As ovelhas do imaginário de Philip K. Dick
Por Giordana Maria Bonifácio Medeiros | 29/01/2015 | ArteAs ovelhas do imaginário de Philip K. Dick
Resumo:
O presente trabalho pretende discutir o real e o imaginário na obra de Philip K. Dick: Androides sonham com ovelhas elétricas?. Primeiramente, será necessário determinar o que é realidade e o que é ficção na literatura. Após, será apresentado um breve resumo da obra e, então, partir-se-á para a discussão da dúvida existencial dos androides e dos humanos no mundo ficcional que Philip K. Dick construiu em seu romance mais importante e lembrado. Ainda no bojo da pesquisa, será confrontado o Mercerismo, a religião criada com base na farsa e o showbis que desmascara seu principal concorrente. Porém, a questão que move esta pesquisa é a discussão do homem quanto ser real e do androide quanto ser fabricado, as ovelhas elétricas que nunca substituirão aquelas que vivem realmente.
Resume:
This research wants discusses the fact and the imaginary in the Philip K Dick novel: Do Androids Dream of Electric Sheep?. First we must determine what is fact and what is fiction in the literature, after that will be presented a brief resume about the novel and, then, will be discussed de doubt about the existencial question of androids and humans in the fictional world of Philip K. Dick. Will be presented too the confront of the Mercerism and the showbis, but the core of this research is the discussion about fact and the android, the “made been”, the eletric sheeps that never will replace the sheeps that lives in the reality.
I. O real e o ficcional na literatura
Citando Barthes :
"A narrativa está presente em todos os lugares, em todas as sociedades; a narrativa começa com a própria história da humanidade; não há, não há em parte alguma, povo algum sem narrativa; todas as classes, todos os grupos humanos têm suas narrativas, e frequentemente estas narrativas são apreciadas em comum por homens de cultura diferente, e mesmo oposta: a narrativa ridiculariza a boa e a má literatura: internacional, trans-histórica, transcultural, a narrativa está aí, como a vida." (Barthes, 1971, p. 19-20)
Narrar consiste em relatar um acontecimento ou uma sucessão de acontecimentos, sejam eles reais ou imaginários A narrativa divide-se, então, em narrativa poética, ou epopeia, em narrativa objetiva ou jornalística, que se refere a acontecimentos reais e em narrativa de ficção, cujo foco são acontecimentos imaginários. Esta última é designada como “narrativa” termo utilizado para discernir a prosa de ficção das demais espécies acima elencadas. Neste caso, a narração provém da criatividade humana exigindo do escritor, arte, técnica e, sobretudo, imaginação. Para Aristóteles a “arte é imitação” (ARISTÓTELES, A arte poética, 2001). Imitar faz parte da natureza humana, o que os homens sentem prazer de fazê-lo. A narração definida acima necessita de alguns elementos básicos: um narrador que a “contará”, personagens que serão objeto foco da narrativa onde vivenciarão os fatos narrados, o espaço ou locus em que acontecerá a história narrada, e a trama ou conflitos que serão sofridos pelos personagens e o transcorrer do tempo em que toda a ação se desenvolverá.
I.II A Narrativa de Ficção ou Narração
Qual o principal objetivo da narrativa de ficção? Ora, narrativa de ficção é construída, com um único fim: emocionar, impressionar as pessoas como se fossem reais. A história foi construída de modo a ser vivida pelo leitor. A provocar emoções do indivíduo leitor mesmo que aquele saiba tratar-se tão somente de ficção ou invenção. A ficção garante-nos uma realidade que é bem mais ampla que a realidade externa, que conhecemos. Através da ficção é possível ao leitor transportar-se para um mundo futuro, um mundo em que androides lutam para sobreviver numa Terra devastada por guerras atômicas, perseguidos pelos humanos que veem em seus oponentes o perigo de sua extinção. Uma situação que apesar de, hoje, parecer absurda, é perfeitamente aceita como verdadeira na obra de Philip K. Dick em que nos debruçaremos a partir de agora.
Citemos algumas obras que especificam o que acima foi exposto:
Em a Metamorfose, Franz Kafka inicia apresenta o personagem Gregor Samsa que um dia desperta transformado em uma barata, aqui o autor vale-se de uma metáfora para designar a condição humana em um mundo adverso e desumano.
Quando certa manhã, Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça, e ao levantar um pouco sua cabeça viu o seu ventre abaulado, marrom, divididos por nervuras arqueadas (...). (KAFKA, 2007, pg. 7.)
Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, apresenta-nos um narrador singular: um defunto que, logo no primeiro capítulo, apresenta-nos o seu óbito:
Algum tempo hesitei se deveria começar estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor (...) (ASSIS, 2008, pg.15).
Já em Fausto, Goethe guia-nos na história de um homem que pactuou sua alma com o diabo Mefístoles em troca do conhecimento absoluto:
FAUSTO
No mundo que habitas, senhor, a natureza
Dos seres se conhece em nomes, com certeza.
Está tudo bem claro e por mim tanto faz
Te chames Belzebu, Demônio ou Satanás.
Qual o teu nome então?
MEFÍSTOLES
Sou parcela do Além
Força que cria o Mal e também faz o Bem.
FAUSTO
Que dizes com palavras dúbias, meu herói?
MEFÍSTOLES
(...)
Eu sou aquele gênio que nega e que destrói!
E o faço com razão; a obra da Criação
Caminha com vagar para a destruição.
(...)
FAUSTO
Que desejas em troca, alguma coisa à vista?
MEFISTÓFELES
Desejo AQUI ficar como teu bom criado,
Sem descanso nem trégua atendo a um aceno:
Mas quando nos acharmos, depois, do outro lado
Servir-me-às, também, muito humilde, e sereno.
FAUSTO
Se apenas isso julgas será suficiente,
Aceito a farsa já, e o faço bem contente.
MEFISTÓFELES
O sangue humano é tinta ardente e especial! (GOETHE, 1974, pg. 85 a 89).
Para o leitor dessas narrativas é necessário que aceite a realidade ficcional apresentada, por mais inverossímil que pareça. Assim, nas obras é aceitável que uma personagem seja transformada em um inseto horroroso, que um defunto resolva contar suas memórias, bem como, que um homem faça um pacto com o diabo por sua alma.
Toda narrativa de ficção transmite-nos questões filosóficas que nos fazem questionar a realidade em que vivemos. É por tal razão que as narrativas de ficção comovem sobremaneira seus leitores.
II. Breve resumo de Androides sonham com ovelhas elétricas?
A obra de Philip K. Dick, considerada uma das melhores ficções científicas já escritas, apresenta-nos a perseguição a seis androides Nexus – 6, os mais modernos e semelhantes aos humanos já criados, pelo caçador de androides, Rick Deckard. Após o caçador principal ter sido ferido por um androide, coube a Deckard a perseguição e “aposentadoria” (como se denomina o extermínio de androides no livro) dos Nexus – 6 que fugiram de Marte, uma colônia humana, onde aqueles eram escravizados, para a Terra. Deckard é o típico funcionário público, muito distante do caçador intrépido interpretado por Harrison Ford na película Blade Runner. O sonho deste do caçador de androides é ter condições de comprar um animal vivo, símbolo de status numa Terra pós-apocalíptica. Quanto maior o animal, maior o prestígio social dos humanos que o criam. Deckard tinha uma ovelha elétrica que abominava pelo fato de exigir dele os mesmo cuidados de uma real e ser tão só um artífice. No mundo criado por Philip K. Dick ter um animal era algo que diferenciava os homens dos androides visto que aqueles desenvolvem a empatia que faltava aos últimos.
Quando foi enviado a uma visita as corporações Rosen para realizar o teste Voight – Kampff, quase é enganado por uma androide Nexus – 6, a partir do que, pode constatar que sua missão seria mais difícil do que, de início, parecia-lhe. A perseguição rende-lhe bons frutos, quando aposenta três androides adquire uma cabra para substituir sua ovelha elétrica. Mas a alegria dura pouco, Rachel Rosen, a androide que se envolve com Deckard para persuadi-lo de perseguir os androides, após ser desprezada, lança a cabra do alto de um precipício.
Os demais androides Nexus – 6 foram acobertados em um prédio abandonado por um “cabeça de galinha”, um ser humano que foi afetado pela radiação tendo perdido, assim, grande parte de seu intelecto. Deckard aposenta estes últimos androides como se fossem simples insetos. Não é por menos que Dick imaginou a perversidade de Pris, uma das androides, que mutila friamente uma aranha, e o corpo de Roy Baty ter espamos mesmo após ser-lhe destruída a sua cabeça, tal qual se daria a uma barata morta.
Outra questão que é alvo de grande debate é o Mercerismo, uma religião criada por Dick, a qual, na obra, disputa fiéis com o showbis do Buster Gente Fina, um androide que desmascara a seita forjada, mostrando ser falso todo aparato da religião o que deixa os homens desnorteados.
As questões filosóficas de que se valeu Dick são postas à prova a todo tempo no decorrer do romance. A sociedade hipócrita em que, não se consegue distinguir o real do artífice, traz à tona questões de moral que são discutidas na realidade fora das páginas ficcionais de Dick. O gato real que morre como um robô, a dificuldade de distinguir androides de humanos, que coloca em dúvida a humanidade de um outro caçador, é o que torna a obra cheia de meandros, que provocariam uma pesquisa própria de cada proposição.
Após matar todos os androides, Deckard tenta fugir da cidade que lhe oprimia e do trabalho que lhe parecia agora uma ocupação cruel. Deckard sentiu empatia pelos artífices que aposentou, não desejava mais seguir na sua carreira e pretendia até mesmo migrar da Terra. Confuso, avista um sapo no deserto, tomado de uma nova euforia, recolhe o que pensava ser um animal e volta para casa. Iran, esposa do caçador, descobre tratar-se tão somente de um outro robô, um artífice que dá fim a recente euforia de Deckard. Após um dia de árduo trabalho, resta-lhe dormir numa paz, que sabia, seria, tão somente, passageira.
III. As ovelhas do imaginário de Philip K. Dick.
O que seria o romance senão a representação ficcional de algo “real”? Não que a realidade futurista de Dick esteja presente no nosso dia-a-dia, mas as questões filosóficas nesse incutidas são debatidas a exaustão no mundo real, em que se aposentam no lixo os androides que não mais nos servem. No conto de Dick, ovelhas elétricas são construídas de forma tão perfeita, tão semelhante às originais que é quase impossível diferenciar elétricas (e os demais tipos de artífices) de ovelhas reais. Pode-se afirmar que a cultura mistura ovelhas elétricas a um rebanho de ovelhas reais sem que as reais percebam que as elétricas não são reais. A representação do romance se assemelha tanto a imagem “real” que a linha que os separa acaba por se dissipar.
- Ó, meu Deus - Iran disse suavemente. Ela andou até o engradado, perscrutando seu interior; então ela o contornou, examinando a cabra por todos os ângulos.
- Ela é realmente verdadeira? - perguntou. - Não é falsa?
- Absolutamente verdadeira - assegurou ele. - A menos que me tenham me enganado. (DICK, 2014, p. 166).
“Ela é realmente verdadeira?”, é o que questiona Iran, sobre a cabra, comprada por Deckard, reclusa no engradado. Na verdade, ela queria saber se o a cabra não se tratava de um robô réplica (uma cabra elétrica) em contraponto ao animal natural. O verdadeiro que discerne da noção comum de falso. Mas o que seria falso? Algo que não é real? O Houaiss conceitua falso como “aquilo que é feito à semelhança ou imitação do verdadeiro; falsificado”. Assim, o falso é algo manipulado, o artífice, o simulado.
Porém ressalta Capelatto:
Para ser manipulado, deve ter substância (palpável ou não), ter forma (imagem representativa). Falso pode ser considerado antônimo de verdadeiro, mas não oposição a real. Pois mesmo para ser um simulacro, deve existir, ser real.
Talvez, assim possamos chegar a uma primeira afirmação do que é “ficção”. Ficção é algo real à medida que para existir, tem que ter uma imagem representativa.
Verdadeira seria a ficção que faz parte da realidade dos sentidos, enquanto que falsa seria a ficção que se permanece no âmbito das imagens, do simulacro (cujos sentidos podem decodificar simbolicamente, mas não fisicamente). (...) Mas seriam elas analogia às ovelhas elétricas? (CAPELATTO, 2014, pg. 61).
Ovelhas elétricas apesar de serem animais tangíveis, não são consideradas reais por não serem naturais. Mas o que se entenderia por “natural”? No universo criado por Dick, compreendemos que natural é o ser que não é feito a partir de mecanismos eletrônicos, mecânicos ou sintéticos.
Os androides, na obra de Dick, buscam assemelhar-se aos seres humanos, que os oprimem, nesse sentido, Luba Luft tornou-se uma cantora de ópera, cuja voz emocionava tanto quanto a voz humana. Também, deve-se mencionar que, ao ser morta, estava visitando uma exposição de Edvard Munch, e no momento de sua “aposentadoria” imitou a imagem da prestigiada pintura O grito. O que falta aos androides é a empatia. É a comiseração pelo sofrimento alheio. A ovelha elétrica, por mais que exija os mesmos cuidados das reais, nunca construirá um vínculo afetivo com seus donos. É isso que desgostava tanto Deckard, possuir uma ovelha elétrica um artífice que jamais seria “real” apesar da semelhança extrema com o animal natural.
A androide Pris mutila uma aranha com indiferença pelo seu sofrimento, enquanto o “cabeça de galinha” J. R. Isidore sente-se devastado pelo ato de crueldade.
- Não a mutile – ele disse ofegante. Implorante.
Com a tesoura, Pris cortou uma das pernas da aranha.(...)
Pris cortou outra perna, imobilizando a aranha com a borda de outra mão. Ela sorria. (DICK, 2014, p.198)
É empatia que os androides não conseguiam imitar. Empatia é algo próprio dos seres vivos, que não é possível simular no androide, no artífice construído para algum fim. Sentimentos podem ser imitados pelos androides, mas não podem ser criados por si mesmos. A reação que o teste Voight – Kampff busca é a resposta dos sentimentos humanos ausentes nos androides. O trabalho de Deckard é ameaçado pela sua própria condição de humano, pois a enorme semelhança dos Nexus – 6 com os humanos acaba por lhe criar empatia por aqueles.
Dick não ludibria os leitores com ovelhas artificiais, na verdade, desmitifica a realidade, deixando claro que a humanidade e seu discurso moral são tão falsos quanto os artífices que os caçadores de androides “aposentavam”. Robôs não sonham com ovelhas elétricas, mas o homem, por status, sonha em possuir uma ovelha natural.
IV. O Mercerismo
O Mercerismo é uma religião baseada na condição ímpar aos seres humanos: a empatia. Ocorre uma fusão de sentimentos daqueles que estiverem ligados pela “caixa de empatia” naquele momento. Essa fusão cria o evento religioso que constitui o Mercerismo. Assemelha-se a um jogo on line em que todos que estiverem conectados partilham das mesmas imagens e podem contribuir para a formação daquele evento. O que difere o Mercerismo dos jogos em rede é o fato de estarem todos ligados por um único avatar Wilbor Mercer, um velho que sobe uma montanha sob denso apedrejamento, e ao final dessa travessia todos conseguem sentir a dor que aquele está sentindo.
A fusão é uma relação social por meio da qual os seres humanos, por serem dotados de empatia, unem-se numa partilha coletiva de emoções, assim pelo fato de as relações humanas terem se tornado desoladas, isoladas e fragmentadas, torna-se, na obra de Dick, necessário realizar o contato com outros homens o que se dá com auxílio da “caixa de empatia”. Nesse sentido, afirma J.R. Isidore a função da caixa de empatia para si: “É uma extensão de seu corpo; é a ponte para outros seres humanos, é o caminho para deixar de ser sozinho”. (DICK, 2014, pg. 73.)
Nesse sentido, na busca de igualar-se aos humanos, Roy Baty tinha em mente promover entre androides uma experiência próxima do Mercerismo, através de drogas de fusão mental que roubou e usou. Tinha preocupações místicas, afirmando, sobretudo, a sacralidade da curta vida androide.
Ocorre que em determinado momento, Isidore, apesar de se tratar de um “cabeça de galinha” percebe que Mercer e Buster Gente Fina parecem duelar pelas almas humanas. Nesse sentido afirma: “acho que o Buster Gente Fina e o mercerismo estão lutando pelo controle de nossas almas psíquicas.” (DICK, 2014, 82) Não é por menos que Buster procura desmitificar o Mercerismo, numa revelação bombástica que descaracteriza a religião, dizendo tratar-se de uma fraude isenta de realidade que serve tão só como um embuste aos seres humanos.
De um lado desse duelo está a mídia, com Buster Gente Fina, que em seu programa diário que dura 23 horas, faz piadas superficiais, mostra notícias desimportantes, zomba do mercerismo, e cujo principal atrativo é a simplicidade absurdamente mundana de seus comentários. É muito semelhante aos sucessos televisivos manipuladores das massas, que tem como função manter apascentadas as ovelhas do rebanho, aprisionado deliberadamente os pensamentos dos espectadores.
De outro lado, está o desafiante, Wilburn Mercer, com sua caixa de empatia que permite a “união“ entre os seres humanos. Mercer é o redentor, o messias de seu tempo, aquele que está sempre em sacrifício por suas ovelhas, aquele que leva ao mundo tumular, mas dele é capaz de retirar seus fiéis… O homem que leva pedradas, mas permanece subindo a montanha, invencível, pois a autoimolação requer força e fé.
Por meio da caixa de empatia (como numa oração), é possível ao fiel falar com Mercer, ouvir seus conselhos, saber de sua caminhada e de seu constante sacrifício e, inclusive, levar as pedradas que deveriam acertar o redentor.
Mas a questão é justamente se a presença de Mercer é real. Ou somente outro artífice num mundo em que real e imitação permanecem lado a lado, sem diferenciação. A questão resolve-se quando Buster revela a fraude da religião, deixando desnorteados os homens, em sua crença pura e inocente. Nesse sentido afirma Piacentini:
Mercer, deve ser visto como uma figuração do espetáculo: uma imagem da forma mercadoria mediada por outra mercadoria – a caixa preta da empatia – através da fusão, uma relação social.
A forma mercadoria não está apenas figurada naquilo que claramente representa a mercadoria, como os animais vivos e os elétricos, as caixas pretas e a televisão. Citando Debord se “toda a extensão da sociedade é o seu retrato”, vamos encontrá-la em todos os lugares, inclusive nas personagens. (PIACENTINI, 2010, pg. 60).
Buster e Mercer lutam lado a lado por fieis em seu mundo, querem controlar o rebanho de ovelhas tontas que buscam por respostas que inexistem. Oferecem o conforto da dúvida, suprem a necessidade de alento de seres humano num mundo em que o indivíduo está, cada vez, mais sozinho.
Segundo Adorno:
Nada de espiritual, nem tampouco qualquer sonho escapista, foi jamais concebido sem que seu conteúdo já não implicasse objetivamente uma modificação da realidade material. Não há nenhum afeto, nenhum sentimento íntimo que não implique por fim algo exterior, sem o qual estes se reduziriam à intenção sublimada, à mera aparência, à inverdade. (ADORNO apud PIACENTINI, pag. 50)
Apesar da inverdade em que se baseiam, Buster e Mercer, são o pasto que alimentam uma sociedade faminta. Por isso duelam friamente pelas almas psíquicas dos indivíduos. Como concorrentes na sociedade capitalista em que se difundem de forma viral.
V. CONCLUSÃO
Podemos considerar a obra de Dick como símbolo da luta de classes, sendo composto pela eterna luta entre opressores e oprimidos. É possível constatar que o romance de Dick alude aos pontos de vista disponíveis da década de 60 norte-americana, nesse sentido, Deckard assume o papel do pequeno burguês materializado e Isidore é o símbolo dos totalmente desprovidos da possibilidade de ascensão social o qual, por sua vez, divide-se entre aqueles que nada fazem para que haja mudança de sua condição, como os cabeça de galinha, e os androides que, sob o comando de Roy Baty, organizam-se e tentam fazê-lo.
A realidade e a ficção restam lado a lado numa obra que prima por trazer à tona questões existenciais tão caras aos seres humanos. Os androides buscam assemelharem-se aqueles que os escravizavam, queriam ser homens dotados de todas as características de seu dominador. Mas não é o que acontece no mundo atual, em que os mais pobres, submissos na eterna luta de classes, tentam adotar o modo de vida daqueles que os subjugam?
O que é real? é uma questão difícil de ser respondida no livro de Dick. Pois não se concentra na materialidade da coisa, mas na condição de simulacro ou não da realidade. Androides são escravizados por não poderem sentir, mas os homens também subjugam os seus pares, caso estes não sejam dotados de condições mínimas de inteligência. Mas numa sociedade moderna poder-se-ia dizer que aqueles que não conseguem cursar a universidades são relegados eternamente à pobreza. Seres que não ascenderão no padrão econômico, dominados por uma elite que migrou para planetas em que vivem em condições mais propícias de vida.
Como arma de subjugação está a religião, representada pelo Mercerismo, e a televisão, representada pelo Buster Gente Fina. Armas de uma elite que consegue apascentar os ânimos das ovelhas mediante aquilo que Marx uma vez denominou de ópio do povo. Estão, também, lado a lado, lutando pelas mentes dos homens, de modo calar-lhes a voz, enganar suas necessidades, impor normas mediante o mais cruel modo de dominação: a fé.
Depois de estudados todos os meandros da obra mais famosa de Dick, desvelando as questões que traz em seu bojo, podemos dizer que é possível aprender-se bastante de nossa própria época mediante a leitura de Androides sonham com ovelhas elétricas?. Isto por que, apesar de tratar-se de ficção, Dick não se utiliza de questões filosóficas avessas a nossa realidade. Nesse contexto está, não só a dualidade entre real e artífice, mas, também, religião e televisão e elite e povo. Foram tais as questões apresentadas nesta pesquisa com intuito de apresentar todos os meandros do romance de Dick.
REFERÊNCIAS,
ARISTÓTELES. Arte Retórica e ArtePoética. Tradução de Antonio Pinto de Carvalho. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 2011.
ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Saraiva, 2008.
BARTHES, Roland. A Aventura Semiológica. Tradução de Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
CAPELATTO, Alexandre, Humanos sonham com ovelhas reais? In Sessões do Imaginário, v.19, n.31, 2014, pg. 59-63.
DICK, Philip K., Androides sonham com ovelhas elétricas?, São Paulo: Aleph, 2014.
GOETHE, Fausto, São Paulo: Editora Três, 1974.
JUNIOR, Gilberto Ferreira Sena, Realidade versus ficção: a literatura como fonte de escrita para a história.
KAFKA, Franz, A metamorfose, São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
PIACENTINI, Gustavo, Reificação na ficção científica norte-americana dos anos 60 : uma análise do foco narrativo de Do androids dream of electric sheep? De Philip K. Dick / Gustavo Piacentini ; orientador Marcos César de Paula Soares. – São Paulo, 2010.