As possíveis intenções de D. Conceição
Por Juliana Treicha Toledo | 18/03/2011 | Literatura"Missa do Galo", de Machado de Assis, é um conto que apresenta características realistas, como o suspense, o final inesperado, a questão de dúvida, a consciência do personagem referente ao conflito em questão e o tema adultério, um dos preferidos do autor, isto tudo, com a finalidade de fazer um painel da sociedade burguesa em ascensão. Dentre outras características que podem enquadrar o conto na escala realista, está a descrição detalhada e fiel dos ambientes em que ocorrem as ações. Não a descrição fantasiosa e exaltada do Romantismo, mas uma descrição que leva o leitor a se imaginar diante de uma fotografia ambígua da figura de D. Conceição (personagem feminina da trama).
Este conto oferece dúvidas aos leitores, pois o próprio narrador, o Nogueira, relata a história com lapsos de memória e por vezes se mostra confuso. Nogueira, um rapaz que se apresenta um tanto quanto conversador, inocente, vindo do interior e religioso, chega ao ponto de não entender a misteriosa conversa que teve com Conceição, confundindo, freqüentemente, quem lê, pois ora ele pensa estar sendo seduzido por Conceição, ora pensa que ela, simplesmente, queria conversar. Segundo GOTLIB (1985, p.78), "O modo pelo qual o contista Machado representa a realidade traz consigo a sutileza em relação ao não-dito, que abre para as ambigüidades, em que vários sentidos dialogam entre si. Portando, nos seus contos, paralelamente ao que acontece, há sempre o que parece estar acontecendo".
Baseado nisto, este trabalho tem por finalidade analisar a perspectiva ambígua presente em "Missa do Galo", de Machado de Assis, a respeito das prováveis intenções de D. Conceição em relação ao Nogueira.
O conto "Missa do Galo" narra a história de Nogueira, que relembra um episódio ocorrido quando tinha 17 anos. Em tal ocasião, estava no Rio de Janeiro para estudar, por isso, hospeda-se na casa do escrivão Menezes, viúvo de uma de suas primas e casado em segundas núpcias com Conceição, uma "santa", que se resigna com uma relação extraconjugal do marido. Dizendo ir ao teatro, Menezes dorme fora de casa uma vez por semana. Vivem na casa, ainda, D. Inácia, mãe de Conceição, e duas escravas.
A história se passa basicamente na véspera do Natal, numa daquelas noites em que o escrivão se ausenta de casa. Nogueira iria com um vizinho à missa do galo, então combinou de acordá-lo à meia-noite. O moço decide esperar já pronto, na sala da frente, de maneira a sair sem acordar as pessoas da casa. Enquanto espera, Nogueira lê um romance, Os Três Mosqueteiros, quando, de repente, ouve rumores e passos. É Conceição. Eles começam a conversar, falam de assuntos variados, o tempo vai passando; a conversa prolonga-se, emendam-se os assuntos, riem, aproximam-se e falam baixo para não acordarem D. Inácia.
Finalmente, invertendo-se o combinado, o vizinho grita na rua que é hora da missa do galo e Nogueira sai.
No dia seguinte, Conceição estava como sempre, natural e benigna, sem que nada fizesse lembrar a Nogueira a conversação da véspera. No Ano Novo, Nogueira vai para Mangaratiba, ao retornar, em março, para o Rio de Janeiro, o escrivão havia morrido. E Nogueira nunca mais encontrou Conceição, sabendo depois que ela havia se casado com o escrevente juramentado do marido.
O conto se inicia de forma significativa: "Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta" (ASSIS, 1977, p. 13). Já nessa primeira frase do conto, o narrador denuncia a atmosfera que permeará toda a estrutura do texto: a dúvida e a incerteza. Essa imprecisão, em relação ao que realmente aconteceu na noite da missa do galo, é reforçada diversas vezes no decorrer do conto: "Há impressões dessa noite, que me aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me" (ASSIS, 1977, p. 19). Assim, nesse clima de dúvida, o narrador aciona a cumplicidade do leitor, convidando-o a olhar para as situações de um mesmo ângulo de visão que ele, e fazendo-o compartilhar das mesmas incertezas. Dessa forma, o conto se abre a diversos níveis de significação e de compreensão, devido à ambigüidade que se formula em torno da figura de D. Conceição. Sob este ângulo, o leitor percorre por um caminho tênue entre o limite do que parece ser e do que realmente acontece.
Nesse nível de leitura, se é levado a formular pelo menos duas hipóteses básicas: em primeiro lugar, a de que D. Conceição tentara seduzir o rapaz que, em virtude da sua ingenuidade, não conseguiu distinguir definidamente as suas reais intenções; e, em segundo lugar, a hipótese de que ela simplesmente queria conversar para passar o tempo e amenizar a sua solidão e angústia devido às ausências do marido. Partindo-se dessas duas suposições, é possível encontrarmos indícios que apontam tanto para um quanto para outro caminho.
Partindo da hipótese que consideraria a ingenuidade de D. Conceição, não devemos esquecer que Nogueira, é um rapaz de dezessete anos, fase na qual, os jovens estão suscetíveis a paixões platônicas, em que imaginam estarem amando ou namorando uma pessoa e que esta pessoa as corresponde, em geral, estas paixões são por pessoas mais velhas, assim como acontece no conto. Este fato afastaria a idéia do jogo de sedução executado por D. Conceição, sugerindo que Nogueira, tocado pelo romantismo idealizado, comum a sua facha etária, foi conduzido a suspeitar das reais intenções de Conceição, assim como afirma GOTLIB (1985, p.78) no trecho seguinte:
"E o Sr. Nogueira, enquanto espera, lê romances do A.Dumas, Os três Mosqueteiros, até ficar ébrio de Dumas, a tal ponto que quando d. Conceição entra na sala, tinha um ar de visão romântica, não disbaratada com o meu livro de aventuras".
Além do mais, D. Conceição era uma mulher religiosa, que preferia, em lugar dos dois quadros vulgares fixados pelo marido na parede da sala, "duas imagens, duas santas"; possuía uma imagem de Nossa Senhora da Conceição num oratório; "falava de suas devoções de menina e moça". Era uma mulher honesta e séria, descrita como uma "santa", pelo fato de viver sem reclamar, por não falar mal de ninguém e por aceitar, calada, as traições do marido. A partir dessa perspectiva, D. Conceição se apresenta como uma mulher marcada pela resignação e sofrimento, e, a despeito das suspeitas do narrador, poderia ela, muito bem, estar ali na sala acordada, em sua companhia, simplesmente, para conversar e amenizar as suas angústias.
Acrescenta-se a isso, o fato de, no dia seguinte, Nogueira não ter encontrado nenhum indício no comportamento de D. Conceição que lhe lembrasse as suspeitas da noite anterior.
Por outro lado, outra possibilidade de leitura consideraria o caráter pervertido de D. Conceição como o centro da questão. Nesse plano, tende-se geralmente a caracterizar o narrador como um rapaz ingênuo, que não consegue enxergar de modo convicto a malícia existente por detrás da presença desinteressada de D. Conceição durante o tempo de espera pela hora da missa do galo.
Nesse caso, devemos lembrar, em primeiro lugar, que Conceição era traída semanalmente pelo marido, o que justificaria uma intenção de vingança da sua parte. Na noite de Natal, D. Conceição acordara "por acordar", embora parecesse nem ter dormido. Dessa forma, é possível pensar que ela poderia ter premeditado o encontro com Nogueira.
Assim, através dessa perspectiva, a narrativa prossegue no decurso da noite, formada por uma atmosfera sedutora e enigmática que envolve as duas personagens. Há todo um jogo de sedução que aparece a partir do momento em que Conceição chega na sala vestida em trajes íntimos, permitindo a Nogueira perceber seu corpo: pés, joelhos, mãos, braços, pernas, cintura. O conto, portanto, é constituído por um erotismo que adquire uma intensidade ainda maior, justamente, por não se manifestar de modo explícito e por não se concretizar, efetivamente, sendo apenas sugerido e insinuado.
Nesse sentido, os gestos, olhares e movimentos de D. Conceição parecem medidos para envolver, atrair e seduzir Nogueira, e não são raras as situações em que isso ocorre. São olhares que se fixam, como pode ser visto no trecho a seguir: "... perto ficavam nossas caras" / "...sem desviar de mim os grandes olhos espertos gestos"; é a aproximação do outro, são as partes do corpo que se mostram sutilmente, como em: "...e eu vi-lhe metade dos braços muito claros, e menos magros..."; é o toque, como mostra a seguir: "... pôs as mãos no meu ombro..."; são os movimentos que adquirem uma tonalidade sensual, como por exemplo, no trecho seguinte: "...enfiando os olhos por entre as pálpebras meio-cerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a língua pelos beiços, para umedecê-los"; são as sensações e percepções que se fazem sentir, como em: "...como se tivesse um arrepio de frio..."; são as atitudes e gestos duvidosos, conforme aparece neste trecho: "Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos não eram de pessoa que acabasse de dormir; pareciam não ter ainda pegado no sono". Como se pode ver, durante todo o tempo em que os dois estiveram juntos, pareciam gestos e movimentos instigantes, insinuantes e sedutores, conforme lembra GOTLIB (1985, p.79):
"E há os gestos de d. Conceição, os olhares, sempre fixos nele, a inquietação, os braço, os dentes brancos, o nariz, a proximidade, os cochichos, as mudanças de lugar para mais perto dele, o sonolência...E sobretudo, o diálogo. Não propriamente o que se diz. Este parece ser mais o pretexto para encobrir, disfarçar ou dissimular o que acontece por detrás, ou além disto: o diálogo de tensões..."
A partir desse ponto de vista, D. Conceição parece esconder-se atrás da máscara do abandono e da indiferença do marido, fazendo uso de todas as qualidades que lhe são atribuídas para ocultar a sua verdadeira personalidade: a de fingida e traidora, empenhada em seduzir um garotão de 17 anos durante a ausência do marido.
Por fim, como uma forma de insinuar uma comprovação das suas suspeitas, o narrador menciona sugestivamente o caso de, anos depois, com a morte do marido, D. Conceição ter se casado com o escrevente juramentado do marido.
Enfim, tudo é sugerido, mas nada é revelado concretamente. Os vazios vão se formando e mais uma vez o leitor é induzido a concordar com o narrador, tornando-se seu cúmplice, partilhados do mesmo ponto de vista, sendo marcado pela imprecisão, incerteza e ambigüidade. Essa possibilidade de interpretação do conto, com base em duas hipóteses básicas, a da inocência e a da impudência de D. Conceição, são dois modos intercalados de ver a personagem, são duas faces da mesma moeda, nenhuma das duas inteiramente falsas, ou verdadeiras. A verdade é que Machado de Assis, através da acertada escolha do foco narrativo, conduz a narrativa de maneira ambígua, deixando o leitor em cima do muro ou propenso no ar em meio à dificuldade de se tirar conclusões precisas, assim, como lembra GOTLIB (2006, p.80): "Machado tem este dom de fisgar o leitor pela intriga bem arquitetada, intrigando-o com questões não-resolvidas".
REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado. Missa do Galo: Variações sobre o mesmo tema. São Paulo: Summus, 1977.
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1999.
BOSI, Alfredo. Machado de Assis: O enigma do olhar. São Paulo: Ática, 2003.
BULHÕES, Marcelo. Leituras do Desejo: O Erotismo no Romance Naturalista Brasileiro. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2003.
GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. São Paulo: Ática, 2006.