ANENCEFALIA: sob o prisma do biodireito, da bioética e da vida.D
Por MARCIO R. LENCO | 06/05/2015 | DireitoANENCEFALIA: sob o prisma do biodireito, da bioética e da vida.
- 1. A anencefalia na ótica do Biodireito.
Cumpre inicialmente esclarecer o que se entende por anencefalia, que em poucas palavras significa a má-formação total ou parcial do cérebro ou da tampa do crânio. Segundo Maria H. Diniz para quem a anencefalia é:
Feto anencéfalo é aquele que por malformação congênita, não possui uma parte do sistema nervoso central, ou melhor, faltam-lhe os hemisférios cerebrais e tem uma parcela do tronco encefálico (bulbo raquidiano, ponte e pedúnculos cerebrais). (DINIZ, 2001)[1].
A medicina afirma que em caso de constatação da anencefalia, a vida do feto se inviabilizará. Tratando-se de um coração que bate sem cérebro, em outras palavras, são órgãos em funcionamento sem função de existir, mas que traz graves consequências à saúde física e psíquica da gestante e por vezes atingindo os familiares de forma direta ou indireta.
Com isso houve a necessidade de se discutir a possibilidade do aborto anencéfalo, sendo, portanto, primeiramente confirmada por uma junta médica, de no mínimo 02 médicos para a verificação da inviabilidade do feto. Assegurando com isso que os diagnósticos hoje são 100% seguros, de acordo com regras da resolução do CFM Nº 1.989/2012[2].
Diante da constatação médica-científica da má-formação do feto não deverá prevalecer qualquer espécie convicção moral ou religiosa que impeça a gestante e o profissional de medicina para realizar a operação, atuando assim dentro dos ditames da lei pátria e universal da Dignidade da Pessoa Humana, sem que se possa falar em violação as regras internacionais de Direitos Humanos, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Artigo 4 . Direito à vida:
Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente[3].(CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS).
(Assinada na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, San José, Costa Rica, em 22 de novembro de 1969)
- 2. Posição do STF
Diante da celeuma acerca da tipicidade ou atipicidade da conduta para a caracterização do crime de aborto no Brasil que é crime, tipificado nos arts. 124, 126 e 128, I, II do Código Penal, além de inúmeras ações judiciais por todo o país ajuizadas pelas mães que pediam o direito de realizar o aborto, a fim de se evitar ainda mais sofrimento, e por outro lado os médicos que após exames realizados com as gestantes ficavam impedidos de realizar a operação sob pena de responderem por crime de aborto e segundo MIRABETE “Aborto é a interrupção da vida intrauterina, com a destruição do produto da concepção” [4].
A partir de então houve a provocação do judiciário através da ADPF 54[5], onde a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde do Brasil pedia a corte do STF que desse uma nova interpretação da anencefalia de acordo com a Constituição e a afastasse do direito repressivo. Ocorrendo, portanto, uma verdadeira “abolitio criminis”.
Acolhendo logo o pedido neste sentido todo e qualquer crime desta natureza deveria ser encerrado, arquivado inquéritos, processos encerrados e baixados, liberação de todos que estivessem naquele momento no cárcere e que logicamente não haveria mais a necessidade de autorização judicial para a realização desse tipo de procedimento. E hoje o fato se tornou atípico, não podendo ninguém ser processado por isso.
Hoje a decisão cabe apenas ao médico em realizar ou não a operação, mas longe está de ser tida como conduta delituosa, que obrigava milhares de mulheres a recorrerem a clínicas clandestinas para que pudessem exercer seu direito de não prolongar o sofrimento com o prolongamento de uma vida inviável.
- 3. Dignidade humana
Logo o norte da bússola se volta para este princípio que foi internalizado e posto como cláusula pétrea no ordenamento pátrio. A religião não pode forçar a mulher a se submeter a uma crença que a impede de ter dignidade. Mas se por outro lado a mulher por uma questão pessoal quiser levar a gravidez até o fim, que a decisão seja única e exclusivamente dela.
É o que se depreende em passagens do voto do relator Marco Aurélio:
“A incolumidade física do feto anencéfalo, que, se sobreviver ao parto, o será por poucas horas ou dias, não pode ser preservada a qualquer custo, em detrimento dos direitos básicos da mulher”.
Para ele, é inadmissível que o direito à vida de um feto que não tem chances de sobreviver prevaleça em detrimento das garantias à dignidade da pessoa humana, à liberdade no campo sexual, à autonomia, à privacidade, à saúde e à integridade física, psicológica e moral da mãe, todas previstas na Constituição.
Obrigar a mulher a manter esse tipo de gestação significa colocá-la em uma espécie de “cárcere privado em seu próprio corpo”, deixando-a desprovida do mínimo essencial de autodeterminação, o que se assemelha à tortura. (ADPF 54).
Cabe á mulher, portanto, colocar na balança os valores, sentimentos e crenças para que possa tomar uma decisão livre de ressentimentos e arrependimentos, cujo caráter de decisão é de cunho estritamente pessoal. Pois o direito só deve operar se for para a proteção da dignidade da pessoa humana, consagrado como valor universal e que nesse caso deve estar presente para proteger as mulheres que já se encontram atingidas de maneira antecipada pela perda prematura de um de um filho que venha a ter vida extrauterina contada em horas[6].
- 4. Do fato ao Direito.
Tecnicamente a solução apontada pelo direito no caso do STF, foi no sentido de que o embrião tem apenas uma expectativa de vida, e que o direito visualiza apenas à vida como bem maior a ser tutelado pelo Estado, logo constatada a anencefalia este já se afigura como natimorto, assim não pode ser alcançado pelo direito repressivo, tornando-se desta maneira uma conduta atípica a realização da operação do aborto. Pelo fato afasta-se a possibilidade da vida, depois se afasta a tutela, mais adiante se afasta a tipicidade, assim afasta-se o crime.
Conclui-se em apertada síntese que, o código penal já traz a possibilidade de aborto em duas ocasiões, a saber: quando há risco a gestante ou quando resultado de estupro, agora com esse novo entendimento dado a essas situações de anencefalia nosso ordenamento jurídico aponta a terceira via, embora esteja longe de atender aos ditames universais de liberdade, dignidade, autonomia dentre outros tantos, temos a certeza que se trata de um enorme passo nessa direção.
Marcio Roberto Lenco
A ANENCEFALIA:
Sob o prisma do Biodireito, da Bioética e da Vida.
Biodireito
Orientadora: Dra. Mary
Universidade Santa Úrsula – USU
2014.
[1] DINIZ, Maria Helena. O Estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 281.
[2] http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2012/1989_2012.pdf . acesso : 22/07/14.
[3] http://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm- acesso : 22/07/14.
[4] MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal: parte especial. São Paulo: Atlas, 24ª ed., 2006, p. 62.
[5] STF - ADPF: 54 DF, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Data de Julgamento: 27/04/2005, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-092 DIVULG 30-08-2007 PUBLIC 31-08-2007 DJ 31-08-2007 PP-00029 EMENT VOL-02287-01 PP-00021.
[6] LFG- Jurista e cientista criminal. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto de Pesquisa e Cultura Luiz Flávio Gomes e codiretor da LivroeNet. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).