As Correntes Interiores e Invisíveis do Corpo Humano na Idade Média

Por Julio Cesar Souza Santos | 16/12/2016 | Sociedade

Conforme Galeno, Quais Eram as “Forças” Que Dominavam o Corpo Humano? Nesse Sentido, o Que Pensava Hipócrates? Como Harvey Descreveu o Movimento das Artérias?

 

Durante 13 séculos Galeno dominou a fisiologia e a anatomia europeia, pois a sua persuasiva explicação do fenômeno da vida partia dos três (3) “sopros” que Platão dizia governarem o corpo. O racional, no cérebro, dominava a sensação e o movimento. O irascível, no coração, controlava as paixões e, o concupiscente, no fígado, nutria. 

Depois de inalado, o ar era transformado em “pneuma” pelos pulmões e esse processo transformava uma espécie de pneuma em outra. O fígado elaborava “quilo” do trato alimentar em sangue, transportador do “espírito natural” que fluía nas veias com uma espécie de movimentos das marés. 

E, em seguida, o espírito vital era transportado numa fase de pneuma ainda mais elevada, conhecida como “espírito animal”. Esta elevada forma de pneuma era distribuída através do corpo, pelos nervos, os quais Galeno supunha serem ocos. 

Em resumo, esta era a grande estrutura da fisiologia de Galeno, a qual era essencialmente uma “pneumatologia”. Ele explicava tudo, mas ninguém podia acusá-lo de pretender possuir mais conhecimentos do que na realidade possuía, pois ele admitia o caráter enganoso de todos os elementos de seu sistema. 

No cerne do seu sistema encontrava-se uma interessante teoria sobre o coração humano. Pois, segundo Hipócrates, o “calor” ingênito ([1]) permeava todo o corpo e distinguia os vivos dos mortos, tinha sua origem no coração. Alimentado pelo pneuma, o coração era o órgão mais quente de todos e o calor que vinha com a própria vida era ingênito, a marca de garantia da alma. 

Como o coração era claramente a cidadela da fisiologia galeniana, para que os médicos pudessem abandonar os seus pneumas, alguém teria de fornecer outra explicação persuasiva de como o coração funcionava. Isso seria conseguido por Wiliam Harvey que, com 15 anos ganhou uma bolsa de estudos para medicina em 1599, foi para Pádua onde conquistou a confiança dos seus colegas e se tornou representante da “Nação Inglesa” no conselho da universidade. As lições eram em latim – que ele sabia ler e falar – e a vida estudantil era turbulenta, sem ser intelectualmente excitante. 

Fabrício Aquapendente era um investigador incansável fiel a Galeno e, quando um grupo de estudantes se revelou contra sua atitude zombeteira, ele conseguiu apaziguá-los com um precioso cadáver para eles próprios dissecarem. Durante algum tempo, Harvey viveu com Fabrício na sua casa de campo à saída de Pádua. 

Por volta de 1574 – bem antes de Harvey chegar à Pádua – Fabrício notou que as veias dos membros humanos continham minúsculas válvulas que só permitiam que o sangue fluísse numa direção. Observou que essas válvulas não estavam nas veias largas do tronco do corpo que transportavam sangue diretamente para os órgãos vitais. 

Dessa forma, Fabrício ajustou essas novas informações às velhas teorias de Galeno do movimento centrífugo do sangue para o exterior, a fim de alimentar as vísceras. A recordação dessas maravilhosas válvulas, que ele mostrou ao jovem Harvey em Pádua, permaneceu viva na mente deste para inquietá-lo e estimulá-lo. E, quando Harvey começou a estudar o coração, os médicos ainda não tinham acordado se esse órgão trabalhava quando se expandia – o que coincidia com a dilatação das veias – ou quando se contraía. 

Harvey descreveu o movimento das artérias, como elas se dilatam quando o coração se contrai e para elas bombeia o sangue e, depois disso, ele acompanha o caminho do sangue quando ele sai da câmara direita do coração. “Do ventrículo direito, o sangue é transportado através dos pulmões no seu caminho para a aurícula esquerda, donde é expulso através do ventrículo esquerdo”. Isso implicava outro novo conceito: _ a circulação “menor” ou pulmonar do sangue, através dos pulmões. 

Foi Cristóvão Colombo que forneceu alguns fatos essenciais. Duas de suas observações foram as peças que faltavam no quebra-cabeça cardiovascular de Harvey. O primeiro era o fato – desconhecido de Vesálio – de que o sangue passava do ventrículo direito para o esquerdo, via pulmões e, o segundo fato, era a descrição exata do funcionamento do coração e do significado correto da sístole e da diástole. Colombo dizia que o coração trabalhava quando se contraía, na sístole, incluindo o ritmo do coração entre “as coisas que são belas de observar”. 

Quando juntou as intenções de Colombo sobre a ação bombeadora do coração com as descrições de Fabrício das válvulas das veias, Harvey começou a ver a luz: _ o coração não era uma fornalha e sim uma bomba, e o sangue fluía dele para alimentar os órgãos. 

Mas, ainda eram necessários outros fatos a fim de provar a circularidade do movimento sanguíneo e Harvey teve de dar o passo da mera circulação do sangue à sua maneira: _ para a circularidade do movimento que se tornou o conceito fundamental da fisiologia moderna. 

Após descrever os caminhos do sangue para o coração, ele levantou uma questão essencial, pois descobriu a força que mantinha a corrente em movimento, embora ele ainda não tivesse cartografado todo o curso do sangue. Ele levantou uma questão a qual estava decidido a dar uma resposta quantitativa: _ “Quanto sangue passa das veias para as artérias?” 

Daí, Harvey examinou quanto sangue era transmitido e em quanto tempo. “Se o enchimento da corrente sanguínea estivesse restabelecido constantemente apenas pela substância dos alimentos ingeridos, o resultado seria o rápido esvaziamento de todas as artérias e o seu arrebentamento pelo fluxo excessivo de sangue”. Qual seria a resposta? 

Dentro do sistema do corpo não existia nenhuma explicação, a não ser que o sangue refluísse de algum modo das artérias para as veias e regressasse ao ventrículo direito do coração. 

Essa explicação era simples e, tendo no seu raciocínio confirmado as suas hipóteses contra as objeções que ele encontrou, Harvey tentou convencer seus colegas reunindo autoridades em seu apoio. 

Citou extensivamente Galeno a fim de apoiar sua opinião da relação de artérias e veias com os pulmões. Com respeito citou Aristóteles, cujas ideias anatômicas tinham sido eclipsadas desde a disseminação de textos impressos de Galeno no século XVI. 

Harvey insistia que aquilo descrito por ele eram apenas fatos e não a aplicação de uma filosofia. “Não professo aprender e ensinar anatomia, partindo dos axiomas dos filósofos”. No entanto, havia uma lacuna que ele não conseguiu preencher, pois as grandes quantidades de sangue eram expelidas velozmente do coração para as artérias e depois para as veias e, dessa forma, de volta ao coração. Mas, o conjunto do sistema não funcionaria a não ser que fosse constantemente transmitido sangue das artérias para as veias. 

Harvey jamais conseguiu descobrir os corredores de ligação, mas expressou a sua convicção de que essa ligação era realizada por quaisquer “admiráveis artifícios ainda por descobri”. Embora, ocasionalmente usasse uma lente de aumento, ele não possuía microscópio, o qual seria imprescindível para descobrir os capilares. 

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([1]) Que nasce com a pessoa; inato, congênito.