Anorexia E Histeria
Por Claudio de Almeida Rio | 07/02/2008 | PsicologiaEmbora Fendrik já tenha falado de uma epidemia anoréxica entre os séculos XIII e XIV, somente no século XIX elabora-se o conceito de anorexia nervosa, passando as jovens jejuadoras a ser consideradas doentes. Assim, pode-se atribuir a Lasègue apud Cobelo, que em 1873 iniciou na França um trabalho acadêmico sobre anorexia nervosa, o início dos estudos científicos do transtorno em questão.
O trabalho do autor mencionado destitui definitivamente a anorexia do campo espiritual, como era vista na Idade Média, passando a patologia a ser abordada pela Medicina e ciências afins. O referido transtorno alimentar passou a ser visto sob a ótica psíquica. Pode-se afirmar que as anoréxicas só passaram a existir como sujeito a partir do momento em que foram inscritas num discurso, o que, sem a contribuição de Lasègue, não teria ocorrido na época.
Na Psicanálise, a primeira publicação em que se observa um caso de anorexia, é o texto de Freud Um caso de Cura pelo Hipnotismo (1892-93), em que é apresentado o caso de uma mãe com dificuldades para amamentar seus filhos. Aos poucos, a anorexia vai-se tornando objeto de estudo no campo da saúde mental e os sintomas das anoréxicas vão ganhando credibilidade no meio científico, saindo do campo religioso ou da visão de se tratar de uma simples falta de apetite.
Já em 1895, Freud publica o caso de Emmy Von N., em que a paciente apresentava como sintoma grande rejeição à comida. Freud relata que, nas sessões de análise da referida paciente, ela afirma que após a morte do seu marido, deixou de ter apetite, resumindo-se a alimentação à mera supressão de uma necessidade. Emmy não bebe água, afirmando que esta lhe faz mal à digestão, restringindo a ingestão de líquidos ao que ela chama líquidos espessos, ou seja, leite, café ou chocolate. Freud aponta para sinais de uma escolha neurótica. Ainda no mesmo texto, Freud relata uma historia de conflitos vividos por Emmy, quando criança, em relação à comida: a mãe, muito severa, a obrigava a comer a carne que tivesse deixado no prato, duas horas depois de terminada a refeição. A carne fria, dura e gordurosa no mesmo prato era desencadeadora de grande repulsa. Além disso, Emmy tinha muito medo de ser contaminada pela doença de seus irmãos, mas mesmo assim comia à mesa com eles, para que ninguém soubesse da enfermidade.
Começa a se estabelecer o caráter psíquico do comportamento anoréxico, uma vez que começa a ser observado que tal atitude vem, via de regra, antecedida de conflitos na infância, sempre ligados à ingestão forçada do alimento, ou de uma dinâmica similar no campo afetivo, o que denota que a recusa é uma recusa para fazer-se sujeito, na tentativa de inscrever o direito de negar a comida ou de comer nada e, sobretudo, negar o que se deseja, mas não foi ofertado convenientemente.
Na anorexia, ao contrário do que se costuma imaginar, a paciente não sofre de falta de apetite, o que vem contrariar a própria etimologia, mas recusa veementemente aquilo que mais deseja: o alimento. Cabe-nos agora definir alimento e enveredar-nos por seus significados no psiquismo humano, pois, para a criança, a amamentação supre simultaneamente a fome e a necessidade de afeto, numa relação objetal que vai ser determinante no enlaçamento afetivo entre mãe e filha.
Num processo substitutivo, o seio e o leite tendem a dar lugar a outros objetos, mas com significados preservados. O afeto materno tende a encampar novos significantes e o leite é naturalmente substituído por outros alimentos; desse modo, afeto e alimento se dissociam e, muitas vezes, surge a dificuldade nessa relação que deveria ser uma continuação natural da anterior. Se a amamentação conciliava amor e supressão da fome, na adolescência isso já não ocorre e duas necessidades distintas se instauram no sujeito. O comportamento anoréxico normalmente aparece quando há oferta de comida, assim como de outros objetos, mas falta o afeto, que antes era ofertado de forma conjugada com o alimento. Ocorre ainda de ser ofertado afeto, mas com roupagem de objeto, como se a demanda por afeto fosse uma relação objetal.
Para a anoréxica, recusar o alimento significa recusar o enlaçamento afetivo deficitário. A fome existe e muitas vezes ocorre a ingestão compulsiva de comida, mas é necessário expurgar o que não veio da forma adequada e desejada. Daí vem a recorrente conciliação de anorexia com bulimia.
Embora Freud tenha-nos apresentado diversos conceitos que muito nos ajudaram a compreender a anorexia, ele nunca dedicou um texto exclusivo ao assunto, o que veio acontecer em publicações de autores que o sucederam. A concepção da anorexia a partir do enlaçamento afetivo entre mãe e filha, assim como o significado da alimentação nas primeiras relações objetais são abordagens relativamente recentes. M. Selvini-Palazzoli (1999) relaciona as dificuldades nas relações objetais com experiências corporais de caráter patológico. Segundo a psicanalista, uma relação mãe-filha emocionalmente perturbada provoca no corpo da filha, sensações de alienação, de imperfeição e de descontrole. Essas sensações, quando reprimidas, promovem a passagem ao ato, por meio de condutas anoréxicas.Tais assertivas conduzem-nos ao caráter sistêmico da anorexia, que tem, indubitavelmente, começo meio e fim nos óbices do romance familiar.
Especialmente na histeria, o sintoma é uma importante forma de efetuar uma demanda e ele tem a função de expressar uma pergunta do sujeito, no entanto, é inerente à histérica inferir as próprias respostas de modo a sustentar a falta da satisfação de seus desejos e, na anorexia, evidencia-se que a demanda está na dimensão do desejo, o que a destitui do lugar de necessidade. Diante da capacidade de controlar seus desejos, a anoréxica renuncia ao que na verdade é demanda.
Essa dinâmica torna cada vez mais frágeis os limites entre a vida e a morte, mas a anoréxica mantém-se nesse limiar perigoso, em que se instaura um nefasto jogo com o Outro, de modo que seu gozo se sobrepõe à própria integridade.
Freud deu voz às histéricas e, com isso, foi capaz de traduzir o funcionamento do inconsciente e analisar o sofrimento psíquico que as acometia. Os sintomas em geral ganharam um novo status, que desfaz a idéia de que se requeria intervenção medicamentosa. Com isso, entre outros quadros de histeria, as anoréxicas ganharam a dignidade de quem apresenta sofrimentos originados no inconsciente.
A anorexia, enquanto sintoma neurótico, apresenta um quadro de compulsão, em que emagrecer a qualquer preço seria a demanda secundária, uma espécie de justificativa para um comportamento incompreendido, quando na verdade a anoréxica está continuamente endereçando expressiva mensagem ao Outro, abstendo-se inclusive de qualquer dizer, o que é característico da própria da pulsão de morte.
Num contexto analítico, cabe ao profissional dar voz à paciente anoréxica, de modo a explorar uma possível demanda a ele endereçada, movimento que, quando praticado pela paciente, viabiliza a transferência e a definição da direção do tratamento.
Não se podem ter esses dados como regra geral, mas a literatura específica indica que a anorexia normalmente surge na puberdade, o que, via de regra, coincide com a iniciação sexual da paciente, época em que normalmente se intensificam os conflitos entre mãe e filha. É fácil compreender essas coincidências, uma fez que a adolescente, ao tornar-se mulher, vê intensificada a competição travada com a mãe, movimento este instaurado ainda na fase edípica. A adolescente passa a ter uma relação com o corpo comprometida, pois a insegurança inerente à histeria coloca em cheque a legitimidade da passagem à condição de mulher, especialmente porque é comum a mãe continuar a ver os filhos adolescentes como crianças e a tratá-los como tal. O olhar da mãe acaba por trazer intenso desconforto e a recusa ao alimento reflete a recusa à dinâmica familiar que se tenta impor. Como alimento e afeto se permeiam no inconsciente, aquele se torna eficaz instrumento de repúdio à postura materna.
A paciente anoréxica costuma apresentar falas do tipo nada tem graça na minha vida, pois nada é tudo que ela se propõe a receber, é tudo que ela tem, tornado este nada um objeto com o qual ela interage em todos os segmentos de sua vida, inclusive na esfera sexual, pois ele passa a ocupar status prioritário na economia libidinal do sujeito.
Cuidado especial deve ter o analista ao verbalizar para a paciente seu diagnóstico. A convicção de ser anoréxica pode colocá-la num lugar estanque emascarar sua relação particular com seu sintoma. É justamente a partir dessaparticularidade que se deve investigar a relação da anoréxica com seu desejo.É comum ouvir-se das pacientes engajadas no tratamento falas do tipo "eu queria muito sentir desejo, mas não sinto", o que é perfeitamente compreensível, já que ela se furtou de seus desejos, proibiu-se de ter prazer e goza essencialmente na falta, como é inerente à histérica. O que mais preocupa o analista, no caso da anorexia histérica, é que essa falta extrapola o desejo de afeto, pois a paciente atua no corpo, num processo de autodestruição.
É improvável que venha surtir qualquer efeito positivo falar para a anoréxica que ela precisa comer. Isso é tudo que ela não quer ouvir. Deve-se explorar o enlaçamento afetivo no âmbito familiar, pois, uma vez atenuada a recusa de afeto, que é a demanda primária no sintoma aqui tratado, a tendência é a paciente começar a se abrir ao recebimento de algo mais além do nada a que ela se restringia. Com isso, busca-se o encontro da paciente com novas formas de gozo, que possam se aproximar mais do prazer.
Ainda existe uma expressiva corrente que aborda a anorexia segundo uma ótica social, em que o transtorno é atribuído ao ideal de magreza preconizado pelo meio. No entanto, a veiculação desses ideais influenciaria apenas uma pequena parcela da sociedade. Podemos, dessa forma, entender que a anorexia encontra-se num contexto muito mais particular, ou seja, cada anoréxica tem a sua própria anorexia vinculada a uma história de vida. Sem dúvida, encontramos muitas interseções entre os diferentes históricos de mulheres anoréxicas e isso nos remete a considerar o viés afetivo como determinante, mas abordar todos os casos sob uma só ótica seria uma conduta bastante simplista e equivocada, especialmente se atribuirmos os sintomas a influências de uma sociedade que preconiza o ideal de um corpo magro.
Por isso, é oportuno escapar do engessamento da medicina que apresenta como tratamento para a anorexia a ingestão de remédios associados a alimentos. Seria simples trabalhar com os casos de distúrbios alimentares sob essa ótica, desde que fosse uma abordagem eficaz. No entanto, não se obtêm resultados satisfatórios tratando o corpo da paciente, pois não é ele que está adoecido. Faz-se mister o exercício da escuta, dar voz a quem sofre para que se possa conhecer o sofrimento, pois este sim deve ser combatido. A experiência clínica tem mostrado que a escuta transforma o paciente em sujeito e é esse sujeito que, ao emergir, vai trabalhar em prol da própria cura. É importante que se compreenda que, no caso da anorexia, não há cura sem o desejo da paciente e tal desejo só surge a partir da subjetivação dessa paciente. Portanto, apagar o sujeito enchendo-lhe a boca de comida e dopando-o com psicofármacos só agravará a falta de identidade e de desejo.
Assim como a paciente de Freud, no caso da Bela Açougueira, pede ao marido que a mantenha insatisfeita em seu desejo, a anoréxica não come, ou come o nada, com o mesmo intuito de deixar vazia a lacuna do desejo. O desejo da anoréxica é um desejo de nada; recusar o objeto da necessidade é fundamental no jogo que ela impõe, pois a demanda é de amor, por isso é importante, nesse contexto, que não sejam ofertados apenas objetos necessários, mas que seja sinalizado o amor.
A relação infantil entre sujeito e objeto tem um viés narcísico, pois são esperados objetos carregados de afeto para que a oferta seja completa e possa suprir a demanda; no entanto, a dissociação entre as duas intenções no momento da oferta transforma o que é oferecido em um objeto parcial, o que gera expressivo abismo nessa interação e o surgimento do objeto do desejo.
Observa-se, no comportamento anoréxico, que o sujeito abandona o desejo de alcançar o objeto capaz de atenuar sua excitação. Essa renúncia decorre da ausência da satisfação esperada e o inconsciente é remetido à tentativa de efetuar alterações no real, o que o faz passar ao ato. Nesse processo é deixado de lado o princípio do prazer e adotado o princípio da realidade.
Segundo Lacan (1957-1958), a identificação na demanda é feita com o objeto do sentimento, pois a intersubjetividade só se instaura a partir da fala do Outro e o desejo reside nos interstícios entre os significantes dessa interação. No tocante a esse posicionamento do sujeito perante o desejo, o próprio Lacan mencionou a dificuldade que o sujeito encontra para fazer a distinção entre ele mesmo e o Outro, citando a ênfase que Freud dá ao valor sintomático do momento da infância em que a criança crê que seus pais são capazes de conhecer todos os seus pensamentos. Eis o motivo pelo qual a origem dos pensamentos do sujeito situa-se na fala do Outro.
No campo da demanda, existe significativa reciprocidade entre o sujeito e o Outro, pois cabe ressaltar que não só o desejo depende do Outro, mas o que o Outro demanda também depende do sujeito, o que se explicita na constatação de que a criança percebe possuir uma moeda de barganha a ser usada na relação com a mãe e, controlando a evacuação, a criança atua ativamente no jogo da dialética do desejo e da demanda. Comportamento similar tem a filha que promove na mãe intensa angústia, ao recusar o alimento.
Lacan aponta também para o sujeito que se reconhece como submetido às leis da linguagem. As necessidades e os desejos do sujeito manifestam-se por meio da linguagem, que é dirigida ao Outro e a fala retorna ao sujeito alienada na fala do Outro, que responde à demanda.
Na posição de grande Outro, a mãe interpreta o choro do bebê, atribui a ele um sentido e, a partir desse sentido, oferta o que ela entende como demanda. A criança se faz sujeito e demanda num jogo em que exige a presença da mãe, de modo que a eventual falta do objeto faça surgir tal demanda. Lacan (1958) refere-se a essa demanda como algo distinto das satisfações por que a criança aparentemente clama, tratando-se de uma demanda de presença ou ausência. A mãe, neste caso, situa-se aquém dos desejos que possa suprir.
Se, por um lado, a necessidade aponta para o instinto, a demanda está ligada à pulsão. Lacan (1960) define instinto como o conhecimento necessário à satisfação das necessidades naturais do ser vivo. No transtorno em estudo, cabe-nos focar a atenção não no instinto, mas na pulsão, que, diferentemente do instinto, abarca um saber que não tem a ver com conhecimento. A demanda está intimamente ligada à pulsão e ao estado de insatisfação do sujeito, que transforma tudo em prova de amor, além de anular as particularidades de cada objeto. É a demanda que anuncia o desejo, sendo ela articulável na cadeia de significantes e sua diferença estrutural em relação à necessidade estabelece o diferencial nessa articulação. Sob essa ótica, o desejo nada tem a ver com necessidades frustradas, pois ele é inerente ao sujeito e nenhuma satisfação obtida no campo do real é capaz de eliminá-lo, o que sustenta a existência do sujeito da falta.
Na anorexia, o sujeito estabelece uma relação peculiar com o alimento ofertado pelo Outro e, fazendo equivalência entre esse alimento e o desejo do Outro, ele desenvolve sintomas que não só tentam dar sentido, mas buscam respostas com relação a esse desejo. O alimento transforma-se, portanto, em moeda de troca na busca de respostas sobre o desejo do Outro.
Pode-se deduzir daí que o sintoma anoréxico, embora introduza um não que estabelece um distanciamento entre o sujeito e o Outro, vai além de uma simples posição desejante desse sujeito, mas marca o gozo onipotente da introdução da falta no Outro. Desse modo a anorexia aponta para uma postura radical, em que a negação imperativa marca o modo precário de enlaçamento com o Outro e, como ela reside no campo do desejo, não há supressão de necessidade que a contenha. Cabe, portanto, ao analista promover uma mudança de posição do paciente com relação ao Outro, de modo que, mesmo com seus desejos insatisfeitos, o sujeito seja capaz de suportar o real sem desencadear um confronto com esse Outro, o que acaba por desencadear um nefasto processo autodestrutivo.