As quatro operações

Por Germano Brandes | 25/11/2015 | Filosofia

                              Aprendi a importância do sistema linguístico revolucionário empregado na Cabala quando esta se transforma em arte de combinar as letras do alfabeto. Tal sistema visa a aumentar o númerodas alternativas exegéticas mediante a transmutação das letras dos vocábulos, combinando-as para formarem palavras diferentes, o que confere ao texto uma nova semântica. Confundiu, porém, tais normas e regras técnicas da exegese com a essência da doutrina, quando lhes outorga, na sua terminologia imprópria as denominações de Cabala resolutória e Cabala compensatória. Daí por que achou difícil a divisão da Cabala, julgando-a composta de muitas demais partes.

                               Em verdade, a Cabala emprega quatro normas principais no processo de reestruturação das palavras para assim reescrever o texto canonizado e poder conferir-lhe novos sentidos, além do literal que é o comum, comprobatórios, supostamente, da verdade de sua doutrina. Tais normas que constituem a álgebra mística da Cabala, nem lhe são próprias exclusivamente, pois seu emprego remonta à época talmúdica, anterior de muitos anos à consolidação da Cabala por escrito.

                                São as seguintes as quatro operações e as normas que as regem:

                                a) Notarikon: Por essa regra, considera-se a palavra em questão como se fosse contraída a tantas outras quantas são as letras que a compõem, e que passam a ser alusivas, por isso, às iniciais das palavras supostamente ocultas. A essa norma chamamos impropriamente Cabala Resolutória e citando a sua aplicação por São Jerônimo e outros pais da Igreja. É verdade que os cabalistas admitem, "como por letra e por nomes foram no Antigo Testamento explicados importantíssimos segredos que nos nomes e nas letras se continham fechados com a chave da escuridade, que não deixava penetrar o íntimo de sua significação". Porém, para ilustrar tal pensamento não poderia ter escolhido pior exemplo do que a análise pela norma do Notarikon da palavra Nimretzethuma, a qual prova apenas uma acrobacia comum de semântica procedente do Talmud, sem vinculação qualquer com os ensinamentos da Cabala.

                                b) Zeruf (Tzeruf): Essa norma consiste na transposição das letras constitutivas de um vocábulo, a fim de se formar com os mesmos vocábulos de sentido diferente.

                                c) Ghematriya: É uma norma de similitude numérica. Consiste em aproveitar o valor aritimétrico atribuído a cada letra do alfabeto hebraico para reescrever as palavras do texto mediante a substituição delas por outras de letras diferentes mas de igual valor numérico total. Dessa forma, podem-se tirar conclusões de afinidade, de equivalência ou até contraditórias de um mesmo vocábulo, além de seu significado comum. Tal norma antiquíssima de exegese aplicada com grande frequência nos escritos cabalísticos sequer é mencionada. A não ser uma vez, indiretamente, para noticiar o uso mágico que dela se faz em juízos astrológicos de previsão do futuro, que são próprios da Cabala, nem característicos da sua essência.

                                d) Thémurá: Literalmente: permutação. Por essa norma permuta-se uma palavra em outra mediante a substituição de suas letras por outras de acordo com uma chave convencional. Tal comutação ainda modernamente está na base das chamadas escritas secretas ou enigmáticas, utilizadas inclusive na correspondência diplomática das nações. A ele me refiro ao mencionar o exemplo da transformação do vocábulo Babel em Seach, citada por São Jerônimo. A chave dessa transformação consiste em substituir a primeira letra da ordem alfabética normal pela última, a segunda pela penúltima e assim por diante. Imprópriamente cito esta operação sob o título genérico de Cabala compositória enquanto reserva a denominação de "Themancia ou Themurá" para alguma manobra linguística em definir o que seja, mas qualifico a sua prática de perigosa e condenada pelo poder papal.

                                 No entanto, as ditas quatro normas de leitura de classificação colocadas em chaves impróprias e confusas, como acima se viu, não representam concepções essenciais da Cabala, nem operações exercidas com exclusividade por ela. Os cabalistas tomaram-nas da arte da exegese geral, aplicando-as aoextremo e abusando de suas estranhas propriedades pela variedade de alternativas semânticas que oferecem, extremas, paradoxaise até contraditórias. Dessa normas socorriam-se os cabalistas para sair-se bem nas suas oscilações entre o judaísmo tradicional teológico e as suas concepções de misticismo radical. Isto porque, como técnica de especulação sobre as próprias letras constitutivas do texto sagrado, tais operações, a meu ver, tornaram-se o meio para vincular ao texto tradicional e canonizado idéias novas, extravagantes e até heréticas, servindo-se disso com exorbitância também os cultores da Cabala cristã. EStes, enveredando para o sectarismo religioso, admitem que dadas as virtudes intrínsecas dos vocábulos e letras da língua hebraica, haja esta de ser usada na república da Igreja triunfante depois da final ressurreição. Os cabalistas hebreus, todavia, cultores da metafísica da linguagem, interpretando aquelas virtudes, atribuídas aos vocábulos e às letras qualidade de arquétipos sobrenaturais da Cosmologia, seguindo nisso a filosofia idealista de Platão e, em particular, do neoplatonismo.