Às vezes o cotidiano também nos surpreende...

Por Elissama Assis | 22/04/2009 | Crônicas

Às vezes o cotidiano também nos surpreende...

21 de abril de 2009. Terça-feira de feriado, um dia atípico com sabor de domingo. Céu azul, calor, nada mais inspirador. Sentada em um banco à espera do marido e filho, foco meu olhar perdido no infinito.

Registro o vazio de uma rua que é muito movimentada em dias úteis, aqueles normais como de costume. Mas, definitivamente, aquela não era uma manhã comum. Como sempre estou inquieta, logo me cansei de esperar, levantei e caminhei em direção ao lado oposto.

Entrei em um local que adoro, um espaço que sempre ocupo em dias de domingo e aos feriados. Afinal, as portas de lá estão sempre abertas. Em meio a tantas revistas e livros, me perdi, me achei, depois foquei e tracei um objetivo: desta vez vou fazer pesquisas para o meu mais novo objetivo: lançar Ideias Inovadoras para a micro empresa, uma editora, que acabei de montar.

Educadamente e disposta em pleno dia que seria de folga, a vendedora me recebeu de braços abertos. Fiz mil perguntas, investiguei, procurei novos tipos de respostas, novos olhares para a realidade. Ela, sempre atenta, sanou todas as minhas dúvidas e mais: me apontou outros caminhos. “Olha esta nova revista aqui, este livro ali, este pôster lá”, me instigou.

Eis que ouço um barulho, e como a minha curiosidade de jornalista não segue o calendário nacional, ou seja, nunca tira folga, aliás, costuma é fazer hora extra demais, chego mais perto, me aproximo. O som toma forma, ganha cadência, ritmo e entonação. Logo percebi que tratava-se de uma clássica história narrada em forma de poesia, magia e encanto. Uma daquelas que todos conhecem: a biografia de uma princesa, ou melhor, um conto de fadas com o típico happy end: “E foram felizes para sempre....”. 
         
 Uma cena absolutamente normal, rotineira para a seção infantil de uma livraria. Mas, às vezes, o cotidiano também nos surpreende...  Ao me aproximar ainda mais, constatei que aquela era uma publicação diferente: um livro sonoro, que, além de conter o registro físico e histórico da estória, oferece algo a mais: a cada página passada, a estória, ao mesmo tempo, pode ser lida, tocada e ouvida, ou seja, degustada por todos os sentidos. 

Ainda assim ainda era uma cena relativamente comum para esse tipo de ambiente. Afinal, em uma livraria esperamos encontrar livros! Enfim, aos meus olhos, apenas o formato do livro, a estória narrada, me parecia diferente. Até que descobri muito mais histórias ali... Observei, mudei de posição para ver melhor, e concluí que, de fato, havia sim alguma coisa fora de contexto naquela livraria naquele dia de feriado. 

Quem estava de costas para mim, de camisa azul, passando e ouvindo, muito atentamente, o conto de fada não era um menino comum, não era um típico frequentador daquele ambiente. Sentado tranquilamente, sem incomodar ou pedir nada, sem dirigir uma palavra sequer a alguém, lá estava ele. Maltrapilho, tímido, introvertido.  E por quê não entretido, encantado, fascinado, deslumbrado?!

A resposta para essa pergunta veio em forma de movimento, apenas com o balançar positivo da cabeça para cima para baixo, confirmando que havia gostado da estória após a minha indagação “Você gostou desse livro”? Tanta retração talvez tenha uma explicação: “ O menino está fora da paisagem”, como disse Arnaldo Jabor em um dos seus belos textos.

Novamente me dirigi à vendedora: “Quem é esse menino, você o conhece?”. E ela, com a maior naturalidade, simplesmente respondeu assim: “Ele trabalha ali na esquina, com a mãe e vem sempre aqui por causa dos livros”. Eu nunca havia registrado antes uma cena como essa. Ela até me bloqueou. Não tive mais reação. Achei simplesmente FANTÁSTICA essa minha mais nova descoberta. Em seguida, fui ao caixa, paguei minha conta da livraria e fui embora.

Mas passei o resto do dia, da tarde, da noite e do início da madrugada pensando nessa cena. Para muita gente que pensa que trabalhar na rua ou morar na rua significa liberdade, apesar dos vários aspectos dessa dura e triste realidade, eis que o menino da camisa azul e maltrapilho encontra sua verdadeira liberdade: o ato de coragem de entrar em uma livraria e mergulhar em muitas estórias.

Amanhã mesmo vou voltar a esse local, fazer contato com esse menino e, quem sabe, apurar, redigir , escrever e lançar um livro sobre sua vida que, agora, com certeza, está muito mais rica e cheia de histórias para contar...
Elissama Assis (jornalista, 29 anos, mineira)
elissama@gmail.com

Vejam abaixo o texto de Cecília Meireles que achei sobre outro menino...
O Menino Azul

O menino quer um burrinho
para passear.
Um burrinho manso,
que não corra nem pule,
mas que saiba conversar.

O menino quer um burrinho
que saiba dizer
o nome dos rios,
das montanhas, das flores,
— de tudo o que aparecer.

O menino quer um burrinho
que saiba inventar histórias bonitas
com pessoas e bichos
e com barquinhos no mar.

E os dois sairão pelo mundo
que é como um jardim
apenas mais largo
e talvez mais comprido
e que não tenha fim.

(Quem souber de um burrinho desses,
pode escrever
para a Ruas das Casas,
Número das Portas,
ao Menino Azul que não sabe ler.)
Cecília Meireles