantém a intenção de concluir o livro.
4. Em 1886, quando Fritzsch, o editor de Wagner, negocia com Schmeitzner a compra dos exemplares de suas obras anteriores, o filósofo concorda que reedite as três primeiras partes de Assim falava Zaratustra num único volume. Exige, porém, que a quarta seja mantida em segredo. É apenas em 1891, depois da crise de Turim, que Peter Gast acaba por torná-la pública, sem levar em conta a posição do autor, que, aliás, nesse momento já se acha alheio do que se passa à sua volta. Em 1893, o editor Naumann encarrega-se da reedição do livro e publica, pela primeira vez, as quatro partes de Zaratustra num único volume. Daí resulta que a obra que contou com a concordância do autor, um livro com três partes, também foi renegada por ele. E a obra consagrada pela posteridade, um livro com quatro partes, não chegou a ser por ele autorizada.
5. As primeiras linhas do prefácio a Assim falava Zaratustra retomam 'ipis litteris' a última seção da quarta parte de A Gaia Ciência (§342). Se nela Nietzsche já põe em cena Zaratustra, na penúltima seção, intitulada 'O mais pesado dos pesos' (§341), expressa pela primeira vez em seus escritos o pensamento do eterno retorno do mesmo. Publicadas imediatamente antes da redação de Assim falava Zaratustra, as duas seções antecipam o que virá a constituir o protagonista central e a concepção básica da obra. As diferentes atitudes do protagonista esclarecem o que ele tem a dizer; seu pensamento mais abissal lança luz sobre quem deve anunciá-lo. Aliás, é o autor mesmo quem fornece essa chave de leitura em Ecce Homo.
6. Assim falava Zaratustra abre-se com o anúncio da transvaloração por que o protagonista acaba de passar. Durante dez anos, ele viveu na solidão de sua caverna e de sua montanha, mas seu coração transformou-se; ele teve conhecimento da morte de Deus. É para partilhar sua sabedoria que Zaratustra desce em direção ao vale. Uma vez na cidade, anuncia ao povo reunido na praça do mercado que vem ensinar o além-do-homem. Se Deus está morto, será preciso substituir a concepção de homem como uma criatura em relação a um Criador pela concepção de além-do-homem. Durante séculos, o ser humano, dilacerado, acreditou ser composto de corpo e alma. Agora, não mais se definindo em relação à divindade, ele deixa de existir. Se o apogeu da humanidade, seu meio-dia, ocorre quando desaparece o dualismo entre mundo verdadeiro e mundo aparente, o homem que se supera identifica-se com o mundo.
7. Zaratustra apresenta-se como o promotor de uma completa reviravolta na nossa cultura. Desvalizando-se este mundo em nome de outro, que seria essencial, imutável e eterno, a cultura socrático-judaico-cristã revela-se niilista desde a base. É a morte de Deus que permitirá a Zaratustra fazer a travessia do niilismo. Se os valores encontraram sua legitimidade no mundo suprassensível, trata-se agora de eliminar o solo a partir do qual foram estabelecidos para engendrar outros valores. É a morte de Deus que possibilitará a Zaratustra preparar a criação de valores que estejam em consonância com esta vida e este mundo. Contra o ressentimento, é preciso lembrar que não há vida eterna; é esta vida tal como a vivemos que é eterna. Contra o ascetismo, é preciso suprimir o além e voltar-se para a Terra. E não há afirmação mais incondicional da existência do que a afirmação de que tudo retorna um número infinito de vezes. No decorrer do livro, de anunciador do além-do-homem Zaratustra se converte em mestre do eterno retorno do mesmo.
8. A análise do título e do subtítulo de Assim falava Zaratustra permite esclarecer tanto o protagonista central quanto a concepção básica da obra. Zaratustra 'fala' em circunstâncias diversas e de diferentes maneiras. Discursa para o povo reunido na praça do mercado, dirige-se aos discípulos e, por vezes, a apenas um deles em particular, entretém-se com várias personagens que cruzam o seu caminho. Contudo, seria desmadido entender esse falar, também presente no título da obra, como mera necessidade de comunicar-se. Zaratustra fala, mas também canta; discursa e monologa; tem interlocutores e volta-se para si mesmo; conversa com seus animais e troca segredos com a vida. E, na maior parte das vezes, o falar esconde mais que o calar; o silêncio revela mais que as palavras.
9. É 'assim' que fala Zaratustra, o "o sem-Deus", "o porta voz da vida, o porta-voz do sofrimento, o porta-voz do círculo", "o mestre do eterno retorno", "o que não em vão disse a si mesmo: 'torna-se quem tu és'". No decorrer do livro, esses são os atributos de que ele lança mão para apresentar-se. Dando-se conta da morte de Deus, Zaratustra, "o sem-Deus", suprime o solo mesmo a partir do qual se punham os valores. Perfaz assim a travessia do niilismo, indispensável ao projeto de transvaloração dos valores, para chegar a um dionisíaco dizer-sim ao mundo. Falando em favor da vida, do sofrimento e do círculo, Zaratustra, "o porta-voz da vida, o porta-voz do sofrimento, o porta-voz do círculo", aponta a íntima relação entre a vida enquanto vontade de potência, o sofrimento enquanto parte integrante da existência e o círculo enquanto infinita repetição de todas as coisas. Assim aceita tudo o que há de mais terrível e doloroso mas também de mais alegre e exuberante, para traduzir a necessidade dionisíaca de aniquilar e de criar. Anunciando que tudo retorna sem cessar, Zaratustra, "o mestre do eterno retorno", faz cair por terra o dualismo entre mundo verdadeiro e aparente, inscreve-se assim de outro modo no mundo e permite que através de si mesmo ele se expresse, para encarnar o caráter dionisíaco de toda existência. Intimando-se a converter-se no que é, Zaratustra, "o que não em vão disse a si mesmo: 'torna-te quem tu és'", abraça de modo incondicional o próprio destino. E assim assume o 'amor fati', para pôr-se dionisiacamente diante da vida. Nos atributos a que ele recorre para apresentar-se, encontram-se os temas centrais da filosofia nietzschiana da maturidade: a superação do niilismo e o projeto de transvaloração dos valores, o conceito de vontade de potência e a doutrina do eterno retorno do mesmo, o caráter dionisíaco da existência e a ideia de 'amor fati'.
10. É 'Zaratustra' quem assim fala. Ao contrário do profeta báctrio, que teria introduzido no mundo os princípios de bem e mal, submetendo a cosmologia à moral, o Zaratustra de Nietzsche quer precisamente implodir a dicotomia dos valores para recuperar a inocência do vir-a-ser. É enquanto uma espécie de 'alter ego' de Nietzsche que ele conta refazer a obra do Zoroastro histórico.
11. Aqui quem fala é Zaratustra, aquele que vem para desvincular a metafísica e a moral. É pela necessidade de doar e partilhar que ele fala. E fala assim: através de discursos e monólogos, do canto e sobretudo do silêncio. Este é um livro para todos e ninguém. Zaratustra começa discursando para o povo reunido na praça do mercado; termina entretendo-se apenas com si mesmo. Criticando os valores vigentes de sua época, Nietzsche é levado a assumir a condição de extemporâneo. Portanto, enquanto o título do livro revela seu projeto filosófico, o subtítulo traz a luz sua relação com os leitores.
12. De todas as suas obras, é a Assim falava Zaratustra que Nietzsche atribui maior importância. Na correspondência, deixa entrever que o livro poderia ser visto como uma sinfonia ou uma espécie de pregação moral, uma poesia ou um quinto Evangelho; em suma; como algo para o qual não se tem nome. Ele tem ciência das múltiplas implicações do estilo que adota; bem mais, está ciente das dificuldades em encontrar a linguagem que julga adequada para o que tem a dizer. Nesse livro, o autor recusa-se a conferir caráter monolítico ao texto; o protagonista nega-se a pôr-se como senhor autoritário do discurso. Nenhum dos dois procura constranger seus interlocutores a seguir um itinerário preciso, obrigatório e programado; nenhum dos dois busca, com longos raciocínios e minuciosas demonstrações, convencê-los da pertinência de suas ideias. O autor não expõe doutrinas, não impõe preceitos; o protagonista limita-se a distribuir ensinamentos, partilhar vivências. Não é por acaso que Nietzsche considera que, como o seu Zaratustra ofereceu ao ser humano o maior presente que até agora lhe foi dado.
Referências:
MARTON, Scarlett. Nietzsche et sa recherche d'interlocuteurs: une analyse du prologue d'Ainsi parlait Zarathoustra. In: DENAT, Céline; WOTLING, Patrick (orgs.). Nietzsche. Un art nouveau du discours. Reims: Épure, 2013, p.81-101.
MARTON, Scarlett. Assim falava Zaratustra. A obra ao mesmo tempo consagrada e renegada. In: ______. Nietzsche e a arte de decifrar enigmas. São Paulo: Loyola, 2014, p.107-134.
MARTON, Scarlett [ed. resp.] Dicionário Nietzsche. São Paulo: Edições Loyola, 2016.
NIETZSCHE, Friedrich W. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. In: Obras Incompletas. Seleção de textos Gérard Lebrun; Tradução e notas Rubens Rodrigues Torres Filho; Apêndice Antônio Cândido de Mello e Souza; Introdução (pesquisa) Olgária Chaim Ferez; consultor da introdução Marilena de Souza Chauí. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
___________. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. 2. ed. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2000.
___________. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, s/d
CAMPOS, Marcelo de Deus;
mesmo que esta obra contribua
para a constituição de meu caminho damtesco,
rumo ao inferno.
(Jacot Stein: como é dramático!, esse canceriano)
[Falou o capricorniano, eita sujeito honesto, até em suas piadas]
Sr. Stein, sou-lhe grato pela parceria, pela oportunidade e pela cinceríssima amizade,
as vezes, mais do que eu possa suportar!
(Falou de novo o canceriano)
Rsrsrs