Anomia

Por Josi Käfer | 06/12/2010 | Direito

Segundo Durkheim (apud Giddens, 2001), a palavra anomia significa um sentimento de falta de objetivos ou de desespero, provocado pela vida social moderna. Foi com esse entendimento que Durkheim usou a palavra pela primeira vez, em seu famoso estudo sobre a divisão do trabalho social, num esforço para explicar certos fenômenos que ocorrem na sociedade.
[...] Os controles e os padrões morais tradicionais, que costumavam ser fornecidos pela religião, são largamente derrubados pelo desenvolvimento social moderno, e isso deixa muitos indivíduos em sociedades modernas sentindo que suas vidas cotidianas carecem de significado. (DURKHEIM apud GIDDENS, 2001, p. 31).
Conforme Costa e Andrade (1985), no quadro social de uma subcultura delinquente podem perfeitamente existir normas de condutas dotadas de particular intensidade, embora divergentes das normas de cultura dominante ou com elas conflitantes. Assim sendo, pode-se afirmar que a anomia indica desvio de comportamento, que pode ocorrer por ausência de lei, conflito de normas, ou ainda desorganização pessoal.
O estudo de Durkheim (2003) sobre o suicídio mostrou que os humanos vêem a si mesmos como indivíduos que têm liberdade de arbítrio e de escolha, porém seus comportamentos são frequentemente padronizados e moldados socialmente e mesmo um ato altamente pessoal como o suicídio é influenciado pelo mundo social.
Conforme Giddens (2001), os processos de mudança no mundo moderno são tão rápidos e intensos que originam dificuldades sociais, podendo ter efeitos aniquiladores em estilos de vida tradicionais, em crenças morais, religiosas, e em padrões cotidianos sem fornecer novos valores claros. Durkheim ligava essas condições inquietantes à anomia, que segundo ele, é um sentimento de falta de objetivos ou de desespero, provocado pela vida social moderna.
Durkheim via o crime e o desvio como fatos sociais; acreditava que ambos fossem elementos inevitáveis e necessários nas sociedades modernas. De acordo com Durkheim, as pessoas da era moderna são menos constrangidas do que aquelas das sociedades tradicionais. Havendo mais espaço para a escolha individual no mundo moderno, é inevitável que haja algum tipo de não-conformidade. Durkheim reconhecia que nenhuma sociedade jamais chegaria a um completo consenso sobre as normas e os valores que a governavam (DURKHEIM apud GIDDENS, 2001, p. 176).
Tanto na visão de Durkheim (2003) quanto na de Dias e Andrade (1997), as necessidades dos seres vivos devem ser proporcionais aos seus próprios meios para que possam sobreviver. Conhecendo limites óbvios, porém, em termos objetivos, não é possível definir nem limitar o quanto de bem-estar, conforto e luxo a que um ser humano pode legitimamente aspirar. Tais desejos são insaciáveis e a insaciabilidade é um sintoma de morbidez. Sendo que a única força que pode controlar esses desejos é a força moral oferecida pela sociedade e pela opinião pública.
Fernandes e Fernandes (2002) prelecionam que na sociedade vigoram certas ideias e limites generalizadamente aceitos que estão sujeitos a mudança, em função da evolução dos padrões econômicos e morais.
É "inegável que em razão da anomia resultante da inexistência de leis que disciplinam o comportamento social, o indivíduo se desorienta e chega ao desajuste" (FERNANDES; FERNANDES, 2002, p. 428).
Conforme Hassemer (2005, p. 79), "o ponto de partida teórico da teoria da anomia social é a distinção entre a estrutura cultural e social de toda sociedade" (grifo do autor), cujos efeitos refletem-se na estrutura pessoal dos indivíduos socializados. Compreendem a estrutura cultural da sociedade, as finalidades e os objetivos históricos constantes que determinam a conduta dos indivíduos socializados e que valem praticamente igual para todos (ascensão social, sucesso econômico). Constituem a estrutura social da sociedade os meios legítimos que estão à disposição dos indivíduos socializados para a obtenção dos fins (trabalho, herança, progressão cultural e técnica).
Pontificou o erudito pesquisador alemão que "uma sociedade em que os meios legítimos suficientes para a obtenção dos fins culturais estão à disposição, encontra-se em harmonia" (HASSEMER, 2005, p. 80)
A anomia [...] procura uma explicação para o comportamento desviante, que não se restrinja à pessoa e ao meio imediato do desviante, [...] mas que indague as relações gerais em seus efeitos criminológicos. Estas relações ela encontra nas estruturas sociais, mais precisamente: na discrepância entre tais estruturas, isto é, nas exigências contraditórias que a sociedade dirige aos indivíduos socializados, as quais levam estes indivíduos inevitavelmente a um conflito desviante (HASSEMER, 2005, p. 80).
Segundo o mesmo autor, uma sociedade em que a disposição para a ascensão prática vale como objetivo cultural incontestado, e distribui de modo seletivo e escasso os meios reais para ascensão, "justifica e estimula que alguns procurem alcançar os objetivos culturais comuns ambicionados pelos meios que não valem como legítimos (roubo, sonegação de impostos)" (HASSEMER, 2005, p. 81)
Ainda, para Hassemer (2005, p. 81), "a origem do comportamento delitivo não se localiza no próprio indivíduo ou nas pessoas do seu meio imediato, ela não se localiza em pessoa alguma, senão muito mais nas circunstâncias, nas estruturas." O homem se torna delinquente enquanto produto, enquanto vítima, não enquanto participante ativo nos processos de interação social. A própria diferença social já fundamenta o desvio e a separação da estrutura cultural e social que arremessam os indivíduos nas hipóteses de delinquência.
A anomia "não se satisfaz com as explicações sócio-estruturais, mas prolonga-as na descrição de tipologias individuais de adaptação" (HASSEMER, 2005, p. 82, grifo do autor).
Para Merton (apud Giddens, 2001, p. 176), "o desvio é uma resposta natural dos indivíduos às situações em que se encontram". Ele identificou cinco tipos de adaptação individual, sendo eles: conformistas, inovadores, ritualistas, apáticos ou recolhidos e rebeldes.
Consoante preceitua Hassemer (2005, p. 83), "Para os criminólogos apenas três tipos individuais de adaptação possuem interesse: a conformidade, a inovação e a rebelião".
Segundo Giddens (2001, p. 176), "os conformistas aceitam tanto os valores geralmente defendidos quanto os meios convencionais de realizá-los, quer encontrem ou não a prosperidade" (grifo do autor). Acrescenta Hassemer (2005, p. 83), "o tipo de adaptação conformista se acomoda tanto com os objetivos culturais como também com a escolha social dos meios legítimos de obtenção dos fins". A esta categoria pertence a maioria da população.
Ainda, Merton (apud Hassemer, 2005, p. 84), "a conformidade deve ser a forma normal de adaptação, porque não se pode manter de outro modo a estabilidade e a continuidade da sociedade" (grifo do autor).
Os inovadores, conforme Giddens (2001, p. 176), "continuam a aceitar valores aprovados socialmente, mas utilizam meios ilegítimos ou ilegais para segui-los". Na visão de Hassemer (2005), a forma de adaptação de inovação é a forma que melhor cumpre os pressupostos do desvio criminal. O inovador está culturalmente adaptado, ele aprova todos os objetivos válidos. A esta categoria pertencem os criminosos que obtêm riqueza por meio de atividades ilegais.
[...] apesar da pressão anômica do desvio que pesa de modo uniforme sobre grande parte da população cujos meios legítimos de obtenção dos fins não se encontram à disposição em uma proporção suficiente, somente poucos reagem de maneira inovadora; a maioria se comporta de maneira conformista: obedecem as leis ao participar na luta pela ascensão social quando, com base nas teses fundamentais da teoria da anomia, deveria haver um inconformismo em massa. (HASSEMER, 2005, p. 84-85).
Por último, "os rebeldes rejeitam tanto os valores quanto os meios existentes, mas desejam ativamente substituí-los por novos e reconstruir o sistema social" (GIDDENS, 2001, p. 176, grifo do autor). Para Hassemer (2005), o tipo de adaptação de rebelião "abandona o sistema tanto em relação à estrutura social como cultural, as quais ele toma como objeto de crítica" (HASSEMER, 2005, p. 83-84). O indivíduo se sujeita ao sistema, mas com menos intensidade, porque consegue projetar alternativas e se esforça para alcançá-las. Pertencem a esta categoria os grupos políticos radicais, até mesmo movimentos sociais, que não reconhecem legitimidade à ordem legal, facções terroristas de idealismo político-econômico.
Ainda, Merton (apud Giddens, 2001) modificou o conceito de anomia e passou a referi-la à pressão imposta ao comportamento dos indivíduos quando as normas aceitas entram em conflito com a realidade social. Logo, "o desvio é um subproduto das desigualdades econômicas e da falta de oportunidades iguais" (MERTON apud GIDDENS, 2001, p. 177).
Merton (apud Hassemer, 2005), em estudo sobre as diferenças e as desigualdades sócio-estruturais no acesso aos meios legítimos para obtenção dos objetivos culturais, percebeu, na pressão anômica, as diferenças entre a camada média e a camada inferior: o acesso aos meios legítimos por esta última, em todos os casos, era parcialmente obstruído. Porém esta análise não permitia ver as diferenças dentro das próprias camadas desfavoráveis, a conformidade dentro destas camadas continuava inexplicável.
Cloward (apud Hassemer, 2005) investigou sob quais pressupostos sociais os indivíduos têm possibilidades de acesso à inovação delitiva e descobriu que
[...] não só as possibilidades legítimas, mas também as possibilidades ilegítimas de utilização dos meios são escassas (que, por exemplo, as carreiras criminais possuem pressupostos exigentes, os quais, sob a pressão anômica, a maior parte também não cumpre) (CLOWARD apud HASSEMER, 2005, p. 86).
[...] uma sociedade baseada em classes ou funções estabelecidas socialmente pode impedir estritamente a condição anômica, através do desenvolvimento de objetivos culturais específicos para cada classe ou para cada função estabelecida, os quais são conjugados com os meios legítimos disponíveis para a obtenção dos fins: não se pode reduzir a anomia apenas pelo fato de que se amplia o círculo de meios legítimos, mas sim pelo fato de que se diferenciam os objetivos culturais específicos das camadas (HASSEMER, 2005, p. 89, grifo do autor).
Conforme explica Hassemer (2005), a anomia, a pressão anômica e a reação delitiva são resultado de uma sociedade que insiste na igualdade de oportunidades, sem deixar desconcertar pelo fato de que a desigualdade de oportunidades determina sua própria estrutura social. Estes são os preços da mobilidade, da crença no progresso, da ideologia da igualdade e da orientação cultural pela prosperidade econômica.
Durkheim (apud Zaffaroni e Pierangeli, 2008), havia observado que nas sociedades complexas o trabalho é dividido em funções ou tarefas, essa divisão de tarefas produz especialização, já a especialização ocasiona isolamento dentro do grupo, as pessoas ficam perdidas culturalmente diante da mudança social. O delito será uma resposta fora de contexto, que provocaria uma espécie de reafirmação social das respostas lícitas, ou seja, o enfraquecimento do espírito de solidariedade acarretaria uma influência dissolvente e, por via de consequência, o comportamento de desvio.
Conforme explicam Zaffaroni e Pierangeli (2008), inspirados no próprio Durkheim, nas sociedades desenvolvidas é visível que, ao lado das inegáveis vantagens que a divisão do trabalho representa como recurso imposto pela própria complexidade crescente da vida social, tal divisão transforma-se numa fonte de desintegração ao provocar as especializações dos indivíduos.
Segundo os mesmos autores, especialista é aquele que sabe cada vez mais de cada vez menos. À medida que o individuo aprofunda os seus conhecimentos, diminui-lhe a extensão ou amplitude e isso se tornou uma necessidade, uma exigência, em face da vastidão do saber moderno.
A especialização, entretanto, limita a visão social do individuo, fazendo-o perder o panorama global ou de conjunto da atividade social. Com essa perda de visão da obra comum e do seu sentido, ocorre também o enfraquecimento do sentimento de solidariedade grupal. O indivíduo se isola dentro do grupo, e se junta a outros indivíduos de sua especialidade, formando grupos menores, às vezes até com interesses rivais aos interesses do grupo geral.
Conforme explicam Zaffaroni e Pierangeli (2008), entre nós isso pode ser constatado, comparando-se a vida do interior com a de uma grande cidade. Numa cidadezinha do interior, todo mundo conhece e sabe de todo mundo. Todos se preocupam com todos e estão prontos para se auxiliarem mutuamente. Há calor humano, espírito de solidariedade etc. Ao passo que numa grande cidade ninguém sabe de ninguém, e cada qual corre atrás de seus próprios interesses. Somos capazes de morar muitos anos em um mesmo prédio e não conhecermos o vizinho que mora ao lado ou de cima.

Referências:

COSTA, José Faria; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia Comparada. Lisboa: Fundação Calouse Gulbenkian, 1985. v. 2.

DURKHEIM, Émile. O Suicídio. São Paulo: Martin Claret, 2003.

______. Os pensadores. Da divisão do trabalho social; As regras do método sociológico; O suicídio; As formas elementares da vida religiosa. Traduções de Carlos Alberto Ribeiro de Moura [et al]. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

FERNANDES, Newton; FERNANDES, Valter. Criminologia integrada. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

GIDDENS, Anthony. Sociologia: Anthony Giddens. Tradução de Sandra Regina Netz. 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 2001.

HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do Direito Penal. Tradução de Pablo Rodrigo Aflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005.

ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: Parte Geral. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. v. 1.