ASPECTOS JURÍDICOS DA CONDENAÇÃO DE MANUEL BECKMAN

Por Rita de Cássia Veras Freire | 19/02/2015 | Direito

ASPECTOS JURÍDICOS DA CONDENAÇÃO DE MANUEL BECKMAN Rita de Cássia Freire Silva Sumário: Introdução; Desenvolvimento: Contexto histórico; A situação política e econômica no Maranhão; Legislação do período colonial; Análise sobre os aspectos jurídicos da condenação de Manuel Beckman; Conclusão. RESUMO Este trabalho trata de um estudo acerca dos aspectos jurídicos que envolveram a condenação de Manuel Beckman, considerando o ordenamento vigente, as influências políticas e econômicas da época, bem como o cenário político no Maranhão, marcado por motins, tumultos, denúncias, intrigas e revoltas. O estudo procurou, primeiramente, fazer um breve relato sobre a história do período colonial no Brasil, no período de 1612 a 1684, ano em que ocorreu a revolta de Manuel Backman. Para o desenvolvimento do trabalho foi indicada a leitura do livro A Revolta de Bequimão, cujo autor é o Desembargador Milson Coutinho, membro da Academia Maranhense de Letras do Maranhão, que relata em detalhes os momentos importantes dessa história de luta de um povo pobre, sem instrução e oprimido pelo poder político e econômico da época. Faz-se, ainda, um relato sobre a legislação que vigorou durante o período colonial, o Livro V do Código Filipino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal e com base nessas informações o trabalho objetiva analisar os principais aspectos jurídicos que envolveram o processo de julgamento e condenação de Manuel Backman. PALAVRAS – CHAVE A Revolta de Bequimão. Aspectos Jurídicos. Condenação I INTRODUÇÃO “Não há direito fora da sociedade, nem pronto para uso: O Direito é uma construção social”. “Sem documento não há história” ( Fustel de Coulangens). A partir dessas afirmativas podemos concluir que o Direito é construído a partir dos fatos reais ocorridos ao longo da história do homem em sociedade e que é necessário que estes sejam registrados, embora não haja “ documento puro”, visto que toda narrativa dos fatos históricos pode sofrer influências ideológicas, culturais, entre outras. A história sobre a Revolta de Manuel Backman é um exemplo significativo dessa relação História e Direito, pois trata de um fato ocorrido no Maranhão durante o período colonial brasileiro, que bem reflete um dos momentos mais importantes da trajetória de um povo que, em meio aos desmandos políticos, recheados de interesses particulares, corrupção e desrespeito às relações de convivência social, mostra a consciência de um líder sobre o significado de justiça, mas também, mostra a força do poder político e econômico da época, respaldado pelas leis vigentes, que refletiam o próprio poder constituído. Nesse contexto, o presente estudo visa resgatar os principais fatos históricos relacionados à Revolta de Backman e entender, a partir da pesquisa de fatos relatados por alguns autores e estudiosos, os aspectos jurídicos que envolveram a condenação de Manuel Backman. II DESENVOLVIMENTO CONTEXTO HISTÓRICO Antes de tratar especificamente dos fatos relacionados à Revolta de Backman, faz-se necessário contextualizar o fato na história do período colonial brasileiro. Durante o período colonial, o processo de conquista do território brasileiro, como não poderia deixar de ser, foi marcado por uma relação de força entre o conquistador e o conquistado. Em 1530, D. João III, Rei de Portugal, enviou uma expedição objetivando a efetivação do processo de colonização nas terras brasileiras. Apesar de ter havido resistência indígena à colonização portuguesa, os índios muitas vezes se viram subordinados à vontade dos conquistadores. Nas missões jesuítas, por exemplo, os índios eram catequizados de acordo com as crenças religiosas totalmente divergentes das suas. Além disso, os jesuítas não eram contrários à escravidão indígena, divergiam dos comerciantes portugueses apenas sob o aspecto de que estes últimos tinham o interesse em explorar a mão de obra escrava indígena, principalmente na produção do açúcar; enquanto os jesuítas objetivavam cristianizar os índios. A conquista portuguesa do território brasileiro também se manifestou no âmbito jurídico. As normas, regras de convivência e costumes indígenas nunca foram considerados pelos colonizadores como um Direito a ser seguido. O máximo que a Coroa portuguesa admitiu foi reconhecer o Direito dos índios como uma experiência costumeira de caráter secundário. O Direito vigente no Brasil durante a época colonial era fundamentado basicamente nas Ordenações Reais portuguesas, quais sejam: Ordenações Afonsinas, Manuelinas e as Filipinas. O modelo jurídico colonial foi profundamente marcado pelos princípios e normas lusitanas, refletindo nitidamente a estrutura de dominação portuguesa. Em 1532, ocorreu a criação das capitanias hereditárias pelo Rei de Portugal com o objetivo de povoar e desenvolver a produção agrária no Brasil. Assim, a Coroa portuguesa conferiu amplos poderes aos donatários no domínio de suas terras, por meio das cartas de forais. Com isso, a aplicação do Direito nas capitanias era realizada de acordo com os interesses de cada donatário. Num segundo momento da exploração colonial, por interesses preponderantemente econômicos da Coroa portuguesa, foram impostas restrições à utilização da mão de obra indígena e se desenvolveu o tráfico negreiro de escravos africanos no Brasil. O sistema colonial mercantilista no Brasil abrangeu o período compreendido entre os séculos XVI e XVIII; possuía como características o fato de o país, como colônia portuguesa, ser local de consumo para os produtos metropolitanos e de produção de riquezas para a metrópole. Os portugueses tinham interesse, por exemplo, em importar do Brasil produtos naturais típicos do clima tropical visto que estes não podiam ser produzidos na Europa. Assim, a colônia servia de instrumento de poder econômico para a metrópole que objetivava, essencialmente, o fortalecimento do Estado português como potência européia. Desde a época da colonização, a estrutura institucional brasileira caracterizou-se por ser desvinculada dos interesses da sociedade como um todo, tendo um forte caráter patrimonialista, ou seja, o poder público foi utilizado em favor dos interesses das oligarquias agrárias, da Coroa portuguesa e da burguesia metropolitana. A aliança formada pelas elites brasileiras com a Coroa possibilitou a formação de um modelo estatal garantidor do poder político por estes grupos sociais. Esta estrutura política foi sempre utilizada como meio de alcançar interesses particulares e não como instrumento para a realização do bem estar coletivo. Nas palavras de Sérgio Buarque de Holanda (1987, p. 146): (...) é possível acompanhar ao longo da história o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal. Dentre estes círculos foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu com mais força e desenvoltura em nossa sociedade. E um dos efeitos decisivos da supremacia incontestável, absorvente do núcleo familiar está em que as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós. Durante o período colonial brasileiro isso podia ser nitidamente notado, pois eram os filhos de fazendeiros, educados em Universidades da Europa em profissões liberais, quem monopolizava a política, elegendo-se ou promovendo a eleição de seus candidatos, dominando as posições de destaque no governo e legitimando a estabilidade das instituições ditas democráticas através de uma estrutura de dominação aparentemente incontestável. A colonização portuguesa, através dos seus mecanismos políticos e jurídicos, trouxe para o Brasil o modelo institucional e estatal europeu que refletiu diretamente sobre as formas de poder e dominação. A SITUAÇÃO POLÍTICA E ECONÔMICA NO MARANHÃO Em 1612, uma expedição francesa comandada por Daniel de La Touche, Senhor de La Ravardière, funda no Maranhão a França Equinocial. No dia 8 de setembro, foi concluído o Forte e Vila de São Luís, assim nomeado em homenagem a Luís XIII. Em 1615 Portugal reconquista o Maranhão. A revolta de Bequimão se passa em 1684. Nesse contexto vale ressaltar alguns aspectos históricos que esclarecem os motivos que levaram a esse acontecimento marcante da história do Maranhão, que resultou na condenação e morte de Manuel Backman. Em 1650 a indústria açucareira do Maranhão não conseguia custear as despesas com a importação de escravos africanos, e por isso os senhores de engenho locais procuraram resolver seus problemas de mão-de-obra capturando índios evangelizados nos aldeamentos jesuítas, onde eles eram aproveitados pelos religiosos nas pequenas lavouras. Diante dessa situação a Companhia de Jesus recorreu à Coroa portuguesa, que interveio e proibiu a escravização do índio, além de conceder aos religiosos a jurisdição espiritual e temporal sobre os nativos, o que forçava os colonos a adquirir escravos negros. Para resolver o problema que a carência de escravos causava aos proprietários rurais maranhenses, os portugueses criaram em 1682 a Companhia Geral de Comércio do Estado do Maranhão, encarregada de todas as exportações para Lisboa e de monopolizar o comércio dos gêneros alimentícios na cidade. Sem conseguir cumprir o prometido, e ainda por cima pagando preço baixo pelos produtos maranhenses, enquanto oferecia mercadorias de má qualidade, a preços elevados, a Companhia agravou a crise econômica e fez crescer o descontentamento na região. Essa situação, aliada à insatisfação do povo em relação ao governo e à atuação dos jesuítas na região, foi o estopim da revolta que teve Manuel Beckman como líder. Nascido em Portugal, de origem judáica, filho de portuguesa com um alemão, foi vereador em São Luís, mas, na época, indispôs-se com o governador. Após a determinação do segundo Estanco, em 1682, Manuel Backman resolveu opor-se à implantação do novo monopólio, que aos mercadores do Maranhão eram danosos, principalmente, pelos privilégios dados aos diretores da Companhia, além de todo tipo de corrupção. Os religiosos, principais detentores da atividade comercial do Estado, receberam espantados o novo Estanco, mas logo conseguiram continuar com alguns privilégios nas alfândegas e nas casas de despacho, tudo em relação ao sustento, vestuário e produtos para os cultos divinos. Iniciado o movimento rebelde, os revoltosos prenderam o comandante da guarnição portuguesa e depuseram o governador Francisco de Sá e Menezes. Logo em seguida foi nomeada uma junta governativa que tomou de imediato algumas medidas de ordem administrativa, entre elas a substituição de funcionários suspeitos, a organização de uma guarda cívica e criação de postos de guarda em diversos locais. Quanto aos padres, foram embarcados para a Europa. Nesse meio tempo, o tenente-coronel Gomes Freire de Andrade, nomeado governador do Grão-Pará e Maranhão, saiu de Portugal com 150 homens, trazendo consigo a incumbência de restaurar a ordem em São Luis e julgar os rebeldes. E foi o que ele fez tão logo chegou à cidade. Todos eles fugiram, com exceção de Beckman, que atraiçoado por Lázaro de Melo, seu afilhado, acabou sendo preso no engenho de Mearim, onde se escondia. LEGISLAÇÃO DO PERÍODO COLONIAL Antes de relatar os fatos jurídicos que envolveram a condenação de Manuel Backman, é importante fazer uma retrospectiva no tempo, para poder haver uma compreensão nos mecanismos que se fundamentavam a justiça régia, a legislação, o Direito e as instituições jurídicas portuguesas. Entre 1583 e 1585, nos tempos de União Ibérica, iniciou-se uma terceira compilação das leis civis, fiscais, administrativas, militares e penais portuguesas, ampliando as anteriores Ordenações Manuelinas, incorporando algumas novidades jurídicas e administrativas, a criação de tribunais de justiça, como a Relação do Porto e a Casa de Suplicação, e a outorga de um novo regimento para o Desembargo do Paço. Sob o título Ordenações e leis do reino de Portugal, recopiladas por mandado do católico e poderoso rei Dom Filipe I, foram promulgadas em 1603, já sob o reinado de Felipe II. Constituíram, a partir de então, o corpo legal de referência para Portugal e suas colônias, no caso do Brasil, que vigoraram até 1830. Compõem-se de cinco livros. O primeiro versa sobre as atribuições, direitos e deveres dos magistrados e oficiais da justiça. O segundo define as relações entre o Estado e a Igreja, os privilégios dos eclesiásticos e da nobreza, assim como os direitos e isenções fiscais de ambos. O terceiro trata de ações cíveis e criminais. O quarto legisla sobre o direito privado e individual, das coisas e pessoas, estabelecendo regras para contratos, testamentos, tutelas, formas de distribuição e aforamento de terras. O último e quinto livro é dedicado ao direito penal, estipulando os crimes e suas respectivas penas. Verifica-se que a pena capital era atribuída a vários tipos de crimes, como: feitiçaria; abrir carta assinada pelo Rei, que contenha segredo; pessoa que cometesse o pecado da sodomia; homem que dormir com sua filha ou com qualquer outra sua descendente, ou com sua mãe ou outra sua ascendente; qualquer pessoa que matar outra ou mandar matar; todo homem, de qualquer qualidade e condição que seja, que entrar em mosteiro de freiras de religião; escravo que matar seu senhor ou filho de seu senhor; aqueles que se levantam ou se rebelam perante as Justiças; os que cometem crime de lesa-majestade; os que falsificam moedas ou o selo d’El-Rei; os que fabricam escrituras falsas; os que proferem falso testemunho; os que corrompem mercadorias e alteram pesos e medidas; os ladrões, os bígamos, os adúlteros, os alcoviteiros, e muitos outros. Todo esse rigor, como destaca Maria Fernanda Baptista Bicalho, em seu artigo “Crime e Castigo em Portugal e seu Império”, segundo Silvia Lara ( 1999, p. 22): “não se trata simplesmente de matar o criminoso, mas de relacionar a gravidade de sua falta ao rigor da punição, fazer com que o sofrimento do condenado inspire temor e sirva de exemplo, expiando suas culpas e restaurando o poder real violado pelo crime em toda a sua força e plenitude.” O que significava restaurar a função do soberano de representante da justiça, de árbitro dos conflitos sociais. As Ordenações são preciosos testemunhos do poder de intromissão e de regulamentação por parte da Coroa, nas menores esferas e nas mais incomuns condutas e comportamentos dos súditos. Sem dúvida, a sistematização das leis representada pelas Ordenações, longe de significar uma estratégia de imposição de limites ao poder, correspondia antes a um processo de afirmação do poder real. Embora tal afirmação não tenha se dado de forma eficaz e imediata sobre todo o território do Reino e seus domínios ultramarinos, havia, de fato, por parte da Coroa, uma vontade política neste sentido. O próprio monarca carecia de instrumentos imediatos para uma brusca imposição de seu poder, pelo menos ao longo dos séculos XVI e XVII. Faltavam-lhe os meios institucionais, os meios humanos, o domínio efetivo do espaço e, inclusive, o monopólio dos próprios aparelhos de justiça. Da mesma forma, para impor o seu poder a outros pólos políticos concorrentes, como as comunidades, o rei procurou criar novos dispositivos jurídicos e institucionais, ou seja, construir espaços de produção de poder nos quais a sua posição fosse mais favorável no sentido de estruturar seu próprio campo de ação. As Ordenações certamente constituíram um destes dispositivos. O Livro V das Ordenações representava a inscrição da vontade do soberano no corpo do condenado e era, também, uma pedagogia de domínio, lição também aprendida por todos os que presenciavam o espetáculo penal. ANÁLISE SOBRE OS ASPECTOS JURÍDICOS DA CONDENAÇÃO DE MANUEL BECKMAN A organização judiciária do Brasil Colônia se dividiu em duas fases: a dos donatários ( 1534- 1549) e a dos governos-gerais ( 1549-1767). Os Donatários se revestiam de poderes discricionários, recebendo, em suas cartas de forais, entre tantos privilégios, os de alçada, no crime, sem apelação ou agravo e até o direito de decretarem a pena de morte aos chamados peões, escravos e silvícolas, bem como a de degredo e multa para as classes de maior condição social. Na segunda fase colonial a distribuição da justiça era feita pelos corregedores de comarca, ouvidores-gerais, chancecréis de comarca, provedores, juízes de órfãos, vereadores, almotacéis e alcaides. Depois de criados os tribunais da Relação da Bahia e do Rio de Janeiro, os agravos e apelos passavam a ser dirigidos àquelas Cortes de Justiça, excetuando-se o Maranhão, cujos recursos sempre foram encaminhados para Lisboa. Em junho de 1621 deu-se a divisão do governo-geral, com a criação do Estado do Maranhão, desligado do Estado do Brasil. Os dois Estados subordinavam-se as linhas mestras do Código Filipino, então em vigor. Aos donatários era dada a Carta de Foral, onde eram atribuídas competências diversas, tanto na área administrativa, quanto na cívil ou criminal. “!Era uma espécie de Constituição Outorgada”. (Coutinho, p.30) Em 1652, por meio de Carta Régia, houve a extinção do Estado do Maranhão, que voltou à condição de Capitania subalterna a velha progressão portuguesa no norte do país. Para o governo do Maranhão foi nomeado Baltasar de Sousa Pereira, enquanto Inácio do Rêgo era mandado para a Companhia do Pará. Nessa época o Padre Antonio Vieira desenvolvia, no Maranhão, intensa campanha em defesa dos índios, que estavam sendo espoliados por colonos, governadores e Padres. Em 23 de outubro de 1660 foi instituído o Regimento de Ouvidores, instrumento régio que fez constar um artigo especial, que autorizava a instalação, no Estado, do chamado Tribunal do Juízo da Coroa, destinado a julgar os clérigos, dirimir as discórdias entre poder temporal e espiritual, delimitar a área de competência da justiça do Rei das justiças dos Eclesiásticos, provavelmente, para amenizar os tumultos generalizados que ocorriam no Maranhão. A Junta da Coroa era composta do ouvidor-geral, que presidia e relatava, que, obrigatoriamente, era um ministro eclesiástico, representando o poder espiritual e um ministro civil, via de regra ou o Juiz de Fora, ou o mais notável advogado com atividade no Foro colonial.” ( Coutinho, pag. 62) . A revolta de Bequimão em 24 de fevereiro de 1684 foi contra o monopólio, mais conhecido como Estanco. Manuel Backman depôs o Capitão-mor Baltazar Fernandes e organizou uma Junta que assumiu o poder. De Portugal foi enviado o General Gomes Freire de Andrade, investido em plenos poderes para debelar a sedição, processar e julgar os conjurados. Até hoje não foi possível a qualquer pesquisador levantar detalhes sobre o processo contra Bequimão, porque os livros da Câmara foram levados de São Luis pelo Dr. Gonçalves Dias. A tramitação dos autos no regime colonial, com base no que prescrevia o Código Filipino e as Leis da época, era uma só: instaura-se a instância com uma espécie de inquérito, onde as pessoas envolvidas eram inquiridas, no chamado sumário de culpa. Após essa fase, era o réu pronunciado e só então era dada a oportunidade de defesa, que constava, inicialmente, do interrogatório, quando, então, teria patrono para a sua causa. Os juízes poderiam reinquirir testemunhas, confrontá-las entre si e com o réu, reapreciar provas contraditadas, manifestando-se, afinal o Ouvidor–Geral, nos casos de crimes comuns, ou o Auditor das Gentes de Guerra, nos delitos militares, em longo relatório, que precedia à sentença, que variava de açoites, galés ou de morte, conforme a pessoa ou o crime julgado. Foi o que fez o Dr. Manuel Vaz Nunes ouviu os acusadores de Bequimão, ouviu o próprio réu e concluiu por condená-lo à morte na forca. Ao acusado não foi dado o recurso do agravo, ou do apelo, medidas comuns quando o processo desaguasse em pena capital. Prosseguiram os termos do processo com a pronuncia assinada pelo sindicante, e a tomada de novos e prolongados depoimentos, nos autos “ mais que sumários e menos que ordinários. ( Coutinho , pág. 269). Nesse ato processual consumiram-se nada menos que cinco meses. A sentença foi sem embargo. Nesses casos normalmente eram lidas perante o condenado com prazo suficiente para interposição de apelos ou agravos. Essa formalidade foi dispensada por instruções dadas ao capitão-general, o que quebrou de forma vexatória a tradição processual portuguesa. Apenas quatro ou cinco dias antes da execução a sentença foi lida perante os condenados. A execução da sentença, porém, quando a pena fosse a capital, necessitaria da chancela de Gomes Freire de Andrade e este, contrafeito, ordenou o enforcamento, num despacho curto, depois de insistentes pedidos formulados pelo ouvidor. À morte foram condenados Manoel Bequimão, Jorge de Sampaio e Francisco Dias Deiró, sendo os demais punidos com a pena de degredo. Julgado sumariamente e condenado à morte, Bequimão exclamou, no momento da execução, em 1685, que morria contente pelo povo do Maranhão. A sua luta não foi em vão, pois pouco tempo depois era abolido o Estanco. Nesse contexto, conclui-se que o crime de Manuel Backman estava associado ao crime de Lesa Majestade, pois houve a deposição de uma autoridade indicada pelo Rei, além da instalação de um governo, por meio de uma junta governista, que conforme já mencionado tomou algumas medidas de ordem administrativa, entre elas a substituição de funcionários suspeitos, a organização de uma guarda cívica e criação de postos de guarda em diversos locais, além da expulsão dos padres, que foram embarcados para a Europa. A esse tempo, vigoravam as Ordenações Filipinas, que em seu Titulo VI tratava do crime de Lesa Majestade: “Do crime de Lesa Magestade Lesa Magestade quer dizer traição cometida contra a pessoa do Rey, ou seu Real Stado, que he tão grave e abominável crime, e que os antigos Sabedores tanto estranharão, que o comparavão à lepra; porque assi como esta enfermidade enche todo o corpo, sem nunca mais se poder curar, e empece ainda aos descendentes de quem a tem, e aos que com elle conversão, polo que he aprtado da comunicação da gente: assi o erro da traição condena o que a commette, e empece e infama os que de sua linha descendem, postoque não tenham culpa.”(Título VI, código Filipino, pág. 1153). 1- Os casos, em que se commette a traição, são estes... ....... 5.O quinto, se algum fizesse conselho e confederação contra o Rey e seu Stad, ou tratasse de se levantar contra elle, ou para isso desse ajuda, conselho e favor. ......... 9. E em todos estes casos, e cada hum delles he propriamente commettido crime de Lesa Magestade, e havido por traidor e que os commetter. E sendo commettido convecido por cada hum delles, será condenado que morra morte natural cruelmente; e todos os seus bens, que tiver ao tempo da condenação, serão confiscados para a Coroa do Reino, postoque tenha filhos, ou outros alguns descendentes, ou ascendentees, havidos, antes, ou depois de ter commettido, tal malefício.” O Livro V das Ordenações Filipinas, que vigorou durante o período colonial e ainda por oito anos após a independência nacional, até o advento do Código Criminal de 16/12/1830, era fértil na cominação de morte contra diversas figuras de crime. E o legislador português sublimou o crime de lesa-majestade, que em todas as suas formas consumadas ou tentadas, era punido com morte cruel. O legislador usou, no caso, o advérbio cruelmente, assim comentado por Cândido Mendes de Almeida: “Cruelmente, i. é, com todo o cortejo das antigas execuções, o que dependia da ferocidade do executor e capricho dos juízes que neste ou em outros casos tinham arbítrio” (Código Philipino, 14ª. edição, Rio, 1874, p. 1154). CONCLUSÃO A revolta de Beckman retrata a luta de um líder pela liberdade e contra os arbítrios dos governos nomeados no período colonial, representados, na sua maioria, por homens corruptos e interessados somente nos próprios interesses, reforçado pelo modelo de colonização adotado por Portugal, colocando o povo nativo e aqueles que se aventuraram a viver no Brasil,em uma situação de miséria e exploração. Diante desse cenário, como combater as impunidades e atrocidades ocorridas em uma terra, cujas leis advinham de um poder absoluto e distante, cercado de interesses pela exploração da riqueza fácil, quase ao alcance das mãos e que cedia a todas as conveniências imediatas de exploração? A infância de Bequimão cercada de injustiças tornou-o consciente e vigilante contra as injustiças sociais, mais especificamente contra a corrupção e a disputa entre o clero e o governo, os padres da Companhia de Jesus e os capitães-generais nomeados pela coroa portuguesa. A revolta ocorrida no Maranhão representava uma afronta, não somente às Ordenações Filipinas, legislação que vigorava na época, pois esta, de acordo com a conveniência, era usada de forma mais rígida ou mais branda, mas aos próprios interesses pessoais dos governantes locais e de Portugal, que viam na revolta de Bequimão uma ameaça ao Poder e um incentivo a outras revoltas. Nesse contexto, o processo contra Manuel Beckamn foi “ mais que sumário’, como já relatado e os aspectos jurídicos envolvidos e mais relevantes foram, sem dúvida, a urgência e a necessidade do Poder em cortar o mal pela raiz, ou seja, em menos de cinco meses o processo, que após desapareceu, foi concluído, resultando na condenação e morte do réu e outros, como forma de calar para sempre a voz que ousou se levantar contra o poder do Rei e dos governantes da época, assessorados pela igreja católica. A luta de Manuel Beckman não foi em vão, pois “pouco tempo depois era abolido o famigerado Estanco.”(Coutinho, p.72). A filosofia política de Bequimão, segundo os autores consultados, era a pregação da igualdade e condições para todos, que nas palavras de John Locke significa democracia e liberdade: A liberdade do indivíduo na sociedade não deve estar subordinada a qualquer poder legislativo que não aquele estabelecido pelo consentimento na comunidade, nem sob o domínio de qualquer vontade ou restrição de qualquer lei, a não ser aquele promulgado por tal legislativo conforme o crédito que lhe foi confiado. (John Locke, p.27). REFERÊNCIAS Azevedo, Luis Carlos de. Introdução à História do Direito. 3 ed. revisada e ampliada.São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, 286 p. Berredo, Bernardo Pereira de. Anais Históricos do Estado do Maranhão. Rio de Janeiro, 1988. Bicalho, Maria Fernanda Baptista. Crime e Castigo em Portugal e seu Império Acesso em 26 out 2010. _____. Código Filipino ou Ordenações do Reino de Portugal. Livro V: Edições do Senado Federal. Coutinho, Milson. 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