AS COTAS PARA NEGROS NAS UNIVERSIDADES: uma discussão acerca das políticas de ação afirmativa
Por HUMBERTO MENDES NASCIMENTO | 22/11/2014 | DireitoAS COTAS PARA NEGROS NAS UNIVERSIDADES: uma discussão acerca das políticas de ação afirmativa[1]
Heitor Ferreira de Carvalho[2]
Humberto Mendes Nascimento[3]
Kátia Núbia Ferreira Corrêa[4]
Sumário: Introdução. 2. Nas trilhas da Escravidão. 3. A Negritude no instante da construção da República. 4. A Produção Científica e o Racismo. 5. As Desigualdades Sociais e Raciais no Brasil no final do Século XX; 6. As Cotas e as Políticas de Ação Afirmativa. Considerações finais. Referências.
Resumo: A história testemunha a construção do processo de marginalização política, social, econômica e cultural que sofreram, e ainda sofrem as populações afrodescendentes no Brasil pós-Abolição. A idealização da discussão racial obrigatoriamente sugere a análise das implicações do racismo diante dos negros, nos diversos indicadores sociais, para compreender de que forma a política de ação afirmativa, como fenômeno recente da política nacional, pode contribuir para amenizar uma cultura de discriminação histórica ou, ao contrário, agravar as matizes de discriminação que se sustentam camufladas nas relações estabelecidas na sociedade brasileira.
Palavras-chave: Cotas. Universidade. Relações Sociais. Racismo. Ação Afirmativa
Abstract: The history testifies the establishment of the political, economic and cultural marginalized condition that the afro-descendant people suffered in Brazil after the abolition law was released and still suffer nowadays. The ratial discution idealization compulsorily suggests a study of the racism implications beyond the nigers in a variety of social indexes to comprehend in which way the affirmative action politics, as national recent political phenomenon, can contribute to relief a culture of historical discrimination or, on the contrary, to worsen the angles of the discrimination which are supported and disguised by the relations established in the brazilian society.
Keyword: Quote. University. Social Relations. Racism. Afirmative Action.
INTRODUÇÃO
A natureza do debate que o país realiza a respeito das questões raciais traduz uma problemática clássica da sociedade brasileira. A questão da natureza reprodutora das práticas racistas contra as populações afrodescendentes é marcada na linha da história pela institucionalização da escravidão e, por consequência, pela ideia de que o escravo era desprovido de qualquer capacidade, como também, da condição de ser civilizado. Portanto, jamais apto a viver em sociedade como cidadão, sendo marginalizado à condição de homem de segunda classe.
A proposta apresentada reside na dinâmica de traduzir na análise das relações sociais no Brasil os elementos teóricos que sustentam a prática do racismo, como essa prática se oculta nas instituições e políticas públicas e por qual razão, mesmo sendo colocadas na ordem do dia, as discussões sobre as questões raciais, não tem tido avanços no sentido de minimizar as distâncias sociais e culturais de reconhecimento das populações afrodescendentes no Brasil.
Com esse propósito, partir-se-á do simbolismo da escravidão para alcançar a construção da cidadania na Proclamação da República, em fins do século XIX, pontuando as limitações de acesso aos bens públicos como instrumento fomentador da reprodução da ideia de exclusão, a inserção assistida de alguns negros que conseguiram penetrar no seleto grupo dos eleitos na sociedade dita branca e os ideais de branqueamento que pensaram em eliminar a matriz africana do contexto da montagem da civilização brasileira.
A discussão das políticas de ações afirmativas nos dias atuais se propõe a fazer a desmistificação do ideário da sociedade sustentado no conceito de raça baseado na cor da pele, da categorização racial, onde a face de pureza reside no mundo dos brancos, assim como, da forma como ele se ramifica por todos os espaços sociais, políticos, econômicos e culturais e se oculta por traz de um discurso de inclusão e igualdade e diálogo social.
Os desafios para a democracia no Brasil passam pelo rompimento com o paradigma racista que fundamenta a atual noção de relações raciais. Isto significa refletir a justiça social, a igualdade de oportunidades no emprego e na educação para os afro-brasileiros enquanto parâmetro fundamental para a democracia no Brasil. (ALBERTO, 2000, p. 298).
2 NAS TRILHAS DA ESCRAVIDÃO
A montagem do sistema escravista, instituída pelos lusitanos no período colonial como negócio lucrativo que se confundia com a dinâmica da lavoura açucareira, promoveu a inserção da massa de escravos que contribuiria para a formação da cultura social da miscigenação, entendida por muitos como uma degeneração racial e social aos olhos da pureza da sociedade branca da Europa.
A forma como o trabalho compulsório condenava os escravos à condição de degradação humana e a sua simbologia sustentavam a inferiorização dessa massa de mão-de-obra, impondo-lhe a noção de mercadoria, sem vontade própria e nenhum tipo de capacidade ou virtude que não fosse a obediência e a servidão.
O viajante alemão Freyreiss, que visitou a Bahia em meados do século XIX, deixou essa descrição de um mercado de escravos: ‘Os escravos, apinhados às centenas num barracão, estão sumariamente cobertos com um pedaço de pano ou de lã que trazem à cintura. Por uma questão de higiene, têm os cabelos raspados. Assim, nus e pelados, sentados no chão, observando, curiosos, os transeuntes, pouco se diferenciam, aparentemente, dos macacos [...]. Vários deles chegam da África já marcados de ferro em brasa, como animais’. (MATTOSO, 2003, p. 66).
O trato com o cativo era um imperativo, uma vez que representava o maior investimento dos engenhos e seu comércio o mais lucrativo da colônia, sendo mão-de-obra consumível em média de quatro anos de trabalho intenso e desgastante, sujeita a castigo e tortura, seu porte e estado aparente de saúde era o que mais se observava na compra.
O negro deve ser apresentado ao comprador no seu melhor estado físico e até mesmo moral, pois trata-se de comércio, uma transação séria com aquela mercadoria que pode mudar de aparência e cuja saúde é o terreno em que se jogam os dados da avaliação todo processo de fixação do seu preço. Assim, o cativo é sempre bem cuidado e posto à engorda antes de ser vendido. (MATTOSO, 2003, p. 65-66).
Tratados como mercadorias, entendidos como incapazes, confundidos com animais, sem vida e discernimento próprio, consumidos pelo trabalho degradante e sujeitos a todo tipo de violência, inclusive a de natureza moral, os negros escravizados estavam completamente à margem de todo processo de reconhecimento e de valoração. Por todo o período colonial e imperial os cativos tiveram esse tratamento, sedimentando as justificativas de sua inferiorização. Portanto, como pensar que o movimento abolicionista e a Proclamação da República seriam responsáveis por subtrair da consciência da elite brasileira, que prima pelo controle social, a ideia degenerativa dos negros?
3 A NEGRITUDE NO INSTANTE DA CONSTRUÇÃO DA REPÚBLICA
Duas questões são levantadas por essa problemática: o encanto pelo modelo de vida da Europa e a carga da escravidão como obstáculo para a modernização política do país. Nos dois casos a figura do ser negro foi colocada à margem do processo da construção da nação. A primeira trata, por exemplo, a miscigenação como problema social de natureza grave, pois, quanto mais miscigenado fosse o povo brasileiro mais distante estaria do ideário de brancura e de civilização da Europa. A segunda, como retórica de ajustamento ao movimento de consolidação de Repúblicas no continente americano, traduz a montagem de um conceito de igualdade e de cidadania que é primoroso de ler, mas doloroso de verificar no trato das relações sociais mais elementares da sociedade brasileira.
Os escravos recém-libertados incorporaram-se à estrutura social, multirracial e paternalista, que de há muito ensinara aos homens livres de cor os hábitos de deferência no trato com empregadores a outros superiores sociais [...] as relações raciais prosseguiram, depois da abolição. (SKIDMORE, 1989, p. 55).
A escravidão, portanto, manteve ex-escravos, na construção do espaço social republicano, os sistemas de discriminação social e racial dos afrodescendentes, sendo estes representantes na consciência da elite branca brasileira de uma figura de segunda classe.
A cor da pele, a textura do cabelo, e outros sinais físicos visíveis determinavam a categoria racial em que a pessoa era posta por aqueles que ficavam conhecendo. A reação do observador podia ser também influenciada pela aparente riqueza ou provável status social da pessoa julgada, então, pelas roupas e pelos seus amigos. Donde o cínico adágio brasileiro: “dinheiro branqueia”. (SKIDMORE, 1989, p. 55).
O ordenamento social republicano depositava nas populações afrodescendentes a tese do atraso civilizatório brasileiro, fato que motivou a intelectualidade a discutir as questões raciais, no momento da busca de uma identidade cultural própria. Dessa forma, promoveu a construção do “ideal de branqueamento”, agora com o desejo usar a miscigenação para clarear a população brasileira e diluir a população negra remanescente no prazo de 50 anos.
A tese do branqueamento baseava-se na presunção da superioridade branca, às vezes, pelo uso dos eufemismos raças ‘mais adiantadas’ e ‘menos adiantadas’ e pelo fato de ficar em aberto a questão de ser a inferioridade inata [...]. Primeiro – a população negra diminuía progressivamente em ralação à branca por motivos que incluíam a suposta taxa de natalidade mais baixa [...]. Segundo – a miscigenação produzia naturalmente uma população mais clara, em parte porque o gene branco era mais forte e em parte porque as pessoas procurassem parceiros mais claros do que elas. [...] a miscigenação não produzia inevitavelmente degenerados, mas uma população mestiça sadia capaz de tornar-se sempre mais branca, tanto cultural quanto fisicamente. (SKIDMORE, 1989, p. 81).
Corrobora, também, com tal premissa, estimulada ao longo do século XIX, consolidada e ainda mais forte no século XX, a migração de europeus, a princípio, para reforçar as lavouras de café e, ainda, desbravar a região sul do país criando novos caminhos econômicos.
Em junho de 1946, o Decreto nº. 7.967 ratificou o caráter racista das políticas imigratórias européias ao estabelecer que ‘os imigrantes serão admitidos de conformidade com a necessidade de preservar e desenvolver o Brasil na composição de sua ascendência européia’. (ALBERTO, 2000, p. 286)
4 A PRODUÇÃO CIENTÍFICA E O RACISMO
A produção científica, no entanto, estava envolvida com o propósito do ideal do branqueamento, o que reforça o pensamento que durante o instante da Proclamação da República e nos anos seguintes. A cidadania pregada no discurso democrático era fictícia e o que existia era um sistema de violência racista simbólico muito articulado com as instituições políticas e científicas, no sentido de controlar e limitar as ações das populações afrodescendentes.
A força da imagem da figura do “mulato” corroborou com essa tese, não era nem negro e nem branco, uma matriz intermediária que servia para negar na sua plenitude o gene negro africano. Vejamos o pensamento do mulato Nina Rodrigues, citado por Thomas Skidmore,
Nina Rodrigues foi o primeiro pesquisador a estudar a influência africana de maneira sistemática [...] . [Ele] explicava [...] que a inferioridade do africano fora estabelecida fora de qualquer dúvida científica. Em 1894, desprezou como sentimental a noção de que um ‘representante das raças inferiores’ pudesse atingir através da inteligência, ‘o elevado grau a que chegaram as raças superiores’ [...] produziu uma justificação teórica perfeita e acabada da impossibilidade de considerar um ex-escravo capaz do comportamento ‘civilizado’. (SKIDMORE, 1989, p. 75-76).
Indiscutivelmente, o comprometimento da produção científica no inicio do século XX com as práticas racistas, pondo em contradição todo processo de modernização política democrática que o discurso republicano enfatizava, carregava o fardo da negritude. No entanto, a resistência pode ser vista na figura de negros como: João Cândido, líder da Revolta da Chibata na Marinha Brasileira, contra os castigos impostos aos negros; Abdias do Nascimento, ativista político e até Senador da República, fundador da Frente Negra Brasileira; experiências como o Teatro Experimental do Negro – TEN – na década de 40, que ao passo que apresentava um canal de expressão do potencial cultural da negritude, construiu o principal instrumento de comunicação da vida, dos problemas e aspirações do negro; o “Jornal Quilombo”, onde a intelectualidade contrária as propostas racistas, como ideal de branqueamento, escreviam, a exemplo de Gilberto Freyre e Guerreiro Ramos, este figura da máxima intelectualidade do século XX no Brasil, que emblematicamente serviu ao propósito dessa discussão.
No pós-guerra, a grande novidade que representou a vulgarização do conceito de ‘cultura’, cunhado pelas ciências sociais, em detrimento do conceito biológico de ‘raça’, será a de negar o caráter irreversível da inferioridade intelectual, moral e psicológica dos negros. Não a de negar tal inferioridade, senão de transferi-la para o plano da cultura, tornando-a passageira e reversível. No nível do senso comum, a desmoralização da ideia de raça não significará o fim imediato dos esteriótipos que atingiam a população negra – estes se manterão razoavelmente intactos, perdendo o ser caráter de imutabilidade -; representará, isto sim, uma arma poderosa de incorporação dos mestiços – mulatos, pardos, principalmente morenos – aos espaços econômico, simbólico e ideológico da nação (incluindo aí a reivindicação de direitos civis e sociais). O TEN atuará no sentido de ampliação desses espaços, para aí incluir o negro. (GUIMARÃES, 2006, p. 80).
No século XX, a teoria que mais serviu contra o nascer de uma postura de construção de uma identidade política, cultural, social e racial da negritude, pensada por Gilberto Freyre, sociólogo da escola do Recife, foi conhecida como “O Mito da Democracia Racial”, que dentre outras discussões tratava da verificação de relações raciais harmônicas entre negros e brancos no Brasil.
Muitas correntes de pesquisas se multiplicaram nas universidades, construídas a partir de 1930 no país pelo governo Vargas. Era o momento de consolidar definitivamente uma identidade nacional brasileira. O Brasil deveria servir à América e ao mundo com um modelo social democrático e antirracista, sobretudo, pela difusão do Estado de Exceção Totalitário Racista Nazista.
“O Mito da Democracia Racial”, apresentado na obra “Casa Grande & Senzala”, de Gilberto Freire, serviu, portanto, de refúgio para todo sistema de exclusão simbólico de inferiorização dos negros e, ainda, como aconteceu no início do século, com o ideal de branqueamento, criou escola na pesquisa brasileira reforçando as barreiras para que as universidades pudessem contribuir no sentido de desfazer as convicções equivocadas acerca da capacidade das populações afrodescendentes.
No conjunto, o livro demonstra que o branco não tem consciência clara da situação racial imperante na cidade. Mascara a realidade, porque não se sente prejudicado ou ameaçado, direta ou indiretamente, pela presença de pouco mais de 10% de negros e mulatos na população global. Entretém os enganos e o farisaísmo da ideologia e das utopias raciais, construídas no passado e sob a égide da escravidão, como se fosse possível combinar o “espírito cristão” com a ignorância da pessoa, dos interesses e dos valores do “outro”. Apega-se e mantém, assim, o preconceito de não ter preconceito, limitando-se a tratar o “negro” com tolerância, entretendo o velho cerimonial de polidez nas relações entre “pessoas de raças diferentes” e excluindo dessa tolerância qualquer sentido ou conteúdo propriamente igualitário. (FERNANDES, 2007, p. 200).
5 AS DESIGULDADES SOCIAIS E RACIAIS NO BRASIL NO FINAL DO SÉCULO XX
A história da ciência no século XX no Brasil, portanto, conviveu e reproduziu essa perspectiva do reforço à exclusão social dos negros e a tese do sociólogo Gilberto Freyre de harmonia racial, não aponta para outro caminho a não ser o do rígido controle social das manifestações políticas e culturais dessas populações que eram vistas sempre no segundo plano das políticas públicas do Estado.
Em geral, os indicadores sociais do final do século XX, fornecidos pelo IBGE apontam para o que podemos chamar de “tragédia social”.
O que esta plêiade de indicadores demonstra é a existência de uma extrema coerência entre dados no seguinte sentido: i) seja qual for o indicador escolhido para analisar as desigualdades raciais, em todos eles os negros encontram-se em uma situação pior do que os brancos; ii) seja qual for a região do país, os indicadores sociais e demográficos dos negros são menos favoráveis que os indicadores dos brancos; iii) mesmo quando se desagregam estes dados por gênero, o que se vê é que os homens brancos estão em melhor situação que as mulheres brancas, que estão em condições mais favoráveis que os homens negros, que estão em situação menos grave que as mulheres negras. (PAIXÃO, 2003, p. 80).
Quando se localizam nos indicadores do Censo os níveis de escolaridade comparados ao Índice de Desenvolvimento Humano – IDH, chega-se à conclusão,
De todo modo vale observar que: i) as disparidades raciais na educação brasileira seguiam sendo extremamente acentuadas no final dos anos 1990, sendo que a taxa de analfabetismo da população negra maior de 15 anos, em 1999, era mais do que o dobro do que a taxa de analfabetismo da população branca na mesma faixa etária (respectivamente 19,8% e 8,3%) [...]; ii) o fato de ter ocorrido uma evolução positiva no índice de escolarização da população como um todo, e dos negros em particular – daí refletindo-se no próprio IDH destes dois grupos – não é sinônimo de uma idêntica elevação da qualidade do ensino. Ou, antes, é forçoso reconhecer que se os anos 1990 foram marcados pela expansão das taxas de matrícula, por outro lado esta universalização se fez acompanhar por uma redução geral da qualidade do ensino. [...] o Brasil começa o século XXI tendo seu contingente branco gozando a situação de um IDH alto, ao passo que os negros penam com a situação de um IDH médio-baixo. (PAIXÃO, 2003, p. 85-86).
Não se verificou durante o passar do século XX algum sinal eficiente e significativo de movimentos dispostos a discutir as questões raciais, no sentido de levar o Estado a aplicar um plano sistemático de inclusão da população afrodescendente. Por esta razão, na política pública, mesmo com a existência de um orçamento maior voltado para mecanismos de assistência das populações menos favorecidas, não se tem observado um relativo movimento voltado para a inclusão social e política do grupo em questão.
6 AS COTAS E AS POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA
A população afrodescendente já representa a metade da população brasileira. No entanto, esta não é articulada no jogo democrático para buscar representatividade e reivindicar mais espaço na política e na sociedade, em razão de ter sido tirado na construção da atmosfera republicana o direito do negro gozar da cidadania plena. Assim, como pensar que nestes anos iniciais do século XXI, as políticas de ação afirmativa fossem de todo eficientes para equacionar esta dívida social brasileira, sobre o qual repousa nossa identidade e o espírito do pleno exercício democrático?
A Lei nº. 10.639/03 constitui um exemplo desse processo, por determinar que fosse incluído no currículo das escolas, o ensino da História da África e da História e Cultura Afro-Brasileira, como preâmbulo para reafirmar a cultura miscigenada que marca as identidades nacionais em toda a América. Ela determina, por sua vez, que a Educação Básica contemple essa perspectiva, muito embora ainda não haja essa obrigatoriedade nas instituições de ensino superior, espaços formadores do educador que conduzirá o processo ensino-aprendizagem da modalidade determinada pela lei. Consequentemente, este é um dos problemas que fazem com que a escola, não consiga superar a cultura do preconceito racial, sendo levada a reproduzir mais discriminação, sobretudo, porque os educadores, em sua grande maioria, não tem sensibilidade para tocar nesse assunto.
Art. 26-A Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras. (BRASIL, 2003, p. 1).
A lei enfatiza o conteúdo e a educação básica, não observando que no ensino superior, a discriminação, é bem mais significativa e sustentada em escolas de pesquisa, o que impede mais do que em qualquer outra experiência a legitimidade da voz das populações afrodescendentes.
Revela-se agora o quanto nossa classe acadêmica esteve impune pela exclusão racial que se instalou no nosso meio desde a consolidação das primeiras universidades na década de trinta. É a essa impunidade e a esse silenciamento crônicos que dou o nome de racismo acadêmico [...] discutir cotas é repensar e avaliar a função social da universidade pública. Gerida por meio de verbas do Estado, a universidade deveria formar lideranças que representassem à diversidade étnica e racial do país. (...) Contudo, em um país de 47% de população de negros (pretos e pardos segundo o IBGE), o contingente de estudantes negros não passa de 10% e o de docentes é menor que 1%. (CARVALHO, 2005, p. 83).
Observa-se que a negligência do século XX em não enfrentar as discussões das questões raciais, consolidou uma cultura racista tão desagregadora quanto os mecanismos da escravidão no mundo colonial e imperial brasileiro. A política de cotas, ao mesmo tempo em que coloca na ordem do dia a reflexão sobre as questões raciais, torna visível a relação de causalidade, onde a desigualdade racial confunde-se com desigualdade social.
As cotas, assim, podem servir de meio para equilibrar o acesso dos afrodescendentes no mundo acadêmico, porém, por todos os esforços empreendidos, o cenário é desestimulante, uma vez que somente 10% dos estudantes das universidades são afrodescendentes. Nesse espaço, estes são somente vozes condenadas ao ruído, diante de 90% da população universitária de brancos. As cotas para alunos representaria, enquanto medida de ação afirmativa, um caminho eficiente para combater aquilo que o PhD em Antropologia da Universidade de Brasília, José Jorge de Carvalho, chama de “racismo acadêmico”.
Sustento que só conseguiremos entender porque há tão poucos negros na universidade hoje se analisarmos a pirâmide do mundo acadêmico pelo topo e não só pela base. O foco da reprodução ou da mudança do sistema não está no perfil racial dos calouros, mas dos professores – somos nós, afinal de contas, que temos autonomia para gerir o sistema universitário brasileiro [...] a média de estudantes negros no total do país é de aproximadamente 2% de pretos e 8% de pardos. Os negros estão concentrados nos cursos de baixa demanda; além disso, estão concentrados nas faculdades particulares de menor prestígio. (CARVALHO, 2005, p. 84-85).
A universidade serve, portanto, como instrumento da intelectualidade branca para consolidar o controle social e intelectual das populações afrodescendentes. Qualquer que seja a tentativa de incluir linha de pesquisa e discussão formadora de opinião, esta será conduzida pela hierarquia acadêmica, encantada ainda com a sociologia de Gilberto Freyre ou com a lógica do entendimento do Brasil como “Paraíso”, defendida pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda. Nesse caso, pode-se citar, especialmente, uma das principais instituições superiores do Brasil, a Universidade de São Paulo (USP).
Pensemos no caso da USP, o mais extremo dos extremos, Atualmente, ela conta com apenas 0,1% de professores negros, após setenta anos de investimento contínuo e de ampliação do número de vagas [...]. Podemos inferir que serão necessários um mínimo de vinte anos para que a porcentagem passe de 0,1% a 0,2% [...]. Se não houver uma aceleração desse ritmo de inclusão proporcional, somente daqui a 160 anos a porcentagem de docentes negros na universidade de São Paulo poderá chegar a 1%. . (CARVALHO, 2005, p. 91).
Sendo assim, o alcance das cotas para estudantes afrodescendentes precisa deslocar-se para cotas de professores afrodescendentes, uma vez que somente estes podem levantar outras linhas de pesquisa que contemplem a formação de uma base teórica capaz de desmistificar a ideia de negro como ser desprovido de discernimento para conduzir a política, a academia, a economia, a sociedade e suas práticas culturais.
As universidades não cumprem seu papel social de formar consciência antirracista e nem de abrir as portas da negritude para ter acesso à pesquisa, por via de bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A maior parte das bolsas desta instituição, 99% delas, para ser mais preciso, são remanejadas aos brancos. É imperativo que as universidades se tornem espaços democráticos de mútua admiração, para minimizar essa discriminação.
O discurso da sociedade embranquecida se alastrou por todos os espaços, e por consequência, se apresenta mais forte onde os conceitos são cientificamente consolidados. Dessa forma, a universidade, ao voltar-se para dentro das estruturas sociais, não observará, com clareza, a simbologia sistematizada de exclusão, bem como, as barreiras de legitimação da expressividade política e cultural de valoração social das comunidades negras. A ausência de linhas de pesquisa, sobretudo, é fruto da não discussão profunda das questões raciais no Brasil.
Portanto, como as cotas para alunos afrodescendentes sensibilizaram a sociedade para o combate a uma prática de racismo cruel e oculta, inconcebível no ambiente democrático, por ferir o princípio da dignidade da pessoa humana e a tese da igualdade de direitos, fundamentais para uma sociedade que sustenta um amplo diálogo social, o presente trabalho, propositadamente, é uma tentativa de gerar grande discussão que valide a ação afirmativa de cotas para estudante combinada com a ação afirmativa de cotas para professores. Isto por entender esta última como fundamental para por fim ao claro conservadorismo predominante dentro da estrutura acadêmica, condutor desses estudantes.
Veja-se, então, o caso do intelectual afro-descendente e cientista social Guerreiro Ramos:
Foi aluno e formado na primeira turma de Filosofia da Universidade do Brasil (hoje UFRJ) em 1950. Contudo, ele não foi absorvido como professor da UFRJ. Assumiu o lugar que poderia ter sido seu um professor totalmente inexpressivo, somente lembrado na história por sua associação negativa com a biografia de Guerreiro Ramos [...] desenvolveu sua carreira universitária nos Estados Unidos e chegou a publicar obras em espanhol que ainda não foram traduzidas ao Português. (CARVALHO, 2005, p. 86).
Assim, as universidades que deveriam assumir um papel social esclarecedor relevante, reproduzem as práticas racistas que caracterizam as relações sociais no Brasil desde sua origem no período colonial.
Universidades como a USP e UFRJ, justamente as mais antigas e as que mais controlam o discurso das Ciências Humanas e Sociais no Brasil, são as que mais resistem a adotar qualquer medida de ação afirmativa, mesmo que seja apenas no início da carreira acadêmica, isto é, no vestibular. [...] sem algum sistema urgente de cotas, sequer faz sentido projetar alguma meta concebível, em termos do tempo da história do nosso país enquanto uma nação multiétnica e multirracional, de integração étnica e racial completa nessas instituições. (CARVALHO, 2005, p. 91-92).
O conceito de racismo sofisticado que o Brasil produz se esconde por trás da miséria e da precariedade de oportunidades que uma economia em crescimento apresenta. Ele pode sustentar-se por séculos se não for questionado, sobretudo, numa ordem institucional onde o que este escrito na lei não se verifica na realidade. Tem-se, portanto, o dever de tirar o máximo desse debate sobre as questões raciais para minimizar a exclusão das populações afrodescendentes e reafirmar a importância da política de ação afirmativa nesse campo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A política de ação afirmativa de cotas para alunos apresenta-se como conservadora diante da grande dívida da Academia com a pesquisa da cultura afrodescendente, pois, os quadros das universidades no Brasil têm aproximadamente 1% de professores negros. As cotas para professores se impõem como mais uma força a contribuir para um diálogo multirracial nas estruturas acadêmicas.
É preciso refletir sobre o que o pensador Emmanuel Wallerstein, citado pelo autor José Jorge de Carvalho (2005, p. 108), afirmou “fazer do antirracismo a medida definidora da democracia”.
Não se encontrará uma identidade nacional cultural se não forem resolvidas as questões raciais, assim como, se não forem assegurados canais de inclusão e diálogo social que reafirmem a singularidade miscigenada brasileira
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Lei no 10.639, de 9 de Janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências. Dário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 10 jan. 2003. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/2003/L10.639.htm>. Acesso em: 08 out. 2010.
CARVALHO, José Jorge de. Inclusão étnica e racial no Brasil: a questão das cotas no ensino superior. São Paulo: Attar Editorial, 2005.
FERNANDES, Florestan 1920-1995. O Negro no Mundo dos Brancos. Apresentação de Lilian Moritz Schwarcz. 2 ed. revista. São Paulo: Global. 2007.
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Classes, raças e democracia. São Paulo: Fundação de Apoio a Universidade de São Paulo; Ed. 34, 2006.
JUNIOR, Héldio Silva. “Do racismo legal ao princípio da ação afirmativa: a lei como obstáculo e como instrumento dos direitos e interesses do povo negro”. In: GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo e HUNTLEY, Lynn. Tirando a Máscara: ensaios sobre o racismo no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 359-387.
MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. Tradução James Amado. São Paulo: Brasiliense, 2003.
PAIXÃO, Marcelo J. P. Desenvolvimento Humano e Relações Raciais. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
SKIDMORE, Thomas E. Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Tradução de Raul de Sá Barbosa. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.