Antropologia jurídica: ensaio acerca da assimetria entre a cosmovisão ocidental e as tradições do Sanatana Dharma no caso do matrimônio infantil na Índia

Por LUCAS LEIROZ DE ALMEIDA | 14/06/2018 | Direito

Resumo: Em artigo publicado em 2012, Domenico Francavilla trata da questão do casamento infantil na Índia de forma brilhante, trilhando uma série de conclusões resultantes de investigações profundas a respeito das tradições locais. O autor conclui em dizer haver um imenso desafio em se conciliar um ordenamento jurídico unificado na Índia com o multiversoétnico deste país, onde um número incontável de comunidades religiosas vive segundo um rol de normas locais, baseadas nas tradições sagradas, consolidando um direito informal hindu. O objetivo deste estudo consiste em aprofundar a pesquisa sobre o tema, percorrendo através de diferentes autores e teorias, os caminhos possíveis para a compreensão desta problemática, tão complexa aos acadêmicos ocidentais.

Palavras-chave: Antropologia jurídica, Teoria do Direito, Teoria da Justiça, Hinduísmo, Direitos Humanos.

Introdução: Constituindo um dos temas mais polêmicos nas discussões globais, a tradição do casamento infantil em determinadas comunidades hindus segue a ocupar lugar de destaque na Academia, tanto na Índia quanto no Ocidente.

É mister mencionar que, desde a colonização, passando pela independência e por todo o período da Índia soberana, medidas vêm sendo tomadas no sentido de compreender, conciliar, coibir ou mesmo erradicar o matrimônio infantil da realidade indiana. Porém, todos os esforços até hoje esbarram na mesma barreira, até hoje tida como intransponível: a extrema diversidade étnica e cultural indiana.

Num país de dimensões continentais, com a segunda maior população do planeta e marcado pela presença de uma variedade infinita de grupos religiosos completamente distintos entre si, é praticamente impossível falar-se em um ordenamento jurídico nacional unificado, que submeta todos os povos ali presentes a um mesmo poder central e sob as mesmas normas.

Investigando-se antropologicamente a Índia, percebe-se que a ausência completa de uniformidade neste país possui raízes tão profundas e antigas que dizem respeito à própria formação da Índia enquanto nação. Diferente não poderia ser, ademais, a questão do matrimônio infantil, que está intimamente ligada a eventos históricos marcantes na formulação identitáriada parcela hindu da totalidade indiana.

Em um mundo globalizado e unipolar, onde prevalece a hegemonia ideológica liberal-ocidental, pautada no legado dos Direitos Humanos e no poderio das Nações Unidas, a assimetria entre as realidades indiana e ocidental-global tende a crescer, implicando em consequências diversas, quanto mais em um país com forte potencial de crescimento econômico e militar. A investigação deste choque de realidades e de possíveis soluções para os questionamentos jurídicos daí provenientes são os enfoques do presente ensaio.

I – A percepção equivocada da espiritualidade hindu no Ocidente

É comum ver vendida no Ocidente uma imagem conturbada e problemática da espiritualidade hindu. A construção teórica da existência de algo como um “hinduísmo” é viciada à medida que faz subentender a ocorrência de uma unidade espiritual hindu, de algo forma ligada e institucionalizada.

Este conceito precipitado é originário única e exclusivamente de uma análise equivocada e unilateral de acadêmicos ocidentais pouco preocupados com uma análise profunda da realidade indiana. Isto diz-se em razão de não haver qualquer unidade naquilo a que se costuma achar de hinduísmo, sendo um conjunto aleatório e desorganizado de tradiçõesiniciáticascujas origens remontam à invasão ariana do terceiro milênio antes de Cristo, cujos traços comuns se limitam ao compartilhamento das escrituras védicas, não havendo qualquer unidade entre as múltiplas tradições que delas compartilham, muito menos se deve falar em institucionalidade ou dogmática e ritualística unificadas.

Entre os estudiosos das religiões comparadas, a denominação hinduísmo já se revela viciada,como bem se pode verificar entre os Eranos, tais como MirceaEliade e Heinrich Zimmer, exímios estudiosos da experiência e da arte religiosas na Índia. Porém, em termos quantitativos e midiáticos, prevalece a terminologia empregada por esta parcela de pesquisadores que, de forma unilateral, tenta empregar a cosmovisão ocidental na compreensão do fenômeno religioso hindu, o que inevitavelmente ocasiona vícios diversos.

A compreensão desta confusão terminológica é fundamental para o desenvolvimento de um estudo de antropologia jurídica, pois se revela essencial para um entendimento adequado acerca da diversidade étnica e espiritual da Índia, característica tão marcante que torna inválido ou indigno de reconhecimento qualquer estudo que a ignore.

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