Antropologia da saúde ou sobre o medo da doença e da morte

Por NERI P. CARNEIRO | 29/10/2013 | Filosofia

Antropologia da saúde ou sobre o medo da doença e da morte

 

Neri de Paula Carneiro

Mestre em Educação, filósofo, teólogo, historiador

Rolim de Moura - RO

O ser humano nasceu para morrer. Essa é uma das poucas verdades irrefutáveis com as quais o ser humano se depara ao longo de seu caminho para a morte. Pode até ocorrer que a pessoa não aceite, tenha medo, não entenda o fenômeno... mas desse ponto final não há escapatória.  Sendo inevitável, a morte deveria ter uma aceitação pacífico, natural, sem traumas. Entretanto ocorre o contrário por isso podemos dizer que a não aceitação da morte manifesta um  problema: se nascemos para morrer por que tememos a morte?

Quais as dimensões ou nuances desse problema? O ser humano nasceu para morrer, mas teme a morte. Por ter medo da morte o ser humano desenvolveu técnicas de preservação da vida. Por medo da morte o ser humano tenta preservar a saúde ou prolongar o viver. Por medo da morte ao longo de milhares de anos de existência, o ser humano criou ritos e religiões, deuses e demônios (aqui entendido como entidade maléfica e não como indica a etimologia grega, como força motriz), cultos e símbolos...

É claro que se pode fazer um discurso sobre a importância da saúde, mas isso não invalida a afirmação do medo da morte. Aliás, a saúde aparece como sendo mais ou menos importante na relação inversa ao maior ou menor medo ou receio em relação da morte. A busca pela saúde reforça e evidencia um medo: o medo de, não tendo saúde, morrer.

Mas o que produz o medo da morte? Por que o ser humano teme a morte?

Podemos dizer que o medo da morte tem a mesma explicação que se pode dar em relação aos outros medos. O que produz o medo é a sensação de insegurança, de incerteza, de desconhecimento. De modo geral as pessoas não se sentem confortáveis diante de situações novas ou cujo desfecho é desconhecido. A morte, por excelência, é o definitivo confronto com o desconhecido.

Num raciocínio silogístico, podemos explicar a causa desse medo. O desconhecido produz medo; a morte é um encontro definitivo com o desconhecido, portanto ele é a causa suprema dos medos. Caso soubéssemos como é e o que nos reserva a morte, não a temeríamos: tratar-se-ia de um destino conhecido. O cristão, num olhar de fé, pode dizer que esse é um mergulho no absoluto. “Minha alma está inquieta enquanto não repousa em Deus” disse Santo Agostinho. Por seu lado o incrédulo diz que se trata de um salto no desconhecido, incerto e, portanto, perigoso...

Também é verdade que em resposta a esse medo criamos deuses e exorcizamos demônios. Não porque adoramos aos deuses, nem porque tememos os demônios, mas porque com isso nos sentimos mais fortes. Como a nos preparar para uma guerra, que já sabemos perdida, mas que teimamos em lutar aliando-nos a uns para enfrentar a outros.

A morte: um discurso sobre o desconhecido

Que o ser humano teme a mote já o dissemos e nem se precisa de muitos argumentos para comprová-lo. A questão é buscar os porquês desse medo. E para isso existe uma resposta: teme-se não a morte, mas o desconhecido que ela representa.

Na realidade é quase um contrassenso tentar entender a morte. Primeiro porque não temos como falar dela; depois porque tudo que dissermos são apenas suposições e inferências e nunca resultado de comprovações experimentais. Todos os que a experimentaram não nos podem narrar as sensações. Além disso, a nossa impressão pessoal não será passível de transmissão. Essa é uma experiência única, pessoal e intransferível. Com base nisso é que podemos dizer que a morte é uma dessas realidades para as quais não existe possibilidade de fazer a experimentação.

Portanto, quem fala da morte são os vivos uma vez que o morto não tem um discurso para o vivo. Sendo um discurso de vivos, a morte é aquela realidade sobre a qual podemos falar, mas que sempre admitirá a indagação: “Será?”. Isso porque tudo que se pode dizer será sempre por aproximação, nunca pela experiência.

Daí que o discurso sobre a morte será sempre um discurso cultural. Não temos como falar da morte a não ser a partir daquilo que sabemos por ver e por convivermos com as reações a que temos aceso. Por isso podemos falar sobre como as pessoas agem e reagem diante da morte; sobre o que as pessoas dizem a respeito da morte... como as pessoas lamentam a “perda” de um ente querido ou como se consolam diante dessa fatalidade. Mas sempre será um discurso de vivos; de uma expectativa de vivos pois o morto está, definitivamente, desligado das nossas relações. Vemos o morto, mas não temos acesso à sua experiência. A experiência que temos da morte é a de um vivo: trata-se de ver o outro, refletir o outro, analisar o outro, mas sem ser o outro.

Podemos dizer que a experiência mais próxima que temos da morte é o sono. Mas também aqui se trata de uma analogia, pois não sabemos o que ocorre conosco durante o sono. Ate podemos gravar reações do corpo, impulsos mentais... Mas não temos consciência das reações. E mesmo essas gravações são superficiais e exteriores. Não são o sono nem a sensação do sono. Para tudo o que possamos dizer sobre o que sentimos no momento do sono será sempre uma sensação sobre algo de quê não temos consciência e que pode se tratar de um sonho. E dos sonhos ou a partir dos sonhos (sonhos bons ou pesadelos) é que podemos fazer uma analogia com a morte, dizendo que nela tem um lado divino e outro diabólico.

Sendo assim, tudo que dizemos sobre a morte será sempre um discurso sobre o desconhecido.

A saúde do corpo e da alma

Essa é uma expressão bastante surrada. Mas ainda atual: o ser humano anseia e deseja possuir saúde para o corpo e para a alma. Por isso buscamos medicamentos e orações. Os medicamentos para preservar ou curar o corpo e as orações para manterem a força da alma.

Por outro lado, é bastante comum não nos darmos conta de que somos um emaranhado de células que formam um corpo e que esse corpo não é a única dimensão do nosso ser. Ou seja, somos mais do que o corpo. Entretanto nem sempre nos damos conta dele. Pior ainda, não nos damos conta de que existimos para além da corporeidade: ou supondo a existência de uma vida pós morte ou porque permanecemos vivos na memória de quem nos conheceu.

Além disso, que é esse sopro vital inexplicável que mantém a corporeidade? Para os latinos ele é a “anima”. Os gregos diziam que esse princípio vital era produzido e mantido por um demiurgo. Os cristãos crêem na criação divina... o fato é que povos diferentes em tempos e locais diferentes atribuem a fonte da vida a algo que vai ou está além do humano. Daí que desde a antiguidade a preocupação com a manutenção da vida e da saúde esteve envolvida com aspectos religiosos. E, nesses tempos remotos, a preocupação em preservar a saúde envolvia o corpo – para isso os diversos unguentos – e a alma – para a qual se faziam as diferentes preces.

O fato é que não nos darmos conta da saúde, quando usufruímos dela. Em consequência a doença se torna um pesadelo, pois nos atinge de forma inesperada. Quando estamos com saúde, em geral, não desenvolvemos práticas para sua preservação. Por isso é que, de modo geral, nos damos conta da necessidade da saúde apenas quando estamos doentes. É para enfrentar a doença e não para preservar a saúde que criamos diferentes e diversos artifícios: os medicamentos (frutos da ciência ou oriundos do saber popular); os mecanismos para ensinar a curar (a medicina ou os rituais mágicos da “benzeção”, despachos e patuás além de diferentes ritos de passagem); as pessoas que escolhemos como nossos médicos ou curandeiros... E se observarmos bem veremos que tanto no universo da ciência da saúde (medicina) como no meio popular aquele ou aqueles que tratam da saúde são auxiliados por um grupo de curandeiros intermediários: os “aprendizes de feiticeiro” ou os enfermeiros e farmacêuticos.

 Além disso, criamos, também a partir de cada cultura: os ritos de benzimento, os chás e simpatias, a homeopatia e a acupuntura... as farmácias e os hospitais...  Além dos planos e sistemas de saúde. Nos dias atuais podemos observar que existe, também como elemento cultural, uma espécie de hierarquia de preferências: no mundo ocidental e letrado os médicos aparecem como semideuses e as benzedeiras, os curadores, os pais e mães de santo... são tratados ou vistos como ignorantes, charlatães, aproveitadores... Entretanto se é verdade que entre estes existem os aproveitadores, entre os médicos não são poucos os mercenários.

E não nos esqueçamos que durante milhares de anos a medicina mais eficiente eram as rezas dos anciãos, dos pajés, ou dos xamãs. A medicina, como ciência da saúde, vem se desenvolvendo há vários séculos, mas nasceu do mundo da magia e dos caldeirões dos bruxos e feiticeiros.  E hoje, podemos dizer que se por um lado a ciência médica se ocupa com a saúde do corpo os benzedores e curadores estão bastante próximos daquilo que seria a cura da alma, pois enquanto a medicina estabelece uma relação fria, calculada e impessoal os ritos da cura popular se faz com gestos e palavras carinhosas.

Mas em todos os casos, tanto no universo do saber popular como nos ambientes envolvidos com a ciência médica, o propulsor da busca pela saúde permanece sendo a mesma: postergar o confronto ou o encontro definitivo e inevitável.

A proteção dos deuses

Vimos, portanto, que o medo da morte nos leva a procurar a cura da doença para a restauração da saúde.

Como em geral não atentamos para a saúde preventiva somos atingidos pelas enfermidades. Contra elas invocamos nossos deuses e exorcizamos os demônios. Ao longo da história da saúde – ou da fuga da morte – inclusive em nossos dias, não é raro que o enfermo apele para seus deuses. E faz isso antes de procurar os curadores (médicos ou feiticeiros).

A oração é um apelo ao divino, pois os deuses podem, num ato miraculoso, promover a cura e, com isso, afastar o espectro da morte. Entretanto, como nem sempre a oração oferece a cura imediata, nem o milagre ocorre de prontidão, o enfermo busca a ajuda dos semideuses. Estes, com poderes e instrumentos intermediários, agem com maior eficiência que os deuses – pois são representados por elementos ou coisas palpáveis: o amuleto, o processo do benzimento, o chá, o medicamento sintetizado. Assim a farmácia ou a casa de ervas passam a ser templos onde o enferme se socorre num ato de fé na cura.

O fato é que, em todos os casos, as intervenções são mediadas por semideuses que se utilizam de seus recursos, naturais ou fabricados. Esses semideuses, auxiliados pelos anjos protetores que tanto podem ser os enfermeiros como aqueles que prestam ajuda aos curadores populares, intercedem e confortam o enfermo. Quando se trata de um hospital, por exemplo, esses anjos por vezes são mais presentes e miraculosos que os próprios deuses e semideuses. Em muitos casos são eles os primeiros intercessores junto ao enfermo para livrá-los ou confortá-los encorajando-os e fortalecendo a esperança de restauração da saúde no confronto com a morte.

Assim, para se esquivar da morte o ser humano tenta preservar a saúde. Disfarça o medo da morte em atitudes de busca pela saúde. Apela para todas as divindades e para todos os recursos que lhe permitam fugir de seu encontro definitivo.

Por isso podemos dizer que o ser humano, nascido para morrer, tenta fugir ao seu destino. Por isso, ao longo de milhares de anos desenvolveu mecanismos para enfrentar a morte. Talvez menos por acreditar na possibilidade de superá-la, mas principalmente porque descobriu que pode criar artifícios com os quais pode ludibriá-la, adiá-la, prolongando a vida e mantendo-se afastado do ponto definitivo e temido: o encontro com a morte.