AS FERAS DA SELVA

Por Paulo Valença | 07/11/2009 | Contos

 

Há quantos dias ele estacionava o carro e sentando-se à mesa, na entrada do restaurante, chamava-me, acenando com a mão?

            Solícito, atendia-o:

            - Às ordens.

            - Um uísque do melhor e um pratinho com lagostas.

            - Pois não.

            Então, dirigindo-me em sentido da abertura em formato de janelinha, pedia:

            - Gordo, um prato com lagostas.

           Enquanto este providenciava o solicitado, ia atender ao novo freguês que acabara de chegar.

           Disfarçando, eu analisava o primeiro freguês. Calmo, bem vestido, com aparência. Por que, apesar de procurar não demonstrar, ele não desviava os olhos do edifício na esquina? Contudo, dever-me-ia apenas me limitar ao trabalho, para que depois não ouvisse reclamação do gerente. Retornava à janelinha:

            - As lagostas estão prontas? Apressa isso, Gordo.

            Sorrindo, ele buscava me aquietar:

            - Estão quase prontas.

           Contendo-me na impaciência, fazia com a mão gesto ao primeiro freguês, para que esperasse mais um pouco e, voltando-me ao Gordo:

            - Chego já.

            Em seguida, ia ao balcão próximo:

            - Uma dose do melhor uísque.

            Em sinal com a cabeça, aquiescendo, Ivan retirava o litro, de sob o balcão.

           Fora, a noite despontava. As lâmpadas clareavam o prédio. À mesa na entrada, o homem também fixava a iluminação.

          Sob a falsa tensão contida, ele mostrava-se sereno. Ou tudo não passava de minha impressão?  Contestava-me. Não, devido à experiência, entendia-o, ele planejava algo.

            - Colega, o uísque.

           Pondo o copo na bandeja, outra vez dirigia-me à janelinha:

            - O prato ficou pronto, Gordo?

            - Ficou. Segura.

            Sorrindo, eu gracejava:

          - Você é um cara arretado!

           Com o uísque e as lagostas na bandeja, novamente cruzando o salão, aproximava-me do sujeito com a discreta atenção no edifício.

         O que ele planejava, em silêncio? Indagava-me outra vez, e sentia um estranho pressentimento.

            - O pedido, senhor.

            Ele, sem desviar o olhar do prédio:

            - Obrigado rapaz.

          Então, devagar afastando o braço de sobre a mesa, permitia que eu pusesse o copo e o prato. Depois, apressado, retirava-me, indo saber o que desejava o casal que acabara de se sentar.

            O movimento crescia. A noite adiantava-se. E, assim servindo mesas, eu a atravessaria.

 

           

- O que tem valor na vida, é o dinheiro. Pode se ser bonito, inteligente, trabalhador... Mas, se não tiver dinheiro, posição social, não se é nada!

          Dizia o meu pai, sofrendo. Naquela época, eu, menino, escutava-o. E me prometia de que, um dia, seria rico, com posição social – o que seria isso? – tornar-me-ia igual ao doutor Maciel, que sendo rico, era respeitado por todos.

            - De que me valeu ter sido trabalhador, procurar andar sempre na linha, ser honesto? O que fiz? O que a minha família tem?

            Minha mãe então tentava vencer-lhe o pessimismo:

            - Tem paciência, Oscar. Todos passam por crises, principalmente agora, com essa mudança de governo.

            Com a voz alterada pela bebida e contrariedade, ele retrucava:

            - É tão fácil se dizer: “Tenha paciência!” Acontece que estou desempregado, nervoso.

            Compreensiva, ela nada mais dizia e, com as lágrimas nas faces morenas e percebendo-me:

            - Meu filho, vá brincar na calçada.

            Atendia-lhe. Na rua, outra vez me prometia de que, quando homem, um dia, seria rico.     

                      

            Essas cenas – passe o tempo que passar – a gente não às esquece, de repente, elas retornam, para nos fazer novamente sofrer.

            Hoje, aos cinqüenta e quatro anos, o rosto largo marcado por rugas, a cabeça grisalha, gordo, continuo pensativo. Contudo, realista. Ou melhor, calculista, como já me definiram.

            Possuo dinheiro, posição social – hoje sei o que isso significa – e, à semelhança do doutor Maciel, sou respeitado, e invejado. Respeitado principalmente pelas funcionárias da minha indústria, entre as quais, escolho para amantes.

            Toda vez que me embriago curto o passado, como se o recordando, sentisse-me realizado. Contudo, não o sou? O que desejo não consigo? Dinheiro, mulheres, status?

            Tento me levantar desta cama e retornar à vida de senhor casado, e industrial. Ao meu lado, está a jovem, que ressona adormecida. Exausta pela noite pecaminosa que desfrutamos após o jantar no restaurante recém-inaugurado à beira-mar, ponto de encontro dos agraciados pela vida. O rosto afilado, sereno. Os cabelos negros, longos. Tão bonita!

            Entendo-a: sai comigo porque sou o patrão. Teme perder o emprego, com o qual se mantém e também sustenta o pai paraplégico e a mãe sempre adoentada.

            Em troca da colocação, presentes, e dinheiro recebido como se tivesse feito horas extras, prostitui-se. Porém, reflito: quem neste mundo, também não se vende? Sim, todos temos um preço. Assim é que funciona...

            Ela, de repente desperta:

            - Acordado, meu gordinho?

            Então, alisando-lhe o braço longo, de pele aveludada, respondo, sorrindo:

            - Acordei agorinha.

            Feminina, ela então vem para cima de mim:

            - Não queres não, meu gordinho “fofura?”.

            - Claro que quero.

            Aí, com os braços curtos e grossos, envolvo-lhe as costas, trazendo-a.

            Dando gritinhos, ela se entrega vencida.

 

           

“Meu gordinho fofura”, ele acreditava que eu lhe era sincera? Hoje, que me acho vivida, sei que não acreditava. Contudo, como era vaidoso, intimamente, desejava acreditar, autopromover-se diante da funcionária graciosa, e amante.

            Havia instantes nos quais me perguntava: Até quando me manteria vivendo daquela maneira? Por que não lutava para sair da lama que me aprisionava? Contudo, tentara novo emprego e não o conseguira... Então, enquanto a nova opção pela sobrevivência – e dos meus pais – não surgia, continuava sendo amante do homem baixo, gordo, repelente.

            Portanto, a cada “transa amorosa”, depois de satisfazer-lhe as taras, sentia-me violentada e, chorava baixinho, humilhada.

            Numa dessas vezes, ele indagou:

            - Por que você está sempre chorando? Algum problema, “gata?”.

            Baixando a voz, prosseguiu falando:

            - Vá, desembuche com o seu “gordinho”. Você sabe que pode contar comigo.

            Entregue ao que sentia, mal pude responder:

            - Nada não.

            - E, por que chora?

            - Nada.

            - Está bem, você não quer dizer. Mas, se acalme.

            Ergueu-se. Com a vista embaçada pelas lágrimas, outra vez o analisei. Branco, baixo, entroncado, o rosto largo, de papada, a cabeleira cheia, grisalha, os braços curtos, cheios. A barriga grande. As perninhas... Mesmo sofrendo, sorri, ridicularizando-o.

            Como se notasse ser observado, ele de repente se virou e, mantendo o sorriso, voltou a falar:

            - Essa minha cabeça! “Gata”, você irá pra outra seção. Foi promovida. Ganhará mais. Não me olhe assim: você é inteligente, e competente, merece. Mas, está tarde, se apresse. Vamos indo.

            À semelhança de um animal ferido, com vagar, ergui-me. Enxuguei as faces e, logo estávamos no automóvel.

            Ligando o veículo, me fitou, com ar vitorioso. Provavelmente, sentindo-se realizado na vida.

            Fugi o rosto, e fitei minhas mãos morenas, de dedos longos.

            O carro partiu em velocidade.

 

           

O sarará contratou o meu “serviço”. Como sempre, perguntei-lhe somente o necessário sobre quem mandaria deste para o outro mundo.

            Em minha profissão, a discrição é muito importante. O que realmente me interessa é receber pelo que executo. E, como de praxe, recebi a metade, e a outra, receberia-a depois de concluído o “serviço”.

            Pondo o pacote na mesa, ao centro da sala, ele se dirigindo à porta, falou:

            - Aguardo notícias.

            - Você as terá. Fique “frio”.

            Segurando o trinco, ele voltando-se:

            - Faça o “serviço” e será recompensado. O patrão sabe reconhecer e gratificar. Ciao!

            Saiu. Fechei a porta. Contei o dinheiro, certificando-me. Depois, assoviando, satisfeito, o guardei no cofre, de onde retirei a arma, a qual com vagar comecei a limpar.

            Amanhã, me acharia no restaurante, com disfarce, olhando o edifício onde reside o senhor “encomendado”.

            Lá me encontraria, analisando tudo, em detalhes, pois sou profissional. Tomando uísque com lagostas, esperaria o instante exato para entrar em ação, mesmo que, para isso, levasse dias.

            Polia a arma, que, recebendo a claridade do teto, libertava estranhos reflexos.

 

           

Foi assim: depois que pagou a conta, ele se encaminhou ao automóvel, ali estacionado no meio-fio e, dentro deste, fez os disparos quando o “coroa” - que segundo comentários, era um rico industrial - saiu do carro.

            Depois, ele fugiu no veículo, em velocidade. Então, como sempre acontece, de repente, apareceram os curiosos, que formaram o círculo em torno do caído, que aos poucos ia morrendo.

            Também curioso, avizinhei-me. Contudo, de súbito, refletindo melhor, temendo mais tarde, servir como testemunha, envolver-me com problemas, retrocedi ao restaurante.

            Sim, nossa vida é repleta de desagradáveis surpresas, e temos de saber nos defender nessa selva traiçoeira.

            Bem que eu desconfiava do sujeito calmo,

bem vestido que se sentando à mesa na entrada do restaurante, acompanhava com discrição, o movimento do edifício à esquina.

            Ele aguardava o instante propício para agir. Matar...

            De repente, ouço:

            - Garçom!

            Alguém me chama. Desperto à realidade, encaminho-me à mesa, na entrada do recinto, na qual se encontra o homem bem vestido.

            Na esquina, o edifício mais uma vez se ilumina.

            - Às ordens.

            - Um uísque e um pratinho com lagostas grelhadas.

            - Pois não.

            Ele – parece-me – estuda o prédio.

            Encaminhando-me à janelinha, inesperadamente me indago:

            - Será que... Tudo irá recomeçar?

            Na pequena abertura, o rosto gordo espera-me, sorrindo. Então, como na vez anterior, faço o mesmo pedido.

 

Recife, 21/10/2004.