AS RELAÇÕES SOCIAIS DO CAMPONÊS MEDIEVAL
Por Fabio Paiva Reis | 28/10/2009 | HistóriaEsse artigo foi desenvolvido para avaliação na disciplina Economia e Vida Camponesa da Idade Média, dirigida pelo Professor Ricardo da Costa no curso de Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES. O texto busca discutir, a partir de alguns textos do historiador francês Jacques LeGoff, como que se davam as relações sociais presentes nas vidas dos camponeses medievais na Europa, mais especificamente a França, alvo dos estudos do autor. Assim, foi dividido entre as relações com os próprios camponeses e, em seguida, suas relações com outros grupos sociais, incluindo os moradores das cidades.
1.INTRODUÇÃO
Ao
me deparar com o desafio de desenvolver um artigo de tema livre dentro da
proposta do curso, busquei logo cedo me cercar dos melhores autores sobre o
assunto. Foi assim que cheguei aos nomes que utilizarei para me apoiar no
desenvolvimento desse texto.
A História Social começou a ganhar destaque no século XX, como importante
estudo para a compreensão do passado. Por muito tempo escolas históricas
limitaram-se a publicar a história vista de cima, com o olhar das elites.
Quando surgiram os historiadores que se focaram na história vista de baixo, na
história social, muitos pontos equivocados e desconhecidos da história vieram à
tona. E na história social da Idade Média não foi diferente. Entender as
sociedades camponesas mudou os conceitos de campesinato.
A partir de duas publicações do renomado Jacques Le Goff ("A Civilização do
Ocidente Medieval", 1964; "O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval", 1983),
tratarei brevemente da vida em sociedade do camponês medieval. Dissertarei
sobre a família e a comunidade camponesa, passando pelo cotidiano e
mentalidades.
O objetivo de me ater a apenas um autor é para ser sucinto dentro de um assunto
tão vasto e tão explorado por historiadores medievalistas. Não acho,
entretanto, que por esse fato não haja valor no trabalho que segue. Pelo
contrário, permito maior aprofundamento e compreensão de idéias que talvez não
poderia alcançar, caso tivesse que me debruçar sobre um segundo pensamento.
Abro então o espaço para a leitura do artigo, para o mundo medieval e as
relações sociais camponesas.
2.A
FAMÍLIA E A COMUNIDADE CAMPONESA
"Quem
está isolado só pode fazer o mal. O grande pecado é a singularização[1]".
É assim que Jacques Le Goff define a singularidade na Idade Média dos séculos
XII e XIII. Não sendo vista com bons olhos, a singularidade dava espaço para a
vida em comunidade. Eram as relações sociais. "Orgulho (...) era individualismo
exagerado. Só havia salvação no grupo e pelo grupo; o amor próprio era pegado e
perdição[2]".
Essa pluralidade, entretanto, não era democrática. Provinda de relações entre
os camponeses ou para seu senhor, ela resultava em obediências (dos camponeses
para seus senhores) e submissões (de vassalos para suseranos) realmente
institucionais.
Inclusive na literatura, desenvolvia-se pouco individualismo, assim como na
arte. As personagens eram representadas a partir de sua categoria social, da
maneira vista como típica pelos contemporâneos.
Ao analisar imagens de camponeses, muito presente nos calendários medievais,
nos deparamos com trabalhadores fortes, muitas vezes mal vestidos (alguns com
roupas rasgadas, enquanto outros descalços) e quase sempre em conjunto.
A concepção de liberdade desses camponeses, e de toda a sociedade medieval, é
diferente da concepção moderna dada para a palavra. Liberdade é vista então
como privilégio. É "o justo lugar perante Deus e perante os homens[3]".
Ou seja, como vimos anteriormente, o lugar perante os homens é junto deles,
saindo do individualismo.
Liberdade é estar inserido, fazer parte,
na sociedade. E para ser livre, é necessário ser dependente, estar protegido
por alguém poderoso. Essa relação de proteção surgia quando um camponês não
encontrava maneiras de sustentar e proteger sozinho a si mesmo ou a sua
família. Buscava então a ajuda de um senhor.
Dentro das famílias (á qual o indivíduo pertencia em primeiro lugar), o chefe
limitava a individualidade a partir de ações coletivas. Essa organização
familiar leva a formação das linhagens, compostas de parentes de sangue e parentes
por afinidade.
A linhagem normalmente "agrupa todos os que vivem numa mesma casa e se entregam
à valorização de uma mesma terra"[4],
formando a "célula econômica e social"[5]
campesina.
A mulher não se encontrava em uma posição privilegiada dentro dessa célula
social. Muito discriminada em sociedades patriarcais, a mulher também não tinha
tratamento igual em sociedades cristãs. Muito pelo contrário, elas foram tidas
pela Igreja Católica por muitos séculos (mas principalmente até meados da Baixa
Idade Média) como responsável pelo pecado original, de Eva.
Havia certo horror ao corpo, que era então considerado uma prisão. Ali se
encontrava encarcerada a alma. "O horror pelo corpo atinge o auge nos seus
aspectos sexuais (...). O desprezo pelo corpo e pelo sexo toca assim o seu
ponto máximo no corpo feminino"[6].
Promovida apenas a partir do século XII, com o culto da Virgem e o de Madalena,
assim como o de seitas heréticas, que pregavam a igualdade entre homens e
mulheres, ela era considerada igual ou quase equivalente ao homem na célula
social campesina. Elas tinham "de fiar, de espadelar o linho, de descascar o
cânhamo, de lavar a roupa e de arrancar beterraba"[7].
Quanto às crianças, um tema até mesmo polêmico dentro do período medieval, Le
Goff se limita a dizer que não existem: ele as considera como pequenos adultos.
Em uma sociedade onde a média de vida chega a 25 anos, essas crianças logo ao
sair dos braços da mãe já são levadas a trabalhar no campo. Quando na nobreza,
recebem desde cedo uma educação para muito em breve ocuparem seus lugares na
Corte.
As comunidades rurais são formadas por famílias e contadas por fogos (quantidades
de fogueiras, que mantém as casas). Elas tem sua base econômica nos terrenos de
pastagem e de exploração florestal, áreas que pertencem ao domínio de seu
senhor, e "não poderiam subsistir sem o complemento decisivo que ali encontram
para a engorda do porco ou da cabra e para se abastecer de madeira"[8].
E mesmo em caso de famílias e comunidades em dificuldades, havia grupos de
aldeãos (os chefes ou os ricos) que faziam empréstimos individuais ou em nome
de comunidades. As comunas coletivas eram baseadas em uma federação de aldeias.
E com elas, surgem os "homens bons". Esses ocupavam os cargos importantes. Essa
comunidade aldeã surgida junto com outras instituições originais nos séculos
X-XII.
3.AS RELAÇÕES COM OUTROS GRUPOS SOCIAIS
Essas
comunas existiram também nas cidades, de maneira semelhante às campesinas. As
cidades, segundo Le Goff, eram para os camponeses uma tentação "como o metal,
como o dinheiro, como a mulher"[9].
Elas eram objetos tanto de atração como de repulsa, assim como as coisas vistas
com ressalva pela Igreja.
No entanto, elas não eram muito grandes. Le Goff afirma que muitas delas não
ultrapassavam a marca de cem mil habitantes. Além disso, interessantemente,
muitas vezes se assemelhavam às comunidades rurais, pois mesmo nas cidades os
moradores possuíam campos de cultivo e criação de gado.
De volta ao campo, observamos entre os séculos XI e XIII inúmeras revoltas
camponesas. Ao contrário das revoltas urbanas, que eram burguesas e com o
objetivo de adquirir poder político, as revoltas campesinas tinham normalmente
o objetivo de luta pela vida. "A maioria dos camponeses constituía essa massa à
beira do limite mínimo de alimentação, à beira da fome e da epidemia"[10].
A sociedade camponesa era desprezada pela nobreza e pela Igreja, o que gerava
um ódio no camponês. Ódio esse mantido também pelos burgueses nas cidades. A
única propriedade reconhecida pelos senhores, que muitas vezes se confundiam
com o Clero, era a do corpo nu. O resto, devido aos acordos de proteção,
pertencia ao senhor.
Como já dito, o corpo então era visto de uma péssima maneira. "Mais ainda que
pó, o corpo do homem é podridão"[11].
Algo das conseqüências do pecado, o corpo recebe a doença "simbólica e
ideológica Poe excelência" da Idade Média. "O pobre é identificado co o enfermo
e o doente"[12]. E
o camponês era visto como feio e disforme.
Os religiosos os reduziam a simples animais selvagens. "Eram vilãos, eles e
seus filhos, por toda a eternidade"[13].
Como não possuíam uma habilidade excepcional (como ser clérigo ou nobre), não
poderiam alcançar o paraíso. Tinham o inferno como destino.
Além disso, "não são apenas explorados
pela sociedade feudal, são também ridicularizados pela literatura e pela arte"[14],
onde surgem como bestas, feias, violentas. Por essas relações com as outras
classes, os camponeses estão sempre insatisfeitos.
Havia hostilidade também em relação ao progresso tecnológico. Os moinhos
banais, quando esses se tornaram hidráulicos, foram muitas vezes alvo das
revoltas campesinas, já que senhores destruíam os moinhos manuais dos
camponeses, para que esses usassem os seus.
4.CONCLUSÃO
Pudemos
observar o papel do camponês dentro da própria comunidade rural, a partir da
concepção de individualismo e pluralismo, culminando nas relações de proteção surgidas
entre camponeses e senhores.
Trabalhando o papel da mulher e inclusive das crianças, vimos como funcionava a
família camponesa, com um chefe e sua linhagem, que poderia ser seguida não
pelo filho mais velho, mas principalmente por aquele que desempenhasse melhor a
liderança.
O "Maravilhoso e o Quotidiano..." foi utilizado com o objetivo de demonstrar um
pouco da ideologia medieval relacionada ao corpo e suas conseqüências surgiram
na definição não só do papel da mulher, mas também do camponês de maneira geral
na sociedade feudal.
A tentação existente na cidade se fortaleceu com o passar dos anos, causando o
êxodo de muitos camponeses. Em alguns casos, como o da Inglaterra de entre os
séculos XVI e XIX, esse êxodo foi forçado pela política de cercamento de terras
e desenvolvimento industrial.
Os conflitos das comunidades camponesas com o senhorio, que aconteceram por
toda a Idade Média e posteriormente, encontraram pontos altos na Alemanha de
Lutero, onde foram esmagados, e também na França da Revolução, onde invadiram
castelos reivindicando sempre mudanças relacionadas à propriedade das terras.
5.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. Lisboa, Editora Estampa. 1983.
_________________. O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa, Edições 70, 1990
[1] LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. Lisboa, Editora Estampa. 1983. p.35.
[2] Idem 1.
[3] TELLENBACH, G. apud LE GOFF, 1983. p.36.
[4] LE GOFF, 1983. p.41
[5] Idem 4.
[6] LE GOFF, Jacques. O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa, Edições 70, 1990, p. 57
[7] HELMBRECHT apud LE GOFF, 1983. p.43.
[8] LE GOFF, 1983. p.47
[9] LE GOFF, 1983. p.50
[10] LE GOFF, 1983. p.57
[11] LE GOFF, 1990, p. 58
[12] Idem 11.
[13] LE GOFF, 1983. p.58
[14] GRAUS, Frantisek apud LE GOFF, 1983. p.59