ANTES TARDE DO QUE NUNCA

Por Vania Gomes da Silva | 03/04/2010 | Contos

            Naquele sábado ensolarado, que mais parecia cheio de nuvens negras, Donana cortou o bolo em fatias finas e embalou pedaço a pedaço com guardanapos de papel, colocou as torradas no saquinho da padaria e acomodou tudo na sacola da quitanda da esquina. Pegou sua bolsa, guardou o dinheiro da passagem no bolso da calça jeans e foi para o ponto de ônibus.  Podia ver outras mulheres como ela, mas certamente nenhuma delas ali, esperando o ônibus, tinha o mesmo destino de Donana.

            O ônibus passou um pouco cheio e uma jovem mulher, educada e com um olhar triste, cedeu seu lugar para aquela senhora quase obesa, já perto de seus sessenta anos, de respiração ofegante.  Donana agradeceu a gentileza e ofereceu-se para levar a sacola da moça. Reconheceram-se num olhar. Ambas estavam a caminho daquele inferno na Terra, cumprir com suas obrigações de mulheres que amavam.

            Desceram do ônibus conversando. A mulher parecia não ter mais que quarenta anos, mas Donana descobriu que ela tinha apenas vinte e cinco. Como Donana, sua vida era sofrida. Trabalhava como empregada doméstica num elegante bairro da cidade e seu salário sustentava a única filha, com muita dificuldade. “Sorte que tem apenas um filho. Eu tive quatro e criei-os praticamente sozinha com meu salário de faxineira em condomínios.” A moça concordou, dizendo que já havia decidido não ter mais filhos. Queria poder dar um pouco mais de conforto à sua filha, queria que ela estudasse, fizesse faculdade. E sabia muito bem que não poderia contar com o pai dela.

            A fila no portão já estava grande. Uma a uma as mulheres entravam, passavam pelo detector de metais e esperavam em pé em uma sala. Quando entravam, sozinhas, suas sacolas com lanches eram revistadas, enquanto despiam-se. Nuas, eram apalpadas por uma agente, que verificava se não escondiam algo embaixo dos seios e banhas. Depois, eram colocadas em pé com as pernas abertas sobre um espelho de aumento e a agente conferia se não levavam drogas escondidas na vagina. Deprimente. Para Donana, essa era a pior parte do dia quando visitava o filho preso. Chorava todas as vezes e sempre perguntava se era mesmo necessário, já que ela era uma senhora honesta. A agente, um brutamonte que mais parecia um homem, apenas respondia secamente: “Muita gente parece ser e não é.” Donana vestia-se o mais rápido que conseguia, já que não era muito ágil por causa da gordura. Lavava o rosto, secava as lágrimas e ficava esperando em outra sala, com outras mulheres que já haviam sido revistadas.

            Quando a sirene soava, adentrava o presídio. Lá estava ele, mais magro mais triste. Depois de abraçar a mãe, perguntou pela esposa e Donana restringiu-se a dizer: “Ficou em casa, cuidando do Juninho. Passou bem esses dias?” “Sim”, respondeu o filho, com tristeza no olhar. Donana sabia que ele sentia falta da mulher, que só o visitara uma vez durante aqueles dois anos em que estava preso. Donana não tinha coragem de dizer-lhe que a mulher saía todas as noites e voltava bêbada, de madrugada. Passava o dia dormindo e quem cuidava do Juninho, enquanto Donana trabalhava ou visitava o filho, era a neta mais velha, que tinha dezesseis anos. “Trouxe bolo e torradas, filho. Ah! Trouxe também seu remédio.” “Que bom, mãe!”, esboçou um sorriso nos lábios. “Mãe, diga a Paula para vir na próxima visita. Por favor, fique com Juninho.” A mãe fez que sim com a cabeça e baixou os olhos. Já pedira mil vezes à nora para ir visitar o filho, mas a vagabunda, além de nunca ir, sequer perguntava sobre ele.  Donana sofria em silêncio. Enquanto o filho comia o pão que o diabo amassou, preso, sem liberdade para ir ao banheiro, a nora saracoteava todas as noites. Não a expulsava de casa, porque não queria se afastar do neto, a quem mais amava no mundo. Sabia que a criança sofreria, porque o amor de mãe que recebia era todo de Donana.

Donana contou as novidades ao filho, recomendou-lhe cuidados com a saúde. O filho contou-lhe que estava trabalhando e deu-lhe um pouco de dinheiro que ganhara como aprendiz de marceneiro. “Para ajudar nas despesas com o Juninho”, disse. A sirene soou. Donana abraçou e beijou muito o filho. Era sempre triste a hora da despedida, mas nesse dia Donana sentiu um misto de tristeza e felicidade. Saber que o filho podia sair da prisão, dali a cinco anos, com a profissão de marceneiro a enchia de orgulho. Assim, não precisaria mais ser laranja de traficantes e acabar preso, condenado por tráfico de drogas. Seria um trabalhador honesto, largaria aquela mulher à toa com quem vivia e criaria o filho. Quem sabe não arrumasse uma moça direita, trabalhadora e honesta e se casasse de novo? Sim, havia esperança de dias melhores. Antes tarde do que nunca!

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Belo Horizonte, 03 de abril de 2010.