As Raízes do Especismo: A Origem da Pretensão Humana de Superioridade

Por Andreia Lemes | 15/07/2009 | História

Resumo

O presente trabalho objetiva promover o debate histórico e filosófico relacionado à pretensão humana de superioridade em relação à natureza e as demais espécies animais. Amparada pelo discurso bíblico, para se compreender a gênese do domínio humano sobre a natureza e os animais na cultura ocidental. Partiremos do conceito de especismo, segundo o qual apenas os interesses da espécie humana são levados em consideração em detrimento dos interesses das demais espécies animais. Para tanto, partiremos dos estudos feitos pelo filósofo Peter Singer, em sua obra Ética Prática e Libertação Animal, que utilizam da narrativa bíblica para explicar a legitimidade desse discurso, ao mesmo tempo em que faz uma genealogia das concepções espirituais, éticas e morais do uso predatório da natureza e de sua expressão máxima de domínio; o hábito da utilização da carne para consumo. Outros estudos utilizados para título de analise serão os artigos do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro: Perspectivismo e Multinaturalismo na América Indígena e O mármore e a Murta: sobre a inconstância da alma selvagem, do mesmo autor. Que corroboram com as analises, feitas por Singer, através das vivencias das sociedades ameríndias com relação à natureza. E sobre a concepção destes acerca da cultura e subjetividade humana.

1. Narrativa bíblica: a origem do especismo

Para entendermos as raizes do especismo, é necessário compreendermos o discurso bíblico, que esta por trás deste conceito, assim como a concepção judaica e greco-romana, Que influenciaram tradicionalmente o discurso da cultura ocidental.

No Gênesis, Versículo (1:26), o homem é criado a imagem e semelhança de Deus, e recebe dele o domínio, sobre os peixes do mar, sobre as aves, répteis e animais domésticos. De forma enfática neste versículo, este domínio é estendido para toda a terra. O ser humano é apresentado como superior aos outros animais, por ser a única criatura, dentre tantas, feita à imagem e semelhança do criador. Portanto depreende-se que na civilização judaica, que é a origem do cristianismo, homem e natureza foram separados. Em outras passagens do Velho Testamento, à Queda do homem é atribuída a dois seres (a mulher, e a um animal,). Em que Deus veste os pecadores, Adão e Eva com peles de animais e os expulsa do paraíso. No primeiro homicídio, a oferta de Caim é preterida à oferta de Abel, por se constituir de animais sacrificados. No episódio da arca de Noé o domínio humano é selado de uma vez por todas. [1]

''Sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a terra. Todos os animais da terra vos temerão e respeitarão: as aves do céu, os répteis do solo e os peixes do mar estarão sob o vosso poder. Tudo que vive e se move servivos-á de alimento. Entrego-vos, como já vos havia entregado os vegetais. ''[2]

O Dilúvio na narrativa bíblica foi um ato praticado por Deus, para punir a maldade humana. Depois que baixaram as águas, Noé agradeceu a misericórdia de Deus por ter poupado a vida dele e de sua família, queimando oferendas de ''animais de toda espécie pura''. O dilúvio de certa maneira liberou o uso da carne dos animais, e reforçou a supremacia humana. Que quaisquer consideração e respeito para com os animais fora deixado de lado. Os animais são meras criaturas que existem para o usufruto humano. A primeira conversão da natureza em propriedade, muito antes do advento da modernidade e evidenciada nos antigos escritos judaicos.

Partindo para o Novo Testamento, os ecos da superioridade humana traduzem-se em atitudes de pouca benevolência no tratamento dispensado à natureza e aos animais. Isto se verifica na destruição de uma figueira por não dar frutos , e do afogamento de dois mil porcos, por Jesus Cristo, que na visão de Santo Agostinho[3] se mostra correlata com a visão de Aristóteles de escravatura animal. Esta acepção é bem conhecida, para Aristóteles os seres menos capazes deveriam naturalmente servir aos mais capazes, e neste embasamento pautado no conceito de racionalidade; animais, mulheres, escravos e estrangeiros, existiam somente para servir o homem racional. A convicção deste pensador é essencial para entendermos a visão de Santo Agostinho sobre a passagem bíblica mencionada. E para entendermos, outras passagens mais benevolentes acerca da natureza e dos animais[4].

O pensamento grego não era uniforme, e possuía várias correntes de pensamento antagônicas. A escola de Pitágoras, por exemplo, pregava o respeito aos animais, por acreditarem talvez, na transmigração das almas. Mas foi o pensamento da escola de Platão, do qual Aristóteles foi discípulo que venceu o embate ideológico. Para Aristóteles os animais existem para servir aos interesses humanos. Ele não nega que o homem seja uma animal, mas o coloca em uma posição de superioridade, quando alega que o homem é um animal racional[5]. Serviu de base para a visão reproduzida pelo cristianismo e repetida por Santo Agostinho, que tanto os animais, quanto a natureza não precisavam ser tratados da mesma forma que os seres humanos. [6] O cristianismo trata-se, portanto de uma fusão de idéias de como a cultura judaica percebia a natureza e a relações do homem com esta, baseadas no domínio da natureza, e no homem como um ser divinizado, não uma simples criatura, e sim como a criação especial de um Deus e, portanto, herdeiro do potencial criador divino.

Durante o período áureo do Império Romano, o cristianismo surge com uma idéia revolucionaria de que toda a vida humana deve ser respeitada. Idéia esta que confrontou diretamente a esfera romana de moralidade e ética. Roma expandiu o seu território em guerras de anexação, sem que qualquer respeito ao inimigo, fosse levado em consideração, e a escravização era uma situação constante. Dentro da ética romana, a diversão era uma continuidade dos valores marciais desta sociedade. E todos que não se encontravam dentro das fronteiras da comunidade romana, não tinham se quer o direito de viver. Prisioneiros de guerra ,criminosos, os seres humanos eugenicamente imperfeitos, e os animais, não faziam parte da comunidade romana. Portanto, nos jogos promovidos no Coliseu, na maioria da vezes jogos em homenagem a algum deus de adoração do imperador da vez; era perfeitamente normal que dois homens lutassem até a morte. Com o tempo a carnificina dos espetáculos com gladiadores, tornou-se extremamente sem graça para população romana. Fez-se necessária, uma incrementação dos jogos, daí passaram a utilizar animais nos espetáculos. Combates entre ursos e touros, leões e touros, uma cobra contra uma águia, ou prisioneiros de guerra envoltos em peles de animais, lutando contra leões e tigres. Não havia nenhum respeito ou compaixão dos romanos pela vida, fosse esta vida de um animal ou de um ser humano. [7]

O que o cristianismo trouxe de inovador para a esfera de moralidade dos romanos, foi o caráter de sagrado da vida humana. E este preceito cristão engloba o respeito à vida humana com uma abrangência que se estende do recém-nascido ao feto que ainda não nasceu. Certo que este preceito nos primórdios do cristianismo não fora estendido aos eugenicamente imperfeitos. Mas se configurou em uma revolução, no tratamento dispensado aos escravos humanos no Império Romano. Por tratar o ser humano como um ser especial detentor de uma alma imortal e destinada à vida após a morte. Uma vez que o cristianismo acentuava o caráter sagrado da vida humana e somente da vida humana. Os espetáculos no Coliseu não cessaram só que agora só os animais participavam. Devido à missão civilizadora do Império Romano, ficou cada vez mais difícil a obtenção de animais para os espetáculos.

1.1 Idade Média e Moderna a sistematização do especismo

Na Idade Média o cristianismo com o intuito de diminuir o abismo até então, existente entre razão e fé, fez uso de muitas das concepções de Aristóteles, sobre o estatuto conferido aos não humanos. A principal concepção aristotélica diz que: além do corpo e da vida, o homem racional possui, um espírito. E que esse espírito é dotado dos mais altos atributos, como razão, consciência de si e autonomia.

São Tomás de Aquino em sua obra Summa Theologica, resultado desta fusão, reforça o especismo cristão ao afirmar que os animais foram feitos para serem usados pela humanidade, não tendo nenhum problema em se usar uma coisa para o fim que se destina. E São Tomás de Aquino vai mais além ainda, ao afirmar que, a proibição de não matar se estende apenas aos seres humanos. Sua resposta não poderia ser menos aristotélica: ''Ora, a ordem das coisas é tal, que o imperfeito, sirva o perfeito (...) As coisas, como as plantas que têm simplesmente a vida, são todas iguais para os animais, e todos os animais são iguais para o homem''. [8] Como seres perfeitos que são, os seres humanos podem matar os animais (seres imperfeitos) para se alimentarem, segundo este pensador, é natural e justificável por ser esta a lei, a lei natural do universo. Nos primórdios do cristianismo a ética concernente aos animais irracionais não existia. Não era pecado matar os animais, ou infligir-lhes tratamento cruel. A natureza não era sacralizada, diferentemente do que ocorria em outras religiões: Hinduísmo e Budismo; em que toda forma de vida e a natureza eram sacralizadas. No tocante a estas religiões e suas diferenças frente ao cristianismo não chegavam ao conhecimento da grande maioria da população européia. Para o clero em geral os pecados eram contra Deus, contra si próprio e contra o próximo. Nesta categoria de pecados contra o Deus, contra si e contra o próximo. Configuram-se em pecados, por ter sido o homem criado por Deus e, portanto sua propriedade, só a ele é permitido matar. Então se depreende que matar a si próprio é um pecado contra deus. Pois a vida humana, só a ele compete ceifar. Já na questão ''pecados contra o próximo'', os animais e a natureza não estão incluídos.[9] Pois de acordo com a tradição cristã, animais e natureza são propriedade humana. E este domínio, nos foi dado pelo criador. Diante deste pilar básico cristão de vida humana, como sendo a única de caráter sagrado; persistiu na matriz do discurso ocidental em várias concepções filosóficas, científicas e hábitos através dos tempos. Na questão de hábitos alimentares, no cristianismo não se verifica restrições a qualquer tipo de alimento, e sim as quantidades ingeridas. A carne da Idade Média era muito apreciada, e considerada um alimento nobre. E liberada de qualquer restrição espiritual.

No final da Idade Média começo da Idade Moderna, surge o Renascimento e humanismo para contradizer toda a matriz de pensamento ocidental assentada na Filosofia Escolástica.Mas o humanismo, como próprio significado já diz: é pautar o conhecimento do mundo e as suas necessidades, tendo o ser humano como foco. O mundo passa a não ser mais regido pelos desígnios de Deus, e sim, resultante da ação direta humana. Em oposição à idéia do ser humano como criatura divinizada. Os humanistas contrapõem a idéia do homem como ser singular dotado das mais altas faculdades: razão, autonomia e consciência de si. O homem como superior a tudo que é inerente aos animais inferiores[10]. Assim os renascentistas fazem elogios desmedidos ao homem[11] enfatizando as suas peculiaridades em relação à natureza.

Embora animais e seres humanos possuam varias coisas em comum como a morte, o nascimento, a dor e o prazer. René Descartes, pensador moderno e adepto das idéias renascentistas. Fez a inversão desta realidade percebida em relação aos animais. Por ser também cristão, Descarte efetuou a união estas duas correntes de pensamento e elaborou a sua própria teoria a respeito da natureza e dos animais:

''Sob a influencia da nova e excitante ciência da mecânica, Decartes afirmou que tudo o que era composto por matéria era regido por princípios mecanicistas, como aqueles que regem o funcionamento de um relógio. Um problema óbvio que esta perspectiva colocava prendia-se a nossa própria natureza. O corpo humano é composto de matéria e faz parte do mundo físico. Portanto, podiapensar-se que os seres humanos também deveriam ser maquinas cujo comportamento era determinado pelas leis da ciência.''[12]

Descartes evitou esta conclusão, focando que os seres humanos diferentemente dos animais, possuía uma alma imortal dada por Deus. Ao passo que aquelas características comuns entre homens e animais (nascimento, morte e dor), eram apenas reflexos físicos e químicos, de molas sendo acionadas, mas não indicação de atributos de sensibilidade iguais aos atributos humanos. Com Descartes se passou a dissecar animais vivos com intuito de provar que eles eram meras máquinas, sem consciência, e sem capacidade de sentirem dor. Com a sua máxima ''Penso, logo existo'', Descartes aprisionou e reduziu o ser humano a sua própria mente. E aumentou ainda mais o fosso existente entre o homem e a natureza.

No Iluminismo e após este,[13] vemos posições conflitantes sobre a natureza e os animais. Mesmo com todas as experiências realizadas com animais se esperaria, que o conhecimento a respeito da fisiologia destes, alterasse o especismo construído desde a Idade Média. Mas o que vimos foi que este conhecimento em nada contradizia o que Descartes havia formulado. Mas em parte tornava esta formulação pouco plausível. Pensadores como Voltaire, Montaigne e Rousseau, defendiam a não manipulação da natureza. E cada um expressou a sua discordância com Descartes a sua maneira. Voltaire contrariando o que fora dito sobre os animais não sentirem dor, afirmou:

''Algumas criaturas bárbaras agarram este cão, que excede o homem em sentimentos de amizade; pregam-no em uma mesa, dissecam-no vivo ainda, para te mostrarem as veias mesentéricas. Encontras nele todos os órgãos das sensações que também existem em ti. Atreve-te agora a argumentar, se és capaz, que a naturezacolocou todos estes instrumentos de sensação no animal, para que ele não possa sentir!''[14]

Já Rousseau se refugiava na natureza, e atribuía à vida em sociedade a causa de todos os males. E criticou as experimentações com animais.Montaigne dentro da visão presa ao ideal religioso do ser humano como criatura divinizada, e administradora benevolente de toda criação. Afirmava, que o Criador nos pós na terra para servi-lo, e que os animais são como nossa família. E estendia este respeito às plantas.

Mas as constatações provocadas pela descoberta da fisiologia semelhante entre homens e animais, não provocaram as mesmas conclusões descritas acima em outros pensadores. Emanuel Kant concluía: ''No que diz respeito aos animais, não temos deveres diretos. Os animais não possuem autoconsciência e são apenas meios para alcançar um fim. Esse fim é o homem.''[15] Para Kant somente os seres racionais e autoconsciêntes, estão dentro da esfera ética de direitos e deveres.Os animais não possuem autoconsciência, muito menos racionalidade, e não compreendem o sentido entre a vida e morte. E muito menos são aptos a fazer escolhas neste sentido. Posição parecida possui o filosófo contratualista John Locke, quando define o termo ''pessoa'', "um ser inteligente e pensante dotado de razão e reflexão e que pode considerar-se a si mesmo aquilo que é, a mesma coisa pensante, em diferentes momentos e lugares.''[16] Automaticamente, na teoria de Locke, os animais por não terem a racionalidade e autonomia, são incapazes de formarem relações sociais e políticas. O que advém dessas relações, que no mundo humano é à força de trabalho, que se configura como propriedade individual. O animal por não possuí-la, se converte em propriedade do ser humano. E é, retirado da natureza, e portanto do contrato social formador das relações sociais e políticas.

1.2 Charles Darwin e a refutação da teoria especista moderna

Charles Darwin em 1871, com a obra a Origem das Espécies, refuta a tradição filosófica, que sustentava que o homem era o ser supremo, dentro da obra do criador, e único ser detentor de um espírito imortal destinado à vida eterna. Darwin provou, baseado em estudos realizados durante os três anos em que viajou pelo mundo, a bordo do navio Beagle. E em observações feitas no arquipélago Galápagos, que as diferenças entre animais e seres humanos e de grau e não de categoria. Darwin chegou a esta conclusão, quando observou as diferenças existentes nos bicos dos tentilhões. Em uma ilha eles possuíam bicos grossos, bons para quebrar nozes. Em outra ilha bicos longos e finos, para comer comida das frestas. Em ambas as ilhas Darwin percebeu que nasceu aves de bicos finos e bicos grossos. Daquela ilha onde havia nozes sobreviveram as aves de bicos grossos. E consequentemente na outra ilha sobreviverem às aves de bicos finos, devido ao tipo de alimentação. Quando essa teoria foi transposta para espécie humana, Darwin chegou à conclusão, que havia também um ancestral comum, entre seres humanos e animais. E foi mais além em seu raciocínio, e formulou que esse ancestral comum era semelhante aos macacos, devido às semelhanças percebidas entre as duas espécies. Darwin portanto, derrubou a tradição filosófica e religiosa, em que o homem era apresentado como criatura divinizada. E contrapôs, que ele descendia na verdade, de outro animal. E não ocupava qualquer posição especial entre as espécies. Era apenas mais um animal, dentre os milhões de espécies existentes no mundo. Que chegou a configuração atual da espécie, devido ao processo lento e gradual de adaptação e evolução; que originou espécie humana Homo Sapiens.[17] Darwin no capítulo 3, da obra pontua que, as tais diferenças de autonomia, autoconsciência entre homens e animais, à luz da teoria da evolução não sejam um abismo intransponível entre as duas espécies. E faz uma comparação:

''Vimos já que os sentimentos e intuições, emoções diversas e faculdades tais como a amizade, a memória, a atenção, a curiosidade, a imitação, a razão, etc., de que o homem se orgulha, podem observar-se em estado nascente, e por vezes bastante desenvolvidas, nos animais inferiores''. [18]

Mesmo com todas estas evidencias apontadas por Darwin, inclusive de que o sentido moral, não é algo encontrado apenas em seres humanos. E presente também, nos instintos sociais dos animais, como ''sentir prazer na companhia mútua, sentir compaixão uns pelos outros e realizar serviços de auxílio mútuo.''[19]

A resistência a Teoria da Evolução, já é bem conhecida, e bastante explicada durante todo este presente trabalho.Pois Charles Darwin, retirou o homem do centro da natureza, e isso para o especismo reinante era e continua sendo inconcebível .Tanto que muitas das concepções de Darwin, foram postas a favor da ideologia especista, de que a evolução dos mais aptos, justifica o domínio humano. Resultado das idéias especistas há muito tempo petrificadas, na matriz do pensamento ocidental.

1.3 O hábito de consumir a carne: especismo hoje

Especismo foi um termo criado em 1970 pelo psicólogo Richard Ryder, professor da Universidade de Oxford, para estabelecer um paralelo entre nossas atitudes perante as demais espécies e as atitudes racistas, pois ambas representam comportamentos parciais ou preconceituosos em favor dos interesses dos membros do nosso próprio grupo em relação aos interesses dos membros dos demais.[20] Se transpormos o termo especismo, para a questão alimentar, perceberemos que as atitudes humanas contra os animais não diferem muito das atitudes dos senhores brancos em relação aos escravos africanos. A única exceção, a esta forma de exploração, era que os escravos não eram utilizados diretamente para alimentação, e sim a sua força de trabalho foi explorada ao máximo. Diferente dos escravos, os animais são explorados no significado máximo da palavra. E o consumo da carne é o especismo, no grau máximo dos animais existirem para o usufruto humano.Que a maioria das pessoas nos grandes centros urbanos, se quer imaginam, o que passou o seu belo ''bife'', até chegar a seu prato. Há uma negação em toda essa cadeia, que nega a todo o momento, que o que está no prato foi um dia um animal, um cadáver de um animal. Esta negação aparece segundo Singer de formas bem sutis, nas embalagens do supermercado totalmente assépticas, não há sangue na carne, sem falar do ''hambúrguer'' que parece tudo menos carne. Que constituem uma forma de negação, mais grave sobre questão. Que é a questão do desconhecimento da vida dos animais que nascem, engordam e morrem, com o objetivo de saciar o paladar humano habituado a carne. Foi-se o tempo que a criação, principalmente do rebanho bovino, se parecia com aquela imaginem de fazenda antiga. Com os bois vagando livremente, crescendo e engordando naturalmente. Hoje aquela fazendinha, se transformou em uma indústria, altamente mecanizada, em que todos os processos são controlados; desde o nascimento, até o abate do animal.[21]

Na sociedade de hoje, altamente industrializada percebemos que a carne é mais um luxo, do que um alimento necessário à sobrevivência humana. Singer diz que:

''Os Esquimós, que vivem num ambiente em que têm de matar animais para a sua alimentação ou morrer de fome, podem justificar-se dizendo que o seu interesse em sobreviver se sobrepõe ao dos animais que matam. A maioria de nós não pode defender a sua dieta deste modo. Os cidadãos das sociedades industrializadas podem facilmente obter uma alimentação adequada sem a utilização da carne dos animais. O peso esmagador das provas médicas indica que a carne dos animais não é necessária para a boa saúde nem para a longevidade.''[22]

Sem falar das implicações ambientais provocadas pelo hábito, uma vez que produzir carne requer uma maior utilização dos recursos naturais.

''Um grupo de especialistas em assuntos ambientais baseado em Washington d.C., calculou que meio quilo de bife criado num cercado custa dois quilos e meio de cereal, 11 250 litros de água, a energia equivalente a 4,5 litros de gasolina e a erosão de cerca de 18 quilos do solo superficial. Mais de um terço da América do Norte está ocupada com pastagens, mais de metade das culturas dos Estados Unidos são forragens e mais de metade da água consumida nos Estados Unidos destina-se ao gado. Em todos estes aspectos, os alimentos vegetais são muito menos exigentes em termos de recursos e do ambiente.''[23]

Diante de todas essas considerações, ambientais e dietéticas, outra consideração mais importante. E ver a propagação do habito de comer carne, como um meio há mais de especismo e de julgo humano sobre os animais. Transformados em objetos, e submetidos a condições de vida miseráveis, que não respeitam, nem ao menos, os instintos básicos da espécie.

2. Perspectivismo: a natureza vista de outra forma

Para a filosofia clássica aristotélica a alma é definida como a substância do corpo, princípio vital de todos os seres. Mas somente o homem possui o espírito intelectivo (razão), inseparável do corpo e imortal. Capaz de produzir o pensamento e se comunicar por meio da linguagem. Este espírito intelectivo, é dividido em, espírito (sensitivo) e (eficaz). O primeiro exercendo a função de matéria potência, o segundo a função de forma ou ato. [24] Os animais por não possuírem espírito, somente o corpo físico (alma, anima), não são detentores também de cultura. Pois somente o homem e dotado desta faculdade espírito intelectivo, capaz de deliberar, e transformar a natureza.

O perspectivismo trás a forma como os ameríndios, enxergam estas questões concernentes à natureza, cultura, subjetivo, objetivo, corpo, espírito, animalidade e humanidade. Dissociadas da tradição filosófica aristotélica. Eduardo Viveiros de Castro propõe inclusive que estas questões sejam vistas sem se deixar dominar pela matriz ocidental. E lança mão de conceitos inteiramente novos para analisar o pensamento ameríndio sobre a natureza, animais, homem e cultura. Primeiramente Viveiros de Castro propõe o termo multinaturalismo, para evidenciar a maneira como os ameríndios percebem a natureza de forma múltipla. Diferente do pensamento ocidental, em que a natureza e universal e as culturas são múltiplas. A concepção ameríndia é que o espírito é único e os corpos são diversos. A visão sobre a cultura e a natureza também é diferente, para eles. O que é natureza para um ser pode muito bem, ser a cultura de outro e vice versa[25]. A natureza é a cultura são concebidas de acordo, com a subjetividade e o ponto de vista do ser analisado. Os ameríndios não fazem a separação como é feito no ocidente, entre subjetivo e objetivo. Essa fronteira de não separação entre esses domínios (subjetivo/objetivo), e a perspectivização. São evidenciadas nas cosmologias ameríndias de forma diferente das cosmologias ocidentais. Em que a condição humana é apresentada como comum a seres humanos e animais, e não a animalidade. Como a condição humana é a condição comum, os ameríndios acreditam que os animais continuam sendo humanos. Mesmo que objetivamente não se apareça com um ser humano. A cultura não aparece como uma negação a natureza, ela apresenta-se sob a perspectiva do sujeito subjetivado. Significa que, em suma, para os ameríndios ''o referencial comum a todos os seres da natureza não é o homem enquanto espécie, mas a humanidade enquanto condição. '' [26] Essa diferenciação entre condição e espécie humana, serve para entender a idéia de roupas animais. A esconder sob a roupa da animalidade uma essência humana.

O perspectivismo e aplicado, aos animais de presa e ao xamanismo na Amazônia. Aos animais de presa, por ser toda a natureza para os ameríndios dotada de intencionalidades dos não humanos com suas próprias perspectivas. O animal é a figura do outro. Um outro com forma de animal, mas a essência é humana. Como em toda sociedade indígena ligada à caça, há a figura dos xamãs. Esses indivíduos fazem a ponte entre o mundo concreto e o perspectivizado da sociedade ameríndia. Em que os animais possuem um lado humano invisível. Os xamãs conseguem ver os animais como eles realmente se vêem, como seres humanos. E dialogam com este mundo, e voltam para contar as intencionalidades destes seres. O xamanismo amazônico, consiste em personificar, tomar o lugar do que deve ser conhecido. Diferente da objetivação ocidental, que conhecer é se afastar do objeto a ser conhecido, é ser ver de fora, e não tomar o ponto de vista da (''coisa em si'').

O perspectivismo para ser entendido dentro da ótica do xamanismo amazônico, se faz necessário entender o conceito de animismo, em que a natureza e cultura é organizada de acordo com o padrão social humano. É atribuir comportamentos sociais aos animais. Daí a figura do xamã transitando por esses dois mundos. Não há a dualidade metafísica entre a cultura e natureza, em que a primeira é a negação da segunda. A diferença crucial para entender o perspectivismo é elucidar um outro conceito, que é muito aplicado a matriz de pensamento ocidental, o naturalismo. Que advoga que sociedade e natureza, coexistem naturalmente, os seres humanos são regidos pelas mesmas leis biológicas e físicas que regem todos os outros seres vivos. Socialmente o humanos interagem entre si, e instituem o contrato social. Portanto sociedade só pode existir entre seres humanos. O que o perspectivismo ameríndio inverte é a noção de sociedade com algo apenas existe entre humanos. Perspectiviza estas relações e as institui também entre os animais. A primeira vista o perspectivismo pode parecer um antropocentrismo velado mas trata-se na verdade de um ''sociocêntrismo'' a projeção da sociedade humana no mundo não humano. Dentro dessa inversão perspectiva, se os animais mantêm relações sociais como seres humanos. Qual seria então a fronteira entre o homem e o animal?Se a sociedade e a negação de tudo o que é natural. Atribuindo as características sociais aos não humanos, o perspectivismo coloca as mesmas faculdades humanas em ambos, se todos são humanos, qual seria diferença. Recorrendo as mitologias e cosmogonias ameríndias percebemos que ao contrário das mitologias e cosmogonias ocidentais. Nunca o ser humano é apresentado se diferenciando a partir do animal, e sim o animal se diferenciando a partir do ser humano. A cultura para o ameríndio não é uma descontinuidade da natureza, e sim a sua continuação. Outro fato que podemos concluir a partir do perspectivismo, e que os índios estendem as fronteiras de humanidade para além da espécie. Que é bem representada por uma anedota de Lévi- Strauss citada por Viveiros de Castro:

''Nas Grandes Antilhas, alguns anos após a descoberta da América, enquanto os espanhóis enviaram comissões de inquérito para investigar se os indígenas tinham ou não uma alma, estes se dedicavam a afogar os brancos que aprisionavam, a fim de verificar, por uma demorada observação, e seus cadáveres eram sujeitos à putrefação.''[27]

Fazendo uma conexão de Peter Singer com os perspectivismo ameríndio de Eduardo Viveiros de Castro e com anedota citada, percebemos que para o indígena o que verdadeiramente importa não é a forma do corpo, e sim saber se este corpo esta sujeito às mesmas leis naturais que incidem sobre o meu corpo. No caso a putrefação comum a animais e homens. Como bem, já sabia os índios. Os invasores por sua vez, achavam que os índios fossem animais , já os indígenas, desconfiavam que talvez eles fossem espíritos, caso seus corpos não fossem sujeitos à putrefação. Como evidenciou Peter Singer, o mundo ocidental, considera a forma do corpo, para atribuir todos o direitos aos humanos e nenhum direito aos animais. Os indígenas em oposição ao pilar aristotélico e cartesiano não opõem humanos e animais da mesma maneira, e desconhecem essa oposição. Para os indígenas o animal é um ser humano que se transformou, e um ser humano um ser que ficou igual ao que sempre foi. Um ser que não adquiriu novas habilidades não mudou. O mundo para eles engloba não apenas uma única forma de explicação do mundo, mais várias. Essa subjetivação personificação do outro, e as cosmologias ameríndias e que permitiram essa abertura dos índios a presença do canibalismo em algumas tribos. A boa aceitação mesmo que de forma inconstante na alma selvagem, do dogmas do cristianismo feita pelos jesuítas. Dentro do perspectivismo entendemos o canibalismo (antropofagia), como a assimilação do que o outro tem de melhor. Já o cristianismo era visto pelos indígenas como algo bom e utilizável dentro da diversidade de formas corporais. Que para o ameríndio tinha o significado de mudança e de se colocar, em uma das multiplicidades de explicação do mundo e suas múltiplas formas de subjetivação. O outro definitivamente, não é um problema para os ameríndios, e isso é o perspectivismo.

3. Conclusão

Em um mundo altamente mecanizado e industrializado, em que as relações principalmente dos seres humanos são pautadas nas relações mercadológicas. Temos a impressão que todos os conceitos que permeiam este mundo estão dissociados e naturais. Sempre esteve no mesmo lugar e sempre tiveram a mesma explicação. Que nem se quer paramos para pensar no significado da acepção ''humano'', o que significa essa acepção? Será que a significação dessa palavra, foi sempre a mesma, e sempre foi aplicada para todos os ditos humanos da mesma forma. O animal, qual é o seu lugar no mundo. Será que as diferenças, entre homens e animais são realmente intransponíveis. Se não encontramos, todas as respostas, pelo menos colocamos mais perguntas e dúvidas. Demonstramos que a separação homem e natureza foram construídas por um discurso que surgiu em um dado espaço tempo. E mais que há sociedades que pensam de forma diferente. Os não humanos (animais), são vistos como humanos modificados com várias naturezas, e uma única cultura análoga a dos humanos verdadeiros. Diferente da tradição ocidental que não basta apenas que o sujeito tenha forma humana, e necessário também que este sujeito pertença ao mesmo grupo, e compartilhe com este grupo as mesmas características fenotipicas. E o outro o que se encontra de fora dessas atribuições tornam-se o problema. Os outros são o animais, a natureza, o indígena o negro. Tudo que é diferente. O mundo Ocidental é a negação do Outro. Que o outro não merece ser se quer olhado, o outro não sente dor, não têm razão muito menos autonomia. O Outro não possui cultura, não é nada, não é um ser. E isso sim, é o pior do especismo.

4. Referências Bibliográficas

ARISTÓTELES, da alma (De anima). Trad. Carlos Humberto Gomes. Lisboa: Edições 70. 2001.

SINGER, Peter. Ética Prática: Filosofia Aberta. 1°. Ed. Portugal: Gradiva, 2000. V. 9

___________ . Libertação Animal. 1° Ed. São Paulo: Lugano Editora. 2003.

___________. Vida Ética. Trad. Alice Xavier. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.

VERSIGNASSI, Alexandre; REZENDE, Rodrigo. Evolução da Evolução. In Superinteressante. Edição 240, junho 2007

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. ''A inconstância da alma selvagem - e outros ensaios de antropologia. '' São Paulo: Cosac Naify, 2002.


[1] . SINGER, Peter. Libertação Animal. 1° Ed. SP: Lugano Editora. 2003. P.143

[2] . Idem, P. 144

[3]. '' O próprio Cristo mostra que o refreio na morte de animais e na destruição das plantas constitui o auge da superstição, pois, julgando que não existem direitos comuns entre nós, os animais e as árvores, ele mandou os demônios habitarem uma vara de porcos, e com uma maldição, secou a árvore que não achou fruto. Certamente nem os porcos e nem as árvores tinham pecado''. (Idem, P. 146)

[4] .Sob o pressuposto domínio humano que esta premissa implica, emerge por vezes um filão de pensamento mais compassivo. O profeta Isaías condenou o sacrifício de animais e o livro de Isaías inclui uma visão idílica do tempo em que o lobo habitará com o cordeiro, o leão comerá palha com o bezerro, e ''ninguém agirá mal nem provocará a destruição do meu Monte Santo''. No entanto, esta é uma visão utópica, não uma ordem a ser obedecida prontamente. Há outras passagens do Antigo Testamento que advogam o exercício de alguma compaixão em relação aos animais, de forma a ser possível defender que a crueldade gratuita é proibida e que o ''domínio'' é, ao invés uma espécie de ''intendência'', sendo nós responsáveis perante Deus pelo cuidado e bem estar daqueles cujo domínio nos foi atribuído. (Idem, ibidem. P.144).

[5] . A natureza, dizia ele, é essencialmente uma hierarquia no qual os que têm menor capacidade de raciocínio existem para servir aqueles que possuem em maior grau. (Idem, P. 145)

[6] . Por esta razão Jesus Cristo transferiu os demônios Para os porcos e amaldiçôo a figueira. (Idem, ibidem. P. 146)

[7] . Idem, ibidem. P. 145

[8] . SINGER, Peter. Libertação Animal. 1° Ed. SP: Lugano Editora. 2003. P.148

[9] . SINGER, Peter. Ética Prática. Trad: Álvaro Augusto Fernandes. 1° Ed. Portugal. Gradiva. 1993. P. 64

[10] . SINGER, Peter. Libertação Animal. 1° Ed. SP. Lugano. 2003. P. 151

[11] . A principal característica do humanismo renascentista é sua insistência no valor da dignidade humana e na posição central ocupada pelo homem no universo. ''O homem é a medida de todas as coisas''. Foi à frase recuperada dos gregos clássicos e serviu de tema para o período. (Idem, ibidem. P. 151)

[12] . SNGER, Peter. Libertação Animal. 1° Ed. SP. Lugano. 2003. P. 152

[13] . Idem, P. 153

[14] . Idem, ibidem. P. 153

[15] . SINGER, Peter. Libertação Animal. 1° Ed. SP. Lugano. 2003. P. 154

[16] . SINGER, Peter. Ética Prática. Trad: Álvaro Augusto Fernandes. 1° Ed. Portugal. Gradiva. 1993. P. 63

[17] . VERSIGNASSI, Alexandre; REZENDE, Rodrigo. Evolução da Evolução. In Superinteressante. Edição 240, ano 2007, P. 62. Outras implicações da Teoria da Evolução de Charles Darwin em: SINGER, Peter. Libertação Animal. 1° Ed. SP. Lugano. 2003. Pág. 155-156

[18] . Idem, ibidem. P. 155

[19] . Idem, ibidem. P. 156

[20] . SINGER, Peter. Vida ética. trad. Alice Xavier. Rio de Janeiro:Ediouro,2002.p.52.

[21] . SINGER, Peter. Libertação Animal. 1° Ed. SP. Lugano. 2003. Pág. 82-84

[22] . SINGER, Peter. Ética Prática. Trad: Álvaro Augusto Fernandes. 1° Ed. Portugal. Gradiva. 1993. P.47

[23] SINGER, Peter. Libertação Animal. 1° Ed. SP. Lugano. 2003. Pág. 131

[24] . Cf. ARISTÓTELES, Da alma (De anima). Trad. Carlos Humberto Gomes. Lisboa: Edições 70. 2001. p. 55-56

[25] . ''A concepção ameríndia suporia, ao contrário, uma unidade do espírito e uma diversidade de corpos. A cultura ou o sujeito seriam aqui a forma do universal; a natureza ou o objeto, a forma o particular. '' VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. ''A inconstância da Alma Selvagem – e outros ensaios de antropologia. '' São Paulo: Cosac Naify, 2002. P. 349

[26] . DESCOLA. Apud VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. ''A inconstância da Alma Selvagem – e outros ensaios de antropologia. '' São Paulo: Cosac Naify, 2002. P. 356

[27] . LÉVI-STRAUSS Apud VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. ''A inconstância da Alma Selvagem – e outros ensaios de antropologia. '' São Paulo: Cosac Naify, 2002. P. 368