AS AVENTURAS DE CHICO E AURÉLIA EPISÓDIO 3: RETALHOS
Por Sílvia Aparecida de Souza Nascimento | 17/01/2014 | ContosAS AVENTURAS DE CHICO E AURÉLIA – EPISÓDIO 3: RETALHOS
Tarde ensolarada. Sem vento. Tudo parado. Lá no quintal, algumas galinhas conversavam entre elas. Era assim que Aurélia pensava. Aqui, no quarto, o som da máquina de costura da mãe.
Um quarto grande. O piso de assoalho de madeira. Para arejar o ambiente havia duas janelas de madeira pintadas de azul-claro. Para trancá-las, somente taramelas. Estas eram quadradas, grandes e reforçadas. Foram afixadas com pedacinhos de madeira porque quando a casa foi construída não se usam pregos. Até o alicerce da casa foi construído com pedras em tamanho natural porque naquela época não existiam na região pedras britadas. A casa de Aurélia era rebocada e pintada de branco. Na verdade, não era pintada e nem nunca tinha sido. A casa era apenas caiada. Uma sorte porque muitas casas da cidade eram construções feitas de pau a pique. Algumas eram cobertas com capim e o piso era de terra batida. Mas estas últimas podiam ser encontradas somente nas roças que rodeavam a cidade. Então, como já foi dito, o quarto, assim como o restante da casa, era branco. Não uma cor branca da cor da neve. Não. Nada disso. Um branco meio amarelado, meio encardido. Poderíamos dizer que as paredes eram nuas se não fossem por três imagens de santos que pendiam de preguinhos cravados nelas. O primeiro quadro era de Nossa Senhora da Guia para guiar os passos das pessoas da família. O quadro já estava meio desbotado, meio carcomido pelo tempo. O segundo quadro era de Santa Luzia. Aurélia nunca entendeu porque essa santa, sendo protetora dos olhos, tinha olhos dentro de um pratinho. Um dia, sua mãe lhe contou a história dessa santa. A menina entendeu, mas continuou achando estranho dois olhinhos dentro de um pratinho. O terceiro quadro era do Sagrado Coração de Jesus e Sagrado Coração de Maria. Aurélia no auge dos sete anos não tinha muitas informações a respeito daquele quadro. Não tinha informações, mas tinha fé. Sempre que entrava no quarto e via as imagens, fazia o sinal da cruz. Sua mãe dizia sempre: “É preciso ter fé e rezar.” A menina obedecia.
No quarto havia a cama do casal. O colchão também feito de palhas. Muito alto e fofo. Coberto por uma colcha de retalhos grandes. “Que vontade de dar uma cambalhota nessa cama!” Pensava Aurélia toda vez que entrava no quarto. Mas não podia. Ainda mais hoje que a mãe estava ali. Talvez ficasse brava, talvez não. “Melhor não dar a cambalhota.” Pensou direitinho. A cama ficava próxima à primeira janela. Aos pés da cama existiam dois balaios onde a mãe guardava retalhos bonitos para usar em suas costuras. Perto dos balaios ficava um baú antigo. Dentro dele estavam guardados os objetos que pertenceram a sua avó já falecida. Baú tem cheiro de coisa velha, coisa guardada, mas aquele tinha cheirinho de talco, tinha cheirinho de avó. “Talco deve ser caro.” Aurélia pensou consigo mesma. Compondo o jogo de quarto, um guarda-roupa de madeira preta que guardava as poucas roupas da família. Uma porta com espelho e uma única gaveta. Dentro dele, roupas limpas, dobradas e com cheirinho de naftalina para espantar traças e baratas. Naftalina espanta até gente. Era fácil espantar bichos menores. Perto da segunda janela, para aproveitar bem a luz do Sol, ficava a máquina de costura. Uma peça muito antiga, pesada e com pés. Não eram bem “pés”. Aurélia não entendia muito bem como ela funcionava, apenas sabia que era boa de costura. Na frente da máquina, sentada numa cadeira antiga, a mãe de Aurélia remendava a calça do marido. Aqui, em Minas Gerais, as pessoas não fazem tipo não. Não nos fantasiamos de caipira. Nós somos caipiras. Botina sem meia, calça remendada, camisa xadrez, chapéu de palha, enxada e embornal fazem parte do nosso dia a dia e não de um figurino do mês de junho. O pai de Aurélia, como sempre, estava na roça naquela hora.
Pertinho da mãe, quase encostada, estava Aurélia. Sobre um banquinho de madeira, igual ao usado para tapar o buraco no sofá, à sua frente estava sua pequena máquina de costura. De mentirinha, é claro! A máquina de costura de Aurélia era na verdade um mamão verde. De um lado havia um pedaço de arame em formato de “L”. Esse arame era a manivela que movia a máquina. A menina girava o arame e fingia costurar. Para o mamão ficar erguido usou-se quatro pedaços de madeira. Quatro pedacinhos de bambu. Era o mesmo esquema usado para fazer vacas, porcos, cavalos, bezerros, etc. Galinhas não. Galinhas e outras aves somente gastavam dois pauzinhos. Aurélia estava sentadinha em sua cadeira de madeira. Tão pequena, mas reforçadinha. O pai da garota tinha feita a cadeira especialmente para ela. Até pintou de vermelho. Linda!
Aurélia pegava retalhos de tecido, colocava-os debaixo da máquina de costura (mamão verde) e fazia de conta de costurava. “Tec, tec, tec, tec, tec...” A garota fazia o barulho da máquina.
Envolvidas em suas costuras, mãe e filha iam conversando. A mãe ia contando histórias para a filha. Histórias de um tempo antigo. Tempo em que a mãe era só filha. Tempo em que a mulher era só menina. Aurélia escutava com atenção. Fazia perguntinhas engraçadas. Às vezes, perguntas sem pé e nem cabeça, mas a mãe respondia todas elas com calma e paciência.
- Pronto, Aurélia. Terminei de remendar a calça do seu pai. E você? Terminou suas costuras?
- Ainda não. Só mais um pouquinho. E... Agora sim... Acabei. Mãe, estou com fome!
- Que gracinha! Mas já?
- Sim. Muita fome. Muita fome mesmo.
- Então, vamos encerrar as costuras e arrumar uma merendinha.
- Obá! O que a senhora vai fazer?
- Não sei. O que você sugere?
- Posso comer doce de leite?
- Pode uai! Só não exagera. Dez colheres no máximo!
Aurélia e a mãe riram.
A menina sabia que a mãe era uma fada. Só podia ser.
- Vamos, filha. Amanhã, continuamos as costuras. Terei três tarefas. Primeira: fazer um embornal novo para seu pai. Segunda: fazer uma boneca de pano bem bonita para você. Terceira: fazer roupinhas para a nova boneca. O que acha?
- Vou adorar, mamãe! Agora vamos. A costureirinha aqui está com fome!
A vida é uma colcha de retalhos. Cada dia, cada momento triste ou alegre é um retalho. Só no final da nossa história saberemos se nossa colcha de retalhos terá cores alegres ou tristes. Aurélia tinha retalhos muito alegres e coloridos para compor a sua colcha.
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