As Cores da Idade Média

Por Antônio Ramon Pereira Gomes | 20/12/2012 | História

"Quando o mundo era cinco séculos mais jovem, tudo o que acontecia na vida era dotado de contornos bem mais nítidos que os de hoje. Entre a dor e a alegria, entre o infortúnio e a felicidade, a distância parecia maior do que para nós...” 

(HUIZINGA, Johan. O Outono da Idade Média. 11 ed. São Paulo: Cosac Naify, 2010). 

Considerada pelos iluministas como a “idade das trevas”, a Idade Média foi por muito tempo vista como uma fase de transição entre o esplendor da Antiguidade Clássica e o Renascimento Cultural do século XVI. Os manuais escolares trabalham esse período de forma superficial e com a mesma ideia de atraso.

O que foi a Idade Média? Para alguns um período onde não houve quase nada de importante, onde a cultura teve um retrocesso enorme, as transações comerciais foram reduzidas e o mundo se tornou escuro, entrou em uma “idade das trevas”.

Por mais de três séculos, o termo “trevas” foi dado a esse período que para muitos não representa quase nada frente ao esplendor da Antiguidade Clássica. Mas todas as épocas da História possuem sua importância e a conotação “idade das trevas” começa a sair dos manuais escolares.

O período denominado Idade Média se situa segundo a historiografia ocidental entre o declínio do Império Romano e a tomada de Constantinopla pelos turcos (nesse caso, do ano 476 da Era Cristã até 1453). São quase mil anos que para muitos foi de atraso e ignorância. Mas nos últimos anos essa visão antiga e estereotipada está entrando em declínio.

Como na História nada pode ser levado ao pé da letra, não devemos fixar uma data inicial ou final para o medievo. Muitos historiadores não concordam com as datas e não pretendo definir uma aqui. Por motivos didáticos, costumamos colocar como início do período medieval o ano 476 d.C., quando o Império Romano cai sob julgo dos Hérulos. Da mesma forma ocorre com o seu fim onde nem o ano de 1453 é tido como data fixa. Na verdade, as datas para o medievo não são precisas já que o sistema feudal não terminou igualmente em todas as partes da Europa. Então, para este trabalho, usarei a datação didática: ano 476 d.C. a 1453.

As tribos germânicas começaram a migrar para o território romano por volta dos séculos III e IV da Era Cristã. Num primeiro momento de forma pacífica, foram se instalando aos poucos nas áreas romanas e recebendo o título de tribos confederadas. Mas entre os séculos V e VI a migração virou invasão e desestabilizou o até então poderoso Império Romano. Os bárbaros, como eram chamados esses povos, criaram reinos próprios e moldaram o mapa da Europa Ocidental.

Nesse período se desenvolveu um modelo econômico que perdurou durante toda a época medieval: o feudalismo. De acordo com o medievalista francês Jacques Le Goff, o sistema feudal se caracteriza por:

“Um sistema de organização econômica, social e política baseado nos vínculos de homem a homem, no qual uma classe de guerreiros especializados – os senhores –, subordinados uns aos outros por uma hierarquia de vínculos de dependência, domina uma massa campesina que explora a terra e lhes fornece com que viver”.

 

O mundo medieval é famoso por seus tipos, ou como disse o historiador Johan Huizinga, “por suas cores”. Entretanto, este mundo passou para a posteridade com cores cinza e cheio de estereótipos.

Estritamente dividido, o medievo se caracterizou, não por classes sociais, mas estamentos cuja diferença está na mobilidade social, inexistente na sociedade baseada em estamentos. Clero, nobreza e terceiro estado, essa é a divisão que passou para a História, mas segundo Huizinga, existem outros desdobramentos.

Os historiadores costumam dividir a Idade Média em dois extremos. Dos séculos III ao X é comumente chamado de Alta Idade Média, onde vemos a organização do mundo feudal, o domínio do feudalismo e os principais pontos que caracterizou o mundo medieval. Dos séculos XI ao XV é o que Jacques Le Goff chama de Baixa Idade Média, onde temos a desestabilização do mundo feudal, o renascimento urbano, o retorno às transações comerciais e outros pontos que ajudaram o mundo medieval a se reerguer.

Falando em mundo, o que nos vem à cabeça quando nos referimos ao medievo? Normalmente os cavaleiros e suas donzelas, a Igreja e sua máquina opressora, doenças e uma produção cultural mínima são o que vem à mente. O renascimento, e principalmente os teóricos iluministas, ajudaram a disseminar essa ideia do medievo que durou até meados do século XIX, mas ainda hoje temos essa noção pejorativa e estereotipada. Chegou a hora de relativizar.

Os cavaleiros medievais passaram para a posteridade como um exemplo a ser seguido, o “amor cortês” como muitos romancistas escreveram. O ciclo arturiano se encarregou mais ainda de legar a esses cavaleiros um ar de “humanidade”, os grandes feitos de Lancelot, Arthur e os membros da Távola Redonda nos deram uma visão romanceada dos fatos. Os grandes atos humanísticos de Lancelot, a cortesia de Arthur, o amor incondicional de Guinevere e outros mais.

Na literatura e também na vida real os cavaleiros foram enaltecidos chegando a serem considerados super-homens. O imperador Carlos Magno foi um dos grandes heróis do medievo e de acordo com seu biógrafo e cronista Einhard, um exemplo de rei que valorizava a educação e o conhecimento.

Grandes homens e feitos maiores ainda, esses cavaleiros são envoltos em uma aura de santidade, sem levarmos em conta que são seres humanos e propensos a erros. Fazendo o trabalho do historiador, vamos relativizar.

A cavalaria medieval, romanceada por Cherétien de Troyes, era na verdade bastante violenta. Iniciava-se na vida como cavaleiro por volta dos 18 ou 20 anos, era a passagem para a maturidade. Esse grupo social, que segundo alguns historiadores, eram uma das bases do mundo medieval, representavam a violência, o espírito de agressão e pilhagem da época. Estavam sempre ativos e muitas vezes, suas batalhas levavam muitos inocentes à morte. Os motivos eram vários, mas o principal era a lentidão dos casos judiciais.

Antes de julgar, entretanto, é preciso entender o contexto histórico em questão. Estamos falando de um período na História da Europa onde o crescimento urbano era mínimo, guerras eram constantes e o sentimento de insegurança era muito grande. O misticismo reinava em muitos dos âmbitos sociais. Falando em misticismo, é hora de relativizar a fé.

A Idade Média se caracterizou por um forte sentimento religioso e a ideia que passou para a posteridade é de um mundo dominado pela Igreja. Mas isso é o que podemos chamar de estereótipo já que nos primeiros séculos (o que Jacques Le Goff chama de “Alta Idade Média) a cristandade estava se consolidando. É só a partir do século XI e com o advento das Cruzadas é que ela mostra seus punhos de aço, todavia, a Igreja opressora que conhecemos “surgiu” apenas entre os séculos XIV e XV, bem no fim do medievo (levando em conta a datação didática que estamos usando).

O estudo nesse período foi se erguendo aos poucos. Costumamos pensar em um medievo ignorante, onde o conhecimento se baseava no misticismo e na fé. Não levamos em conta que o conceito de Universidade que conhecemos hoje se consolidou e se desenvolveu nesse período, embora elas existam desde a Antiguidade Clássica.

Até então, o ensino era de responsabilidade da Igreja e de certa forma, era destinada a poucos. Reagindo a isso, professores e alunos juntaram-se e criaram instituições chamadas Universitas, todavia foi com Carlos Magno que o ensino na Europa teve certo desenvolvimento, mesmo que Magno não soubesse ler, houve um incentivo da parte dele.

A arte medieval teve diversas faces sendo usado para os mais diversos fins, embora o religioso prevaleça. Costuma-se dividir essa arte em românica e gótica, mas há outras subdivisões como a Carolíngia, a Bizantina e outras. Muitos veem a arte do medievo como simplista, mas deve-se levar mais uma vez em conta o contexto histórico: poucas pessoas sabiam ler, o mundo se resumia ao castelo e ao seu senhor, assim, que fosse o mais simples possível.

Analisando psicologicamente as pinturas medievais consideradas românicas, eram distorcidas e coloridas. Os mosaicos são os mais característicos, esse estilo ia de encontro ao pensamento da época: um mundo escuro (distorção), mas com alguma esperança (colorido).

Todavia, entre os séculos XII e XIII nasceria o gótico, em oposição ao romanismo clássico. Podemos dizer que a pintura ocidental teve um salto com cores mais vivas e formas mais definidas. Johan Huizinga elege Jan Van Eyck como pintor destaque para sua obra prima “O Outono da Idade Média” e com razão. Eyck é um dos grandes nomes da pintura medieval. Seu estilo foi influenciado pelo gótico e se tornou uma marca com o colorido e as formas definidas. A arte medieval teve seus momentos, ela não estagnou quando Roma caiu.

A vida medieval, por outro lado, não tinha suas cores, não passava de uma breve existência cheia de dor e sofrimento onde as relações humanas foram reduzidas a batalhas e desavenças; o trabalho se tornou compulsório, com os camponeses atrelados a terra. Isso é o que pensamos e o que nos foi passado como verdade. Entretanto, toda história tem dois lados.

Huizinga nos fala que a vida medieval tinha suas cores, a despeito de tanto sofrimento. As pessoas, em todas as épocas, buscam uma vida melhor e segundo ele, haviam três modos de encontrar a felicidade: os sonhos, o trabalho e por fim, a morte. Johan Huizinga foi o primeiro historiador a entender os sentimentos do homem medieval e perceber a busca por uma vida melhor.

A Idade Média tem seu fim quando o sultão turco Maomé III toma a cidade de Constantinopla em 1453. Acabava o medievo, mas seus resquícios demoraram muito para desaparecer por completo da vida Europeia. Começava a Idade Moderna, um novo capítulo na História Humana onde se valorizava o conhecimento e as artes, os 1000 anos de atraso haviam acabado. Mas o que a Idade Média nos legou?

Como já foi dito, todos os períodos da História possuem sua importância. A “longa Idade Média” como chamou Jacques Le Goff abriu as portas para o turbilhão cultural que viria com a Renascença. Gosto de pensar esse período como sendo de preparação, embora ninguém se prepare durante 1000 anos, alguns dirão. Nas artes, crenças, literatura e na vida medieval, vejo atos de preparação, mesmo que inconsciente, de criar um terreno apropriado para a Renascença. O estilo gótico de Van Eyck que Huizinga tanto exaltou abriu caminho para que os estilos renascentistas fincassem raízes e florescessem.

A literatura medieval rendeu frutos que influenciaram gerações posteriores e a arquitetura gótica perdurou por mais cinco séculos. A Igreja se desenvolveu e criou suas bases no medievo. Resumindo: foi um período bastante prolífero.

  Pensar na Idade Média em nossos dias é um pouco complicado e como já foi dito (o célebre historiador Eric Hobsbawn já enfatizou em seu clássico “Era dos Extremos”), trabalhar a memória é algo bastante complexo. Os pensadores do Iluminismo dedicaram suas vidas a criticar o medievo, a trata-lo como o sinônimo de ignorância, onde o ocidente se viu preso a 1000 anos de atraso.

Todavia, uma pesquisa mais profunda e uma mudança no pensamento nos ajudam a ver esse período de uma forma mais ampla, sem modismos ou estereótipos. Johan Huizinga publicou sua obra prima “O Outono da Idade Média” em 1919, numa época em que os ideais do Positivismo estavam em alta. Por uma História baseada na ciência, os positivistas pregavam uma objetividade nos fatos históricos, Huizinga foi contra a maré e escreveu sobre o medievo cheio de cores, sem estereótipos. Ele foi o primeiro historiador a tratar da Idade Média de forma correta: um período cheio de guerras, fanatismos e seus cavaleiros emplumados; mas também uma época repleta de representações artísticas das mais variadas, avanços técnicos a curtos passos, um mundo onde as relações humanas eram mais fortes, o sentimento religioso dava ao homem medieval algo a se segurar, entender o mundo ao seu redor.

Huizinga foi o primeiro a trabalhar o que posteriormente seria chamado de “história das mentalidades”, o que Jacques Le Goff tanto defendeu em seus artigos: uma análise da sociedade em todos os seus aspectos, entendendo as suas características mais profundas. É assim que devemos olhar o medievo, com todas as suas cores.

É preciso que os jovens entendam a importância do medievo como um período de preparação , onde  a fé dava ao ser humano força para seguir em frente, e não sinônimo de ignorância. A busca por uma vida melhor se mostrava com os cavaleiros engalanados, criando um ideal e modelo a ser seguido. Esse ideal cavalheiresco era uma válvula de escape à vida difícil do camponês, assim como os contos e a literatura.

Podemos dizer que a Idade Média possui dois extremos. O mundo medieval dos cavaleiros, das damas de cortesia, das guerras santas, do domínio da Igreja sobre os corações e mentes, da ignorância e da violência. E a Idade Média com suas verdadeiras cores, o medievo contemplado a partir do verdadeiro ponto de vista: todas essas características citadas acima, mas sem estereótipos, visto de modo relativizado. A Idade Média romantizada é muito boa para introduzir esse período para as novas gerações, mas sem tratar isso como sendo verdade, é preciso relativizar e daí trabalhar a verdadeira, com todas as suas tonalidades, como disse Huizinga. O “media tempestas” em toda a sua plenitude!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HUIZINGA, Johan. O Outono da Idade Média. 11 ed. São Paulo: Cosac Naify, 2010

LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média. Lisboa, Estampa, 1980

LE GOFF, Jacques. Uma longa Idade Média. 2 ed. São Paulo: Civilização Brasileira, 1982