As nossas cidades estão doentes
Por Avelino José Pereira Neto | 11/12/2015 | SociedadeAs nossas cidades estão doentes
“As cidades estão doentes” __escreveu o escritor Luiz Alberto Mendes. Sim, é uma realidade assustadora, mas fingimos que isso não existe porque não é de interesse do poder público e nem de quem usufrui desse caos. Digo que as nossas cidades sofrem de uma doença generalizada que afeta todos os seus sistemas num efeito dominó decadente e pouco promissor. Não estou somente descrevendo a doença do crime urbano, da violência e da inexistência de segurança para a população. Embora a violência urbana seja uma consequência direta dessa enfermidade que toma conta das cidades brasileiras no seu mais profundo âmago. Esse mal que assola as cidades é como um câncer que atua silenciosamente no cerne dos sistemas urbanos e que vem à tona sob os mais diversos sintomas. Ele é encontrado no sistema de transporte, na segurança pública, nos programas habitacionais, no sistema de saneamento e de tratamento d’água das cidades, na administração dos bens públicos e em todas as instituições públicas desse país. Este mal que penetra nos sistemas e instituições faz com que as cidades adoeçam afetando a população e colaborando também para que ela se torne doente.
O retrato dessa doença está registrado nas estatísticas e relatórios oficiais.
“Entre as 100 maiores cidades brasileiras, apenas três oferecem coleta de esgoto a 100% da população: Belo Horizonte (MG), Franca (SP) e Santos (SP). A média de oferecimento de coleta de esgoto nas maiores cidades - onde vivem 78 milhões de brasileiros - foi de 61,4%, contra apenas 48,1% em todo o país.”_Revista Exame
Segundo as estatísticas oficiais, a falta de sistemas de esgoto sanitário atinge quase metade (44,8%) dos municípios brasileiros. A Região Norte é a que apresenta a situação mais grave. Apenas 3,5% dos domicílios de 13% dos municípios da região têm acesso à rede coletora de esgoto. São Paulo é o único estado em que quase todos os municípios aparecem providos de rede coletora de esgoto. Acre, Amazonas, Alagoas, Minas Gerais e Rio Grande do Sul apresentam taxa inferior a 50% de municípios assistidos.
Mesmo sendo possuidor de 12% de toda a quantidade de água doce do mundo, distribuída em rios, e tem em suas terras, o maior rio em termos de extensão e volume do planeta, que é o Rio Amazonas, ainda assim, milhões de brasileiros sofrem com a escassez de água. Fenômenos como a urbanização em massa, desperdício de água e crescimento da demanda fazem com que a água, antes um bem de fácil acesso e disponível para todos, venha se tornando gradativamente uma mercadoria de alto valor. Embora o serviço de abastecimento de água já beneficie quase todas as cidades brasileiras (99,4%), quase um quarto (23%) delas ainda sofre com racionamento. Em 41% dos municípios que contam com rede de distribuição, o desabastecimento dura o ano todo, motivado, principalmente (66%), por secas ou estiagem.
Os dados do Atlas do Saneamento do Instituto de Geografia e Estatística (IBGE) também revelam desigualdades em termos de abastecimento entre as regiões. Até 2008, dos 5.564 municípios do país, 33, concentrados no Norte e no Nordeste, ainda não dispunham de redes gerais abastecimento de água, sendo 11 na Paraíba. Outro fenômeno que não ajuda no abastecimento de água à população é quanto aos programas de manutenção das redes existentes. Segundo relatórios oficiais, o desperdício com a água tratada até chegar à torneira do consumidor é em torno de 37%. Fato alarmante!
“No Brasil, 19 milhões de pessoas que vivem em áreas urbanas não contam com água potável. Outras 21 milhões que vivem em áreas rurais também não têm acesso à água tratada. Além disso, apenas 46% dos domicílios brasileiros contam com coleta de esgoto.” __Funasa/Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento Básico – 2010
A cidade de Goiânia, capital do estado de Goiás, se destaca no cenário nacional por estar entre as dez cidades de melhor padrão de vida do país. Entretanto, a água fornecida pela companhia de tratamento de água de Goiás (SANEAGO), não pode ser consumida sem que água passe por um processo de filtragem e fervura dentro dos lares. Mesmo os setores mais tradicionais da capital não escapam da triste estatística de uma água suja e de má qualidade. Essa má qualidade da água fornecida à população não é privilégio somente de Goiânia, 84% dos municípios necessitam de investimentos para adequação de seus sistemas produtores. Os casos mais recentes de racionamento e falta d’água para a população de São Paulo, o estado mais rico da federação, ilustra a falta de investimento de infra-estrutura e a política de descaso para com esse serviço vital à população.
“O Norte e o Nordeste possuem, relativamente, as maiores necessidades de investimentos em sistemas produtores de água (mais de 59% das sedes urbanas). Chama a atenção a precariedade dos pequenos sistemas de abastecimento de água do Norte, a escassez hídrica no Semiárido e a baixa disponibilidade de água das bacias hidrográficas litorâneas do Nordeste. No Sudeste, os principais problemas decorrem da elevada concentração urbana e da complexidade dos sistemas produtores de abastecimento, que motivam, muitas vezes, disputas pelas mesmas fontes hídricas.” __Agência Nacional de Águas, 2011.
Em pleno século XXI encontramos várias cidades brasileiras aonde o serviço de coleta do lixo simplesmente é inexistente! Isso é alarmante quando vemos os dados oficiais sobre o crescimento na geração de lixo no Brasil que é da ordem de 29% entre 2003 e 2014. Por dia, o brasileiro gera, em média, 1,062 quilos de lixo. Na cidade de Guarulhos (SP) onde vivi por quase dois anos, é muito comum testemunhar o lixo doméstico sendo queimado nas calçadas de várias partes dessa cidade. Este problema é ainda mais agravante nas cidades do norte e do nordeste aonde a população descarta seu lixo nos terrenos baldios, logradouros públicos e nas calçadas das cidades.
“Das cerca de 10 mil toneladas de lixo produzidas diariamente no Pará, quase três mil toneladas deixam de ser recolhidas, ficando a céu aberto ou poluindo rios e mananciais. E o que é mais grave: não existe um só município paraense que disponha de aterro sanitário que atenda a todos os requisitos necessários.” Diário do Pará, 2010.
Assim como Belém, muitas cidades do norte e nordeste não possuem um sistema de seleção do lixo coletado. Em muitas dessas cidades, a ação da prefeitura não é integrada na coleta do lixo, e a grande maioria nem sequer possuem aterros sanitários. Em inúmeras cidades o lixo é deixado a céu aberto comprometendo à saúde publica e poluindo os mananciais hídricos da região. Vergonhosamente para nós, o maior depósito de lixo a céu aberto da América Latina está na capital do país. O “Lixão da Estrutural”, como é conhecido, surgiu logo após a inauguração da capital federal, nos anos 60 e ainda existe.
“A menos de 20 quilômetros do centro da capital do país, o Lixão da Estrutural continua em funcionamento. Com 124 hectares de área, o local recebe diariamente 2,7 mil toneladas de lixo, 70 mil toneladas por mês.” Agência do Brasil, 2014.
Como não poderia fugir à regra, o transporte público que deveria ser priorizado com o crescimento da população e a dilatação dos centros urbanos, também não escapa das horrorosas estatísticas do descaso e da má administração pública. O governo que deveria estimular e melhorar o transporte de massa como se faz em vários países, prefere incentivar o consumo do automóvel individual. Como sabemos essa política de incentivos fiscais para a aquisição de carros privados, ao invés do transporte de massa, obedece a um itinerário econômico de lucro para as montadoras e uma maior arrecadação de impostos para o governo. “Enquanto o transporte individual recebe isenções e subsídios da ordem de R$ 16 bilhões por ano, o transporte coletivo recebe R$ 2 bilhões (relação de 8 para 1).” __ANTP. Não precisa ser nenhum expert na área do urbanismo para descobrir que os malefícios do transporte individual são exponencialmente maiores do que o uso do transporte coletivo. Maior poluição, congestionamento, maiores gastos com manutenção dos veículos e das cidades, e muito pior para a saúde pública em geral.
”Os dados apresentados mostram a iniquidade e a insustentabilidade da política de mobilidade em vigor no Brasil. Suas consequências podem ser ainda piores caso haja um crescimento descontrolado do uso do transporte individual, o que é provável considerando as tendências hoje verificadas” __ Eduardo A. Vasconcellos - Diretor do Instituto Movimento de São Paulo e assessor da Associação Nacional dos Transportes Públicos (ANTP).
O nosso sistema de segurança que já demonstrou ser ineficaz, é corrupto e extremamente burocrático. A falta de segurança nas cidades brasileiras chegou a um ponto tão crítico que estudiosos do assunto já alertaram para o crescente desejo de certos grupos de “justiceiros” iniciarem um processo de “limpeza” nas cidades aonde o índice de insegurança e crimes urbanos extrapolaram em quilômetros as expectativas oficiais. A população sem qualquer poder de barganha nessa guerra entre grupos criminosos organizados, policiais corruptos e o poder do estado inoperante, se sente ameaçada e vulnerável em todos os lugares.
“Em todo o país, a taxa de crimes letais com intenção por parte de quem os comete cresceu 7,6% entre 2011 e 2012 e alcançou 50.108 casos. Trata-se de um recorde desde que o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) passou a contabilizar os números, em 2008.” __Revista Exame.
Nesse cenário de guerra urbana pelo controle do tráfico, assaltos e todo tipo de agressão à sociedade, três das nossas cidades figuram entre as dez cidades mais violentas do mundo. A ousadia dos criminosos aliada ao descaso da força policial é tamanha que em certos centros urbanos os marginais negociam a venda de drogas em frente às delegacias policiais. Todo esse carrossel de atrocidades contra a população, aliada à pressão cotidiana pela sobrevivência estão levando os habitantes de nossas cidades aos limites do stress e da desesperança. Muitas das nossas cidades que num passado recente eram sinônimos de bucolismo e tranquilidade, hoje se deparam com uma realidade dramaticamente diferente. A ineficácia do poder público de estabelecer uma ordem social a níveis aceitáveis, aliada a um comportamento de descumprimento das leis por parte do próprio estado de direito, leva a população a adotar o mesmo comportamento. Vivemos um momento no país de que tudo é permitido e cada um faz o que bem entende. A disfunção do sistema promove um comportamento social de descaso e de desrespeito escancarado às leis do país.
“O estudo mais recente do Conselho Cidadão para a Segurança Pública e Justiça Penal, uma Organização Não Governamental (ONG) do México, traz Maceió como a 2ª cidade mais violenta do Brasil. No mesmo estudo divulgado em 2014, a capital alagoana apresentava o maior número de homicídios no país. A primeira capital brasileira a aparecer na lista agora é João Pessoa, com 79,41 homicídios por 100 mil habitantes.” __G1, 2015.
Não importa o ângulo o qual observamos a situação das nossas cidades, a perspectiva dos vários ângulos nos levará a uma triste conclusão que as nossas cidades, há muito tempo, estão doentes e debilitadas nas suas atividades mais básicas. Essa condição de enfermidade influenciam seus habitantes diretamente numa maléfica simbiose. Apesar dos avanços registrados nos últimos 10 anos, observamos que as medidas adotadas pelo poder público, ainda tem sido paliativas, sem um programa nacional integrado e sem uma gestão totalmente transparente para corrigir os erros. Basta analisarmos o desempenho nas áreas de saúde pública e o programa Minha Casa Minha Vida que são programas federais. O programa MCMV que figura como o carro-chefe entre os programas do atual governo não escapa das estatísticas negativas. As diversas irregularidades registradas nesses assentamentos residenciais, aliado à falta de inspeção técnica adequada e falhas de gestão, acabam por manchar com nódoas um empreendimento tão importante e vital para a população brasileira. Apesar das estatísticas do governo apontarem para uma melhoria no sistema de saúde pública e no programa de habitação popular nos últimos anos, o Brasil ainda enfrenta duros desafios nessas duas áreas. Numa avaliação de qualidade de 0 a 10, o nosso SUS (Sistema de Único de Saúde) atingiu somente 5,5 na média nacional. Hospitais lotados, falta de médicos, falta de integração geral do sistema, falta de investimentos, falta de definição nas regras que regulam os serviços e a má gestão de recursos são os principais fatores que impedem que o sistema de saúde alcance um nível aceitável no atendimento à população. Com relação ao programa Minha Casa Minha Vida as irregularidades estão na construção de empreendimentos em áreas sem escolas e sem postos de saúde. Ou então, áreas de maior carência não sendo atendidas.
“Auditoria divulgada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) nesta semana constatou diversas falhas no Minha Casa, Minha Vida, uma das políticas públicas mais importantes do governo federal. Dentre as irregularidades estão empreendimentos construídos em regiões onde não há escolas e postos de saúde, obras entregues com problemas estruturais e regiões com maior carência habitacional que não estão sendo atendidas.” Folha Política, 2014.
Como não poderia deixar de ser, esses problemas e entraves acabam por afetar diretamente as nossas comunidades, moldando um comportamento de falta de esperança e de desrespeito em cada cidadão. Essas premissas básicas que movem as pessoas e fazem avançar a sociedade, são simplesmente negligenciados nos investimentos públicos. Quando a população se sente abandonada, desrespeitada e atormentada cotidianamente pelas penúria do meio em que vive, o resultado natural e a revolta e desobediência às leis. Não é justamente o que vimos todos os dias em nossas cidades? Basta olharmos ao nosso redor para vermos que a disfunção social está por toda as partes. Existe um consenso generalizado de desrespeito às leis de trânsito, à lei do silêncio e sobre tudo o desrespeito pelo os bens públicos. Você já observou como as pessoas estacionam seus carros em todos os espaços possíveis em nossas cidades? Os cruzamentos de pedestres, calçadas, canteiros de jardim, as praças e seus monumentos já se tornaram estacionamentos públicos, e o pior, é que os órgãos responsáveis pela fiscalização e punição são inoperantes e omissos. O mesmo acontece com relação ao direito de sossego das pessoas. Esse direito simplesmente é inexistentes nas cidades brasileiras. Qualquer cidadão se sente no direito de desrespeitar o silencio público sem que haja qualquer consequência de fato. Morar nas nossas cidades se tornou um desafio constante. Por isso, as classes mais abastadas se mudaram para os condomínios fechados horizontais. Além do conforto encontrado, essas pessoas podem desfrutar do sossego e da segurança. Ao contrário das sociedades mais evoluídas, nós somos obrigados a viver em células fechadas a fim de assegurar as coisas mais básicas para se viver bem.
Como arquiteto tenho uma imensa preocupação com tudo isso. Porque as sociedades são constituídas de pessoas e do ambiente urbano. É das ações humanas que construímos e progredimos. É o conjunto de ações proveniente das pessoas que moldam também as sociedades e isso se reflete como construímos nossas casas, nossos bairros e nossas cidades. Se esse conjunto de ações humanas está infectado de alguma forma por algo doentio, é inevitável que as nossas cidades estejam infectadas também. Essa relação de homem – cidade é tão vital na construção das sociedades que sem isso não existiria história. Não teríamos passado, e consequentemente, não haveria futuro! Por isso quando estudamos a história dos homens, a história das cidades estão intrínsecas nas narrativas e nas representações gráficas em diversas formas. Essa relação é tão marcante que molda até como as pessoas se comunicam. Não vejo um melhor exemplo disso do que a Alemanha antes e depois da segunda guerra mundial. As atrocidades da guerra criaram feridas tão profundas na sociedade alemã que transformaram até como seus cidadãos se comunicam e como respeitam o direito individual.
Então por que a nossa realidade social urbana não muda? Por que tudo isso perdura, se a maioria da população se sente prejudicada e afetada por esse estado de coisas? Poderíamos listar aqui uma série de fatores determinantes. Porém no fritar dos ovos, o problema tem como raiz uma só origem: é que alguém se beneficia desse caos urbano e desse disfunção generalizada! Essa afirmação pode parecer insana e absurda, mas é a pura e triste verdade. Podemos fazer uma simples e rápida simulação de um cenário imaginário para que possamos entender como a coisa realmente funciona e quem é quem nesse jogo. Imaginem se a classe dominante, a qual está no topo da pirâmide e que detém 97% da riqueza do país tivesse que andar de transporte público, utilizar o SUS, viver em moradias do programa Minha Casa Minha Vida e fazer suas compras uma vez por mês no mercadinho do “Zé Barato”. Do outro lado da moeda, imaginemos se a classe trabalhadora que produz 97% dos bens de consumo e que gera consequentemente 97% da riqueza do país tivesse acesso aos carros mais caros produzidos no mundo, tivesse plano de saúde da Healthways ou da Gold Cross, vivesse em moradias de condomínios Alphaville espalhados pelo país e realizasse suas compras diárias no Mayfair ou Harrods em Londres?
Certamente a nossa realidade seria dramaticamente diferente. Não porque mais gente teria acesso aos “goods” ou bens de consumo produzidos no país. Não é isso. Seria radicalmente diferente porque a classe dominante jamais aceitaria para ela, a mesma realidade na qual 97% da população vive! Dessa maneira podemos facilmente deduzir que não é interessante para a nata política e as classes A1 e A2, que dominam toda economia nacional, transformar essa realidade. Isso porque são eles, os grandes beneficiados indubitavelmente dessa realidade doentia. A classe dominante articula de todas as formas para manter o status quo presente. Com uma população desorganizada, desenformada e alienada esse jogo fica muito fácil de ser manipulado por quem sempre deteve o poder.
O que fazer diante de um quadro de caos generalizado e falta de sincronia na administração de nossas cidades? Como podemos reverter esse triste quadro de balbúrdia e anarquia generalizada? Eu acredito que só existe um caminho possível: o caminho da participação organizada de seus cidadãos na reivindicação de seus direitos. Sem esse exercício e sem a participação de todos estaremos caminhando para um estado cada vez pior de nossas instituições e de nossas cidades. Como cidadãos e profissionais devemos exercer uma função fiscalizadora da ação do poder público. E mais importante, devemos atuar de alguma forma para que essa realidade se transforme e melhore as condições de vida da população. Seja essa ação através de comitês sociais, organizações não governamentais e até mesmo através de canais políticos. Somente através de uma participação ativa defendendo os interesses sociais e a constante melhoria dos serviços urbanos é que iremos atingir um novo patamar de justiça social e bem estar para todos. Só assim resgataremos nossas cidades das mazelas que afligem as pessoas e do modo maléfico como vivemos.
Arq. Avelino Neto