As Artes Perdidas da Memória

Por Julio Cesar Souza Santos | 03/01/2017 | Sociedade

Por Que Durante Milênios a Memória Reinou Sobre a Informação? Que Proezas da Memória Sêneca Era Capaz de Reproduzir? Qual Foi a Contribuição de Giordano Bruno Para a Ciência Mnemônica?

                 

Antes do livro impresso, a memória governava a vida quotidiana e o saber oculto e, por isso, ele merecia o nome aplicado à impressão, a “arte conservadora de todas as artes”. A memória dos indivíduos e das comunidades transportou conhecimentos através do tempo e do espaço e, durante milênios, a memória pessoal reinou sobre o entretenimento e a informação, sobre a perpetuação e o aperfeiçoamento dos ofícios, a prática do comércio e sobre a conduta das profissões. 

Pela memória eram reunidos, conservados e armazenados os frutos da educação, pois a memória era uma faculdade que todos tinham de cultivar de modos e por razões que nós esquecemos há muito tempo. Nesses últimos 500 anos, vemos apenas tristes relíquias do império e do poder da memória. Diz-se que o inventor da arte mnemônica foi o versátil poeta grego Simônides de Ceos, o qual também tinha a fama de ter sido o primeiro a aceitar pagamento pelos seus poemas. As origens dessa fama foram descritas na obra sobre oratória de Cícero, ele próprio também famoso pelas faculdades mnemônicas. 

Na Idade Média formulou-se distinção entre a memória “natural” – com a qual todos nós nascemos e exercitamos sem treino – e a “artificial”, a qual podemos desenvolver. Havia diferentes técnicas para memorizar coisas ou palavras, pois alguns professores aconselhavam o estudante a procurar um lugar sossegado onde suas impressões imaginadas não fossem enfraquecidas pelos ruídos ou passagem de pessoa. 

Sêneca, o mais velho professor de Retórica, tinha fama de ser capaz de repetir extensas passagens de discursos que ouvira apenas uma vez, muitos anos antes. E impressionava seus alunos pedindo que cada recitasse um verso e, depois disso, ele próprio recitava os versos na ordem inversa. Santo Agostinho confessou a sua admiração por um amigo que conseguia recitar de cor todo o texto de Virgílio – de trás para frente. 

As proezas e as acrobacias da memória “artificial” gozavam de grande fama e Ésquilo dizia que “a memória é a mãe de toda a sabedoria”. Cícero concordava, dizendo que a memória era “o tesouro e o guardião de todas as coisas” e, no apogeu da memória, antes da expansão da imprensa, o animador, o poeta, o cantor, o médico, o sacerdote e o advogado precisavam de uma memória bem desenvolvida. 

As primeiras grandes epopeias da Europa foram conservadas e realizadas pelas artes da memória e, Ilíadas e Odisseia, por exemplo, foram perpetuadas de forma verbal, sem o uso da escrita. A palavra usada por Homero para poeta é “cantor” e, antes de Homero, cantor era aquele que cantava um único poema breve o suficiente para poder ser cantado a uma única audiência de uma vez. 

Os primeiros livros manuscritos do Mediterrâneo eram escritos em folhas de papiro coladas umas às outras e enroladas em seguidas que, além de ser pouco prático, o frequente desenrolar ia delineando as palavras escritas. Como não havia “páginas” numeradas separadas, era trabalhoso confirmar uma citação que as pessoas tinham tendência para confiar na sua memória. 

As leis foram conservadas pela memória antes de o serem em documentos e, pode-se dizer que, a memória coletiva da comunidade foi o 1º arquivo jurídico. O ritual e a liturgia foram igualmente conservados pela memória, da qual os sacerdotes eram os zeladores especiais. Os serviços religiosos eram maneiras de gravar preces e ritos na memória da juventude da congregação. 

O predomínio do verso e da música como instrumentos mnemônicos atesta a importância da memória no tempo anterior aos manuais impressos. Aos filósofos medievais não bastou que a memória fosse uma mera faculdade prática e, por isso, transformaram-na de faculdade em virtude, num aspecto da virtude da prudência. S. Tomás de Aquino – por exemplo – decorava tudo quanto os professores lhe diziam na escola e, as palavras que os doutores da Igreja que ele reuniu para o Papa Urbano IV, acabaram sendo registradas não a partir do ele copiara, mas sim do que ele vira. Claro que se lembrava perfeitamente de tudo quanto jamais lera. 

A “Divina Comédia” de Dante, deu vida tanto a lugares como a imagens por uma ordem facilmente recordada. Mas, também houve exemplos mais modestos, pois os manuscritos dos frades ingleses no século XIV descreviam cenas que não eram destinadas a ser vistas com os olhos, mas sim a fornecer imagens invisíveis à memória. 

Petrarca (1304/1374) teve grande fama como autoridade em memória artificial e no modo de cultivá-la. Ele ofereceu suas próprias regras para escolher os “lugares” onde armazenar imagens lembradas para recuperação. Ele disse que a arquitetura imaginada da memória devia fornecer lugares de armazenamento de tamanho médio, nem demasiado grandes nem pequenos demais para imagens específicas. 

Quando a imprensa tipográfica apareceu, as artes da memória tinham sido organizadas em vários sistemas e, em princípios do século XVI, a obra mais conhecida era um texto prático que teve muitas edições e foi muito traduzido. Nesse manual popular, Pedro de Ravena dizia que os melhores locais da memória se encontravam numa igreja deserta. 

Depois de Gutenberg os reinos da vida quotidiana passariam a ser governados pela página impressa e, no fim da Idade Média, os livros manuscritos tinham constituído um auxiliar da memória para a pequena classe letrada. Mas o livro impresso era muito mais portátil, mas exato, mais prático de referenciar e evidentemente mais público e comum. Fosse o que fosse que se imprimisse, depois de escrito por um autor, tornava-se também conhecido dos impressores e de todos aqueles que a página impressa alcançasse. Agora, um homem podia referir-se ás regras de gramática, aos discursos de Cícero e aos textos teológicos, direito canônico e moralidade, sem ter de armazená-los dentro de si. 

Depois do século XII alguns livros apresentavam listas, cabeçalhos e até índices rudimentares, sinal de que a memória começou a perder parte do seu antigo papel. Mas, a recuperação se tornou ainda mais fácil quando os livros passaram a ter “rostos” e páginas numeradas. Quando apresentavam índices, então a única proeza essencial da memória consistia em decorar a ordem do alfabeto. Antes do fim do século XVIII, o índice alfabético no fim de um livro se tornou padrão. A tecnologia da recuperação da memória passou a desempenhar um papel muito menor nos reinos superiores da religião, do pensamento e do saber. As proezas espetaculares de memória se tronaram meros malabarismos. 

O mais extraordinário explorador do continente negro da memória foi Giordano Bruno (1548/1600) que, quando ainda era um jovem frade em Nápoles, sentiu-se atraído para a arte da memória dominicana e, quando abandonou a Ordem Dominicana, leigos esperaram que revelasse os segredos dominicanos. Não os decepcionou, pois na sua obra Bruno explicava que a faculdade da memória não era nem natural nem mágica, mas antes o produto de uma ciência especial. Ao apresentar a sua ciência-memória, demonstrou a potência peculiar das imagens dos decanos do zodíaco. As imagens estrelares, sombras de ideias, representando objetos celestes, estão mais próximas da realidade duradoura do que imagens deste mundo transitório cá de baixo. 

Mas, as necessidades quotidianas da memória nunca foram tão importantes como no tempo anterior ao papel e aos livros impressos. A glória da memória declinou e, em 1580, Montaigne declarou que “uma boa memória está geralmente aliada a um fraco discernimento”. E, alguns sábios, diziam ironizando que “não há nada mais comum do que um idiota com uma memória forte”. 

Nos séculos pós-imprensa o interesse passou da tecnologia da memória para a sua patologia. Em fins do século XX, o interesse pela memória foi destronado pelo interesse pela afasia, amnésia, hipnose e pela psicanálise. O interesse pedagógico pelas artes da memória acabou sendo substituído pelo interesse pelas artes de aprender, que passaram a ser descritas com crescente persistência, como um processo social. 

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