APLICABILIDADE DA LEI MARIA DA PENHA NO CASO DE MULHERES TRANSEXUAIS NÃO OPERADAS

Por Larissa de Jesus Lima Araújo | 22/06/2018 | Direito

Larissa de Jesus Lima Araújo[1]                                                                                                      

É importante destacar inicialmente, que, sendo  há a vedação da discriminação da mulher em face de sua orientação sexual, nas disposições da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), em seu artigo 2o: “Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social” Assim como, no parágrafo único do artigo 5o: “As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual”.

Segundo os princípios de Yogyakarta, o Estado tem o dever de (apud HUDLER; TANNURI, 2015, p.1): “tomar todas as medidas legislativas, administrativas e de outros tipos que sejam necessárias para respeitar plenamente e reconhecer legalmente a identidade de gênero auto definida por cada pessoa.  

Acerca da abrangência da Lei 11.340/06 às transexuais, Maria Berenice Dias (2012, p.61- 62) discorre que:

Há a exigência de uma qualidade especial: ser mulher. Assim, lésbicas, transexuais, travestis e transgêneros, que tenham identidade social com o sexo feminino estão sob a égide da Lei Maria da Penha. A agressão contra elas no âmbito familiar constitui violência doméstica. (...) descabe deixar à margem da proteção legal aqueles que se reconhecem como mulher.

Para que se possa compreender com mais clareza e profundidade a respeito da aplicação da Lei Maria da Penha às transexuais não operadas, faz-se necessário saber o que é um indivíduo transexual, e entender acerca dos termos “sexo” e “gênero”.

Segundo Elizabeth Zambrano, (2003 apud ÁVILA; FERREIRA; PORTELLA, 2005, p.96), o sexo foi historicamente regulado pela Igreja, Judiciário e medicina, ficando determinado por essas, a existência de: dois sexos, o homem e a mulher; dois gêneros, o masculino e o feminino; e uma forma “correta” deles se relacionarem, por meio da heterossexualidade.

Do ponto de vista médico, são considerados como elementos fundamentais para se verificar a existência da transexualidade em um indivíduo: “o uso de uma identidade social pertencente ao sexo diferente do biológico e a demanda pela troca de sexo por meio de cirurgia”. Por meio de tais elementos, ele poderá ingressar no programa para realização da cirurgia. É um outro critério de diagnóstico, o não uso erótico dos órgãos genitais, evitando assim, classificar os travestis, os quais permanecem utilizando seus genitais para a prática de sexo, como transexuais (ÁVILA; FERREIRA; PORTELLA, 2005, p.98).

Por meio da cirurgia de redesignação sexual, o transexual poderá “tornar sua identidade de gênero compatível com sua identidade sexual” (ÁVILA; FERREIRA; PORTELLA, 2005, p. 98). Ou seja, a cirurgia é um mecanismo de compatibilização das identidades de gênero e sexo do indivíduo, logo, ainda que este não tenha realizado a cirurgia, o qual não possuirá o sexo almejado, continua por possuir sua identidade de gênero incompatível com o sexo biológico, pois sente-se mulher, veste-se como mulher, comporta-se como mulher, possui uma relação íntima afetiva com José, assumindo todas as características sociais pertencentes a uma mulher, uma vez que se assume transexual.

Segundo Beauvoir (1980, p.9 apud SALIH, 2012, p.66) “ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado”.

Butler (p.33 apud SALIH, 2012, p.66) explana que “(...) segue-se que a mulher em si é um termo em processo, um devir, um construir do qual não se pode dizer legitimamente que tenha origem ou fim. Como uma prática discursiva contínua, ela está aberta à intervenção e à ressignificação”.

Acerca da cirurgia de transgenitalização (aspecto físico), e da retificação dos dados no registro civil de prenome e estado sexual (aspecto social) como exigências para que a transexual do gênero feminino seja considerada mulher sob o ponto de vista jurídico, entende-se que tais “exigências” constituem-se (HUDLER; TANNURI, 2015) “meras formas de se adequar aspectos extrínsecos ao gênero preexistente: não é o procedimento cirúrgico” (FERRAZ; LEITE, 2013, p.233), “muito menos a alteração registral” (BIANCHINI, 2013, p.54), que irão tornar a transexual feminina em uma mulher, visto que ela já era mulher, de forma que independe da presença do órgão genital masculino ou do registro civil, sendo que estes definem somente o sexo biológico e o civil, porém não o gênero do indivíduo (HUDLER; TANNURI, 2015).

Como consequência da aplicação da Lei 11.340 de 2006 ao caso em questão, quando Luciana se dirigir a delegacia, o delegado, após ouvi-la, irá lavrar o boletim de ocorrência, e de acordo com a vontade dela, tomará as providências necessárias para iniciar uma ação contra o agressor. E em seguida, o delegado em até 48 (quarenta e oito) horas, mandará ao juiz o pedido de medidas protetivas de urgência, no caso da vítima correr um sério risco de ser agredida novamente pelo agressor ao voltar ao domicílio, tendo o juiz o mesmo prazo para responder se tais medidas devem ou não serem aplicadas. Como houve agressão física, Luciana será encaminhada ao hospital e ao Instituto Médico Legal (DIREITOS, 20[?]).

 Nas medidas protetivas de urgência, o juiz poderá:

Obrigar que o suspeito da agressão (lembre-se de que todos são inocentes até que se prove o contrário) seja afastado da casa ou do local de convivência da vítima. Proibir que o suspeito se aproxime ou que mantenha contato com a vítima, seus familiares e testemunhas; obrigar o suspeito à prestação de alimentos para garantir que a vítima dependente financeiramente não fique sem recursos; e proibir temporariamente contratos de compra, venda ou aluguel de propriedades que sejam possuídas em comum. E ainda estabelecer outras determinações como: Em caso de violência sexual, a mulher tem direito a serviços de contracepção de emergência (para evitar uma possível gravidez indesejada), a prevenção de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) e outros procedimentos médicos necessários. Caso seja comprovada a culpa do agressor, é proibido aplicar penas de cesta básica ou a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa. A vítima deverá ser informada do andamento do processo e também do ingresso e saída da prisão do agressor. O juiz pode determinar que o agressor compareça obrigatoriamente a programas de recuperação e reeducação (DIREITOS, 20[?], p.1).

Ademais, se Luciana não possuir emprego e depender financeiramente de José, o qual foi seu agressor, além de receber tratamento médico gratuito, o juiz também poderá determinar que ela seja incluída em programas de assistência mantidos pelo Governo. Se Luciana trabalhar, sendo servidora pública, poderá o juiz, decidir que ela seja deslocada para outro, sem que haja prejuízo, ou possuindo Luciana, vínculo trabalhista, este poderá ser mantido por até 6 (seis) meses, se for necessário o seu afastamento (DIREITOS, 20[?]).

A Lei 11.340 de 2006 não poderá ser aplicada no caso em questão, visto que de acordo com o princípio da Reserva Legal e da interpretação da Norma Penal Incriminadora, mesmo havendo a constituição de uma entidade familiar na união de Arthur e José, não haverá a incidência da Lei Maria da Penha no caso em questão, pelo fato da disposição legal definir de forma categórica que a finalidade desta Lei é de “criar mecanismo para coibir a violência doméstica contra a mulher”. Embora no texto legal haja a referência de aplicação em qualquer situação de convivência familiar, o objeto de proteção continuará sendo a mulher de forma exclusiva (LAURIA, 2006, p.1).

Acerca do Princípio da Reserva legal e da Norma Penal Incriminadora para com a questão de travestis, os quais, obviamente, também se aplicam ao caso de transexuais, Thiago Lauria (2006, p.1) discorre:

O motivo para tanto é o princípio constitucional da reserva legal. Apenas a lei pode tipificar condutas e cominar penas. Não é permitido tipificar fatos por semelhança. As lacunas existentes em normas incriminadoras são consideradas expressões da vontade negativa da lei, não podendo ser consideradas como típicas. As normas penais lidam com a liberdade, um dos bens jurídicos mais importantes do cidadão. A constrição da liberdade será sempre uma medida excepcional dentro do ordenamento jurídico, pelo que a interpretação das normas penais incriminadoras será, em regra, restritiva. Logo, onde a norma penal diz “mulher”, o conceito não pode ser ampliado para atingir os travestis, por absoluta falta de previsão legal. Entender de forma contrária seria admitir analogia in malam partem, ou seja, em desfavor do réu, o que é inadmissível em matéria de Direito Penal

 

Segundo o advogado Thiago Lauria (2006, p.1), no tocante às transexuais não operadas, ainda que se entenda que o sexo psicológico se difere do sexo biológico, a interpretação realizada ao conceito de mulher presente na Lei Maria da Penha, “por apresentar ao réu um tratamento mais gravoso, com implicação direta no direito constitucional da liberdade de locomoção, deve ser restritivo”. Logo, por ser Arthur, biologicamente homem, não se pode ampliar a aplicação da Lei para os transexuais que ainda não realizaram a cirurgia de redesignação sexual.

Sendo está, portanto, a consequência da aplicação da supracitada Lei ao caso em análise. Em outras palavras, a incidência da Lei 11.340 ao caso de Arthur, seria causar a José uma situação mais gravosa, sendo que este caso não é amparado por tal Lei, constituindo uma decisão injusta, pois no caso José teria que ser punido pelo crime de lesão corporal grave, no caso de ser constatado perigo de vida pela perícia médica; se resultar em incapacidade para as ocupações habituais, por mais de 30 (trinta) dias; ou se resultar em debilidade permanente de membro, sentido ou função (CÓDIGO PENAL, art. 129, § 1º).

Uma transexual não pode ser considerada mulher, ainda que consiga retificar no seu registro de nascimento a mudança de sexo, visto que a transexualidade é considerada uma patologia, na qual o indivíduo sente-se uma mulher presa no corpo de um homem, constitui um distúrbio, segundo o psicanalista Stoller, o qual identifica a causa da transexualidade, como o complexo de castração ou como a ausência do conflito de Édipo. Para ele a tarefa do terapeuta seria induzir o conflito de Édipo para que uma feminilidade ou masculinidade “normal” pudesse surgir (1982 apud BENTO, 2006, p. 138 - 139).

Existem, inclusive, dados os quais comprovam que há um índice elevado de arrependimentos de pessoas que haviam se submetido à cirurgia sem um rigoroso acompanhamento psicológico anterior (BENTO, 2006). Ou seja, as pessoas transexuais precisam de auxílio psicológico para que as ajudem a aceitar o seu sexo biológico e poupem seus corpos de uma impactante mutilação, a qual lhe trará ainda mais traumas.

Portanto, ainda que tendo feito ou não a cirurgia de “troca de sexo”, o homem jamais seria uma mulher, pois como já visto, a transexualidade consiste em uma patologia que necessita de acompanhamento psicológico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ÁVILA, Maria Betânia; FERREIRA Verônica; PORTELLA, Ana Paula. Novas legalidades e democratização da vida social: família, sexualidade e aborto. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.

BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.

BIANCHINI, Alice. Lei Maria da Penha: Lei n.11.340/2006: Aspectos assistenciais,

protetivos e criminais da violência de gênero. São Paulo: Saraiva, 2013.

DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

BIANCHINI, Alice. Lei Maria da Penha: Lei n.11.340/2006: Aspectos assistenciais, protetivos e criminais da violência de gênero. São Paulo: Saraiva, 2013.

DIREITOS, Guia de. O que mudou com a Lei Maria da Penha. Disponível em: < http://www.guiadedireitos.org/index.php?option=com_content&view=article&id=196%3Aviolencia-domestica-e-familiar-contra-a-mulher&catid=83%3Aviolencia-contra-a-mulher&Itemid=56>. Acesso em: 8 out 2015.

FERRAZ, Carolina Valença. LEITE, Glauber Salomão. A pessoa transgênera e o reconhecimento do direito de ser mulher: promoção da dignidade humana e garantia do desenvolvimento pessoal. In Manual dos Direitos da Mulher. São Paulo: Saraiva, 2013.

HUDLER, Daniel Jacomelli; TANNURI, Claudia Aoun. Lei Maria da Penha também é aplicável às transexuais femininas. Disponível em: . Acesso em: 8 out 2015.

LAURIA, Thiago. É possível aplicar a Lei Maria da Penha a lésbicas, travestis e transexuais?. Disponível em: . Acesso em: 8 out 2015.

SALIH, Sara. Judith Butler e a Teoria Queer. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.

[1] Aluna do 6° período noturno do curso de Direito, da UNDB.

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