Apenas um rapaz latino-americano
Por Osorio de Vasconcellos | 02/12/2010 | CrônicasEu estudava no Rio, mas naquele dia vinte e cinco de agosto de mil novecentos e sessenta e um, data da renúncia de Jânio Quadros, encontrava-me em São Paulo.
Alvo do acaso, nenhuma relação com os acontecimentos políticos, e muito à vontade no cenário romântico da época, já lá estava eu, na paulicéia, às oito horas da manhã, transportado nas asas de um convair da Cruzeiro do Sul, em voo de cortesia.
Em mil novecentos e sessenta e um, eu mal conseguia estudar, desgarrado em terras estranhas, cúmplice de uma paixão distante, de perfil diuturno e pertinaz.
Dito isto, entende-se que a renúncia de Jânio Quadros e o cocô-do-cavalo-do-bandido valiam a mesma coisa para mim.
A política que eu então fazia, sobre votar o céu à minha paixão, em cartas que , em fase de aguda lubricidade, eu mesmo selava com a própria língua, consistia em subir esporadicamente à tribuna da UNE, para defender algumas idéias que a banca universitária me ia apresentando.
A UNE, que à época exercia forte influência sobre o pensamento da classe estudantil, era um reduto de comunistas. De belos comunistas, diga-se de passagem, aformosados pelo fascínio de revoluções acadêmicas e remotas.
De tal maneira que raro orador podia prosperar ali, se não pautasse o seu discurso pela linha marxista-leninista, se não almejasse uma bolsa de estudos em Moscou, e se não entoasse loas a Fidel Castro.
Representando ser politicamente nada além de "um rapaz latino-americano, sem dinheiro no bolso", eu encarnava um ideal bem diferente.
Certa vez subi à tribuna da UNE para falar de reforma universitária, calcado em Ortega y Gasset. Resultado: virei reacionário. Não cheguei a ser vaiado, apenas ignorado.
Pra mim, tudo bem. Que me ignorassem à vontade. Afinal, quem precisava da aprovação da UNE? Não eu. Eu precisava apenas e exclusivamente do sufrágio da minha paixão, a cujo encontro, por obra caprichosa do destino, eu seguiria ainda naquela mesma data, mercê de outra cortesia, num constellation da Panair.
Mas, antes de embarcar, antes de me transportar à ribalta, antes de acumular as funções de ator e dramaturgo, e de me juntar aos demais protagonistas que acorreram à cena à revelia do enredo original, apresso-me em reconhecer que o termo ?paixão?, esse mesmo que acabo de usar três vezes, talvez não expresse com fidelidade, ou consistência, o sentimento que me unia àquela moça.
Nesse caso ― é justo questionar ― por que não substituí-lo por outro mais apropriado, quem sabe, por amor?
Eis aí uma boa pergunta a que me poderia esquivar, alegando cinicamente, como se costuma fazer hoje em dia, "liberdade de escolha". Ao invés disso, no entanto, prefiro analisar as razões específicas da preferência, que são três. Primeira: porque ?paixão?, menos nobre que "amor", descarta-se com facilidade em caso de falência. Segunda: porque "paixão", como o concorrente "amor", articula-se com muito desembaraço na moldura romântica dos anos sessenta. Terceira: porque, se fosse amor, teria deixado vestígios não apenas em um, mas em ambos os corações. Afinal, como ensinam os mestres, o impulso que guia e incita o amor pode vir a se cansar, mas o amor, em si mesmo, não cansa nunca.
Não! Certamente não foi "amor", se bem que circunstâncias históricas favorecessem a eclosão de um romance exemplar.
Nascida em seringais de meu avô, chegou à cidade ainda menininha, logo após a morte de seus pais, dizimados pela malária. Acolhida como neta, a contragosto de minha avó, como neta foi criada, e como prima por mim interpretada, até o dia em que ela completou doze primaveras e, dançando comigo, aceitou estremecida o aperto furtivo da minha mão três anos mais travessa.
Alcovitados pela paisagem, mas perseguidos de perto pelo cânon sócio-cultural, de pendor aristocrático e elitista, aprendemos desde cedo a tramar, sub-repticiamente, a nossa felicidade. Tanto foi assim que, ao cabo de nove anos, havíamos erigido nossa cumplicidade em jóia de artesanal lavor.
Artesanato heróico, inclusive em tempos de separação imperativa, como, por exemplo aqueles em que ela, por seis meses, desfrutou de uma bolsa de estudos na Universidade Patrício Lumumba, em Moscou, enquanto eu, universitário, exilado no Rio, escrevia-lhe, todos os dias, cartas febris, conforme ficou relatado atrás.
Agora já chega. Chega de antecipações. Chega de colocar o carro na frente dos bois. É hora de voltar ao aeroporto, tomar aquele avião aleatório, e deixar que o drama acerte o passo com a narrativa.
No aeroporto de São Paulo, excepcionalmente agitado com a renúncia de Jânio Quadros, encontrei um parente, médico alienista, que embarcava para o Norte, a fim de socorrer um paciente em crise. Sofrendo de acrofobia, ele se dispôs a pagar a minha passagem, se eu o acompanhasse.
Era pegar ou largar. Mergulhado provavelmente em intenso delírio amoroso, esquecido de mim, eu, que ainda não conhecia a receita de Pascal para a felicidade, peguei.
A viagem aconteceu, como aludi, a bordo de um constellation da Panair.
Ao desembarcar, notei que não desembarcava, mas começava a entrar em cena. Logo no primeiro ato, ao comando de um diretor esquálido e desgrenhado, avançou na minha direção um grupo de estudantes comunistas, meus contemporâneos de ginásio, ansiosos por notícias da crise política. Entre eles, destilando ironia pelos cantos da boca, o diretor posicionou uma linda moça, nada mais, nada menos que a minha paixão.
― Querida! ? foi tudo o que consegui pronunciar, antes de segurá-la pelos braços, e tentar sair dali com ela, em busca de privacidade.
― Corta! ― bradou o diretor ― esta cena não consta do script. Vamos filmar de novo. Câmera, ação!
― Querida! ― disse eu
― Como vai? ― respondeu ela, secamente, com o braço estendido, mantendo-me à distância e inibindo qualquer inflexão emocional.
― Vou bem, e você?
― O pessoal vai se reunir logo mais na sede do Grêmio, para discutir a crise política. Eles contam com você. Você vai?
Eu, repito, que ainda não conhecia a receita de Pascal para a felicidade, respondi:
― Vou.
Quando cheguei à sede do Grêmio, já passava das vinte e uma horas. A sala estava arrumada de modo a colocar frente a frente a banca dos expositores e a platéia. Eu encaminhei-me para a platéia, atraído pela presença da minha companheira, que ocupava lugar na primeira fila. Mas a meio caminho fui convidado a compor a mesa .
Honrado, embora relutante (eu ainda não conhecia a receita de Pascal para a felicidade, repito pela última vez, juro) acedi e, assim que me acomodei na cadeira, os meus olhos foram pousar na mão esquerda dela, a qual mão repousava, aconchegada, na mão direita de um vulto de homem.
Não deu para notar que sinais o casal mostrava nos respectivos rostos, porque eu só conseguia ver as duas mãos entrelaçadas.
Leitora romântica, o golpe foi certeiro. Rolava mais uma vez a cabeça do czar. Falência instantânea. Nada sobrara do capital amealhado pela emoção.
Estava ali deflagrado o repto de Karl Marx à poesia da vida. Consumava-se em gabinete a revolução que, ao cabo, a história não deixou acontecer.
Por muitos anos, os dois ainda mantiveram o mito de revolucionários, mas, ironicamente, numa configuração exemplar de ironia objetiva, acabaram morrendo ricos e gordos.
Morte recente. Nada a ver com a queda do Muro de Berlim.