ANÁLISE SOBRE AS EXPRESSÕES DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER VIVENCIADA PELAS ACOLHIDAS DA CASA ABRIGO ANTONIA NASCIMENTO PRIANTE NA CIDADE DE MANAUS/AM

Por Jorgiane Silva Tenazor | 15/12/2020 | Direito

ANÁLISE SOBRE AS EXPRESSÕES DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER VIVENCIADA PELAS ACOLHIDAS DA UNIDADE CASA ABRIGO ANTONIA NASCIMENTO PRIANTE NA CIDADE DE MANAUS/AM NO ANO 2014

Jorgiane Silva Tenazor[1]

RESUMO

A violência doméstica contra a mulher tem em sua raiz uma cultura machista difícil de ser desmistificada tratando a mulher de forma inferior. Este artigo pretende realizar uma análise sobre a violência doméstica contra a mulher, direcionada ao materialismo histórico dialético e para as pesquisas bibliográfica/campo; trata-se de um estudo qualitativo e quantitativo, utilizando-se da entrevista como instrumento de investigação de coleta de dados. Ressalta-se a questão de gênero, as políticas públicas de enfrentamento, a atuação do Serviço Social; a contextualização da violência doméstica, a Lei 11.340/06, a rede de proteção e a experiência vivenciada na Casa Abrigo Antonia Nascimento Priante, uma possibilidade de romper com a violação dos direitos da mulher agredida impedindo que esse ciclo perdure. No âmbito jurídico há muitas ‘brechas’ que deixam impune o agressor, tendo o Estado que atentar-se para necessidade de criação de unidades que atuem de forma efetiva, que potencialize o empoderamento da autonomia e ampliação dos direitos da mulher. Foi possível obter informações que comprovam a existência, não somente de uma ideologia deturpada, mas também, da necessidade de criação de políticas públicas efetivas, que venham garantir o direito assegurado na CF/88 e na Lei Maria da Penha.

Palavras-chave: Violência Doméstica; Políticas Públicas; Casa Abrigo;

ABSTRACT

The domestic violence against the woman has in its root a difficult macho culture of to be demystified treating woman of lower form. This article is going to carry out an analysis about the domestic violence against the woman, directed to the dialectic historical materialism and for the researches bibliographical/field; treats-itself of a quantitative and qualitative study, utilizing itself of the interview as fact-gathering inquiry instrument. Stand out-itself the question of kind, the public politics of clash, the action of the Social Service; the contextualization of the domestic violence, the Law 11.340/06, the net of protection and the experience experienced in home I Shelter Antonia Birth Priante, a possibility of break with the violation of the rights of the woman attacked stopping that that cycle persist. In the legal scope there is many 'gaps' that leave unpunished the aggressor, having the State that attack itself for units creation need that act of effective form, that boosts the empowerment of the autonomy and enlargement of the rights of the woman. It was possible obtain information that verify the existence, not only of an ideology distorted, but also, of the effective public politics creation need, that are going to guarantee the right assured in the CF/88 and in the Law Maria of the Crag.

Keywords: Domestic violence; Public Politics; House Shelter;

INTRODUÇÃO

O presente artigo intitulado Violência Doméstica: Análise sobre as Expressões da Violência contra a Mulher vivenciada pelas acolhidas da unidade Casa Abrigo Antonia Nascimento Priante na cidade de Manaus/AM no ano 2014, aborda a temática do viés proteção, assegurada à mulher vítima de violência doméstica no âmbito da Lei 11.340/06.

Uma das motivações relevantes para a realização do artigo foi o fato de uma das pesquisadoras estar inserida em campo de estágio na unidade operacional CAANP[2] da SEAS[3]. Surgiu o interesse em aprofundar questões teórico-prática dessa realidade e esclarecer certos questionamentos, haja vista que há escassez de informações sistematizadas à operacionalização do direito preconizado na Lei Maria da Penha.

Este artigo tem por objetivo geral desvelar as expressões tangíveis e intangíveis da violência doméstica contra a mulher enquanto uma das múltiplas expressões da questão social. Mais especificamente comparar os procedimentos e/ou mudanças no contexto de violência doméstica antes e depois de Lei Maria da Penha e apontar os fatores que influenciam a violência doméstica, para em seguida identificar o perfil socioeconômico das mulheres vítimas de violência doméstica da CAANP[4], “essa informação só se pode adquirir através da documentação realizada criteriosamente” (SEVERINO, 2007, p.66).

Para tanto, são estabelecidas como hipóteses: a) Porque a violência doméstica ocorre com maior frequência junto às mulheres em vulnerabilidade social, b) Por que as vítimas demoram a denunciar o agressor e c) Quais as consequências dessa violência na família. Que Severino (2007, p.62) chama de ‘problematização’ [...] é tomada em sentido amplo e visa levantar, para a discussão e a reflexão, as questões explícitas e implícitas no texto’.

Expõem-se os passos metodológicos destacando a corrente filosófica: o materialismo histórico dialético dos filósofos Marx e Engels “mais voltado para o estudo dos conflitos entre as várias classes sociais” (PRESTES, 2008, p. 22). Ou como afirma Severino (2007, p.116):

[...] Dialética. [...] reciprocidade sujeito/objeto eminentemente como uma interação social que vai se formando ao longo do tempo histórico. [...], o conhecimento não pode ser entendido isoladamente em relação à prática política dos homens [...]. Daí priorizarem a práxis humana, a ação histórica e social, [...] relacionada com a transformação das condições de existência da sociedade humana.

O conhecimento apreendido deve ser utilizado na vida em sociedade, por meio de uma vivência teórica e prática, com esclarecimentos pertinentes para a formação enquanto futuros profissionais de serviço social, uma vez que o objeto de trabalho da categoria é a expressão da questão social.

O tipo de pesquisa quanto aos objetivos, é a pesquisa teórica, como afirma Prestes (2008, p.25) ‘aquela que se dedica a estudar teorias’ e a pesquisa empírica, ‘dedicada a codificar o lado mensurável da realidade’. E quanto ao objeto, a pesquisa bibliográfica e a pesquisa de campo, onde a primeira: [...] é capaz de atender aos objetivos tanto do aluno [...], quanto de outros pesquisadores, na construção de trabalhos inéditos que objetivem rever, reanalisar, interpretar e criticar considerações teóricas ou paradigmas, [...] (Prestes, 2008, p.26). Já a pesquisa de campo é ‘aquela em que o pesquisador, através de questionários, entrevistas, protocolos verbais, observações; coleta seus dados, investigando os pesquisados no seu meio’(Prestes, 2008, p.27).

A entrevista não estruturada e o cadastro socioeconômico foi o instrumento utilizado na coleta de dados dentro das normas de protocolo da CAANP e com base na Resolução 196/96, realizadas entre os meses de janeiro a junho de 2014 com 10 mulheres acolhidas na unidade operacional. Conforme Minayo (2000, p.57), ‘a entrevista é o procedimento mais utilizado no trabalho de campo. [...] o pesquisador procura obter as informações contidas nas falas dos atores sociais’.

A primeira fase consiste na realização da pesquisa bibliográfica e em seguida a pesquisa de campo. Gil (2002, p.53) descreve: “[...] a pesquisa é desenvolvida por meio da observação direta das atividades do grupo estudado e de entrevistas com informantes para captar suas explicações e interpretações do que ocorre no grupo [...]”. A intencionalidade é compreender a realidade onde ocorrem os fenômenos.

Em seguida realiza-se a análise da amostra, por meio do qual são mensuradas informações tanto quantitativas como qualitativas necessárias para a realização da pesquisa deste artigo, fornecendo importantes subsídios para o esclarecimento da problemática. A abordagem desta pesquisa é de cunho qualitativo:

[...] conjuntos de metodologias, [...] diversas referências epistemológicas. [...] que podem adotar uma abordagem qualitativa, [...]. Tendo relevância pela contribuição em relação aos resultados, pelo conhecimento do objeto a ser pesquisado e pela necessidade de continuar a pesquisá-lo. Esse procedimento se dá através da coleta de dados, instrumento necessário para a obtenção da informação, em que o entrevistador buscará esclarecimentos decorrentes da problematização investigada. (SEVERINO, 2007, p. 119).

Para tanto, faz-se necessário à discussão das temáticas como elementos essenciais às respostas e esclarecimentos desse fenômeno que viola e deixa ‘marcas’ profundas a pessoa agredida, atos esses advindos de uma cultura machista que precisa ser desmistificada.

DEFINIÇÃO E CONCEITO ETIMOLÓGICO DO TERMO VIOLÊNCIA

A violência é um fenômeno que atinge as diversas camadas sociais, nos espaços públicos ou privados. É importante então, compreender sua definição e seu conceito etimológico que está relacionado ao termo força, porém voltada para algo negativo e indesejado, se contrapõe em suas raízes que são extremamente inversas aos propósitos de igualdade e de justiça. Em que o ato violento não acrescenta nada favorável, apenas problematizações: atos de agressões e maus tratos; e um fator agravante a ser destacado: deixa marcas profundas que comprometem o desenvolvimento psicossocial de toda uma família. Segundo Michaud (1989, p. 8):

[...] o significado etimológico de violência vem do latim violentia, que significa caráter violento ou bravo, força. Para onde quer que nos voltemos, encontramos, [...] no âmago da noção de violência a ideia de uma força, de uma potencia natural cujo exercício contra alguma coisa ou contra alguém, torna o caráter violento.

Esses fatos, potencializados pelo autor, demonstram como o significado etimológico da violência está relacionado com uma força negativamente natural, onde não há qualquer possibilidade de diálogo, onde em primeiro lugar está o agir violentamente, e esta concepção advém de uma construção histórica, cultural e ideológica.

A influência ideológica de posse, subordinação e dominação é passada de geração a geração como atos naturais e de direito, vistos como a supremacia do homem nas relações sociais, como cita Hermann (2000, p.141, 142):

Uma série de atos praticados de modo progressivo com o intuito de forçar o outro a abandonar o seu espaço constituído e a preservação da sua identidade como sujeito das relações econômicas, políticas, éticas, religiosas e eróticas. No ato de violência, há um sujeito [...] que atua para abolir, definitivamente, os suportes dessa identidade, para eliminar no outro os movimentos do desejo e da liberdade.

Sendo então, atos de violação dos direitos humanos, onde um sujeito é o dominador no âmbito das relações a qual ele está inserido, não permitindo quaisquer vontades senão as suas. Por conseguinte, Heise apud Lisboa (2014, p.39) afirma que ‘a violência contra as mulheres é considerada todo ato de força física ou verbal, coerção ou privação ameaçadora, para a vida, dirigida a mulheres ou meninas que cause dano físico ou psicológico, humilhação ou privação arbitrária de liberdade e que perpetue a subordinação feminina’.

[1] Graduada do Curso de Bacharel em Serviço Social no Centro Universitário do Norte – Uninorte.

[2]Casa Abrigo Antonia Nascimento Priante – CAANP (Unidade Operacional da SEAS) que acolhe temporariamente mulheres vítimas de violência doméstica e seus filhos.

[3]Secretaria de Estado da Assistência Social e Cidadania do Amazonas – SEAS

Gráfico 1: Quantidade dos filhos das acolhidas 

Gráfico 2: Ocupação das mulheres acolhidas

Fonte: Casa Abrigo Antonia Nascimento Priante

O aspecto abordado pela autora está relacionado com os gráficos demonstrado acima, no âmbito da ocupação desenvolvida pelas mulheres acolhidas na CAANP, verificou-se que 70% eram donas de casa/do lar, dependentes financeiramente do companheiro, afirmando mais da metade, que o companheiro não permitia que trabalhassem, advertindo às mesmas suas obrigações de cuidar do lar e dos filhos. Cuja quantidade varia entre um a quatro filhos, além de mantê-las em cárcere privado. Percebe-se assim, a ideologia de dominação do homem em relação à família, em impedir a vontade e os desejos do outro – com o uso da violência. Como pontua Melo e Teles apud Lima (2013, p. 54): “[...] violência, em seu significado mais frequente, quer dizer uso da forca física, psicológica ou intelectual, é constranger, é tolher a liberdade [...]. É o meio de coagir, de submeter outro ao seu domínio, é uma violação dos direitos essenciais do ser humano”. Isso foi perceptível com relação aos dados coletados, onde essas mulheres, por ‘acreditarem’ que não havia saída e não terem com quem deixar os filhos permaneciam no ciclo de violência, suportando tais violações.

Ainda no ato da pesquisa, a maioria das acolhidas, afirmaram almejar um emprego/trabalho que garantisse o sustento da família, para desta forma se desprender da dependência financeira que até então estavam submetidas, ficando nítido o sentimento de expectativa com relação a esta possibilidade.

Dessa forma, é importante esclarecer o conceito de violência em seu significado etimológico e relacioná-lo com os dados obtidos em relação à ocupação e à quantidade de filhos, verificando o que está por trás desses dados, para que haja uma compreensão mais clara da temática abordada e então prosseguir com as demais seções abordadas neste artigo.

O GÊNERO COMO ELEMENTO CONSTITUTIVO DE DESIGUALDADE SOCIAL

Para compreender o fenômeno da desigualdade social relacionado à questão de gênero, faz-se necessário sua contextualização. Sendo que este se expressa nas relações sociais de forma complexa, sendo construído historicamente pela própria sociedade, isto é, o gênero não é natural, varia de acordo com as necessidades dessa sociedade. Dessa forma, é importante esclarecer o conhecimento do que é gênero. Alvarez apud Silva (1992, p.20) descreve:

O gênero de um ser humano é um significado social e político historicamente atribuído ao seu sexo. Nascemos macho ou fêmea, somos biologicamente feitos como um homem ou uma mulher. É o processo fazer homens e mulheres então historicamente e culturalmente variáveis [...].

O gênero em sentido geral, não pode se limitar a uma perspectiva individual, mas sair desta para o coletivo. Logo a violência não se separa da noção de gênero, pois se baseia na diferença social entre homens e mulheres.

Pode-se notar que o gênero está relacionado a uma questão ideológica conforme pontuam Azevedo e Guerra (2000, p.19): “A ideologia é a aparência socialmente necessária – aparência porque sustenta uma falsa identidade entre o conceito e o objeto, necessária porque é determinada socialmente”. A ideologia da qual o autor cita, nada mais é do que as concepções que a sociedade adquiriu com o passar dos tempos, sendo estas necessárias para que as relações aconteçam, podendo essa aparência não ser realmente o que pareça ser, mas essas ideias são determinadas na sociedade de forma natural. Nesse contexto Saffioti (1994) apud Souza (2014, p.21) argumenta que:

[...] conceber gênero como uma relação entre sujeitos historicamente situados é fundamental para demarcar o campo de batalha e identificar o adversário [...], o inimigo da mulher não é o homem [...] embora seja personificado por ele. O alvo a “atacar” passa a ser, numa concepção relacional, o padrão dominante das relações de gênero.

Nota-se, portanto, que a violência está relacionada a uma sociedade patriarcal hierárquica, ligada a um contexto sócio-histórico, onde o homem é visto como ser dominador sobre sua família, capaz de atos que violam a liberdade do outro, através de múltiplas opressões.

Por conseguinte, é relevante o termo ‘patriarcalismo’, oriundo do patriarcado dá ideia de uma qualidade dada a um líder de comunidade, um homem superior na organização de uma sociedade. Verifica-se neste caso, que havia uma dominação voltada não somente para a mulher, mas também, para todo e qualquer subordinado, cabendo a este, decisões inquestionáveis. Conforme o esclarecimento de Lima (2013, p. 27):

[...] Os pais de família tinham o direito de administrar o patrimônio próprio e alheio da mulher, os filhos que eram “recursos humanos” também administrados pelos pais de família. Todos os homens tinham o poder jurídico de proteger o patrimônio familiar, incluindo os recursos humanos. As mulheres tinham o dever de respeitar esses direitos dos homens e os homens o poder de as obrigar a isso.

Percebe-se nesse contexto, como eram visíveis os atos discriminatórios contra a mulher, de como ela tinha que se subordinar às determinações do homem. Isso porque o homem era a figura representativa que determinava às ordens na sociedade, posto que, essa herança é advinda de uma sociedade arcaica cujos princípios não eram cabíveis a opinião feminina. Nota-se num ambiente de trabalho, por exemplo, se um homem e uma mulher exercem a mesma função, os seus salários quase sempre são diferenciados, ou seja, ainda existe uma diferença na remuneração. Como aponta o Pnad[1] 2013 em média 26,3% das mulheres brasileiras ganham menos que os homens, como se a condição de ser mulher já trouxesse uma dúvida na confiabilidade, especialmente nas relações trabalhistas.

Gráfico 3: Percentual de religião das acolhidas

Fonte: Casa Abrigo Antonia Nascimento Priante

No que se refere à temática religião, uma questão a ser apontada, é que 90% das mulheres acolhidas na unidade CAANP são evangélicas. Estando à crença relacionada com o seu comportamento submisso e tolerante, em muitos casos, por acreditar, ter “fé” em uma possível mudança de comportamento do companheiro, tomando a decisão de romper com a violência, apenas quando esta, passa a se direcionar aos filhos.

É importante esclarecer certas distorções que está por trás da religião, um exemplo vivenciado por uma das acolhidas, sendo esta evangélica, era aconselhado a ela por parte de sua pastora permanecer no ciclo de violência baseado em uma ‘crença’ de que ela deveria aceitar tais atos e que o agressor mudaria seu comportamento, conforme relatado: “minha pastora me disse que era pra eu continuar orando, e aguentando essa situação, que ele logo mudaria, mas isso não aconteceu, ele continuou me maltratando e meus filhos também, já não sabia o que fazer! (sic)”. Neste sentido, Torres (2002, p.54,55) pontua:

[...] por meio de sermões e discursos normatizadores, a Igreja criou uma rede de tabus, reforçando a concepção da mulher como um ser frágil, dependente e submisso, cabendo-lhe o papel de zelar pelo bem estar do marido, gerar filhos e educa-los [...]. a experiência da maternidade atenderia ao projeto biológico e moral da própria medicina da época e, ao mesmo tempo, satisfaria as aspirações da igreja.

Sendo assim, o autor demonstra que o sentido real da palavra submissão torna-se deturpado, a partir do entendimento leigo, meramente machista e preconceituoso desvalorizando a importância da mulher na dinâmica da religião, reduzindo-a apenas a reprodutora, do lar, cuidadora dos filhos e do esposo. A história é perpassada de forma confusa em relação ao papel do homem em relação à mulher, onde este tem autonomia das decisões e a mulher sem direito nem mesmo de se pronunciar, a chamada submissão que é relatada na Bíblia e por diversas religiões, acaba sendo confundida com a violação dos direitos humanos e essa condição se perdurou por décadas e ainda continua, principalmente, em países de predominância religiosa.

Além de não ter nem voz e nem vez, de não poder participar como uma cidadã nas decisões políticas, por exemplo, era excluída de toda e qualquer escolhas. Porém, sabe-se que essa configuração vem se modificando gradativamente, em que mulheres vêm assumindo papéis de grande relevância dentro da sociedade.

A QUESTÃO SOCIAL COMO FATOR PREPONDERANTE NA DISCUSSÃO DAS EXPRESSÕES SOCIAIS

Para debater sobre a violência doméstica, faz-se necessário a discussão sobre as expressões sociais, uma vez que a questão social é o conjunto dos diversos problemas que ocorrem na sociedade seja político, social ou econômico, onde as problemáticas surgem do antagonismo entre as classes: operária x burguesa, sendo as classes dominantes sustentadas da exploração do trabalho do proletariado.

Para Iamamoto (2012, p.27) afirma que “a questão social pode ser apreendida como o conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista madura, onde o trabalho torna-se cada vez mais coletivo, enquanto o fruto desse trabalho mantém-se privado”. Expressões essas visíveis nos diversos âmbitos da sociedade, seja em relação aos adictos, as crianças e adolescente em conflito com a lei, dos moradores de rua, a massa sobrante da relação capital x trabalho, e no caso deste artigo, as mulheres vítimas de violência doméstica.

No Brasil a questão social torna-se mais evidente nas décadas de 70 e 80 com movimentos sociais os quais reivindicavam por justiça e direitos sociais. O país vivenciava um momento de extremo autoritarismo e repressão – pós 64: limitação dos direitos e liberdade de expressão – e agora aspirava pela conquista de um Estado de bem-estar social. A perspectiva é a redução dos direitos e políticas sociais, em direção ao Estado mínimo no âmbito social, favorecendo o capital, consequentemente, permitindo que os indivíduos não tenham os mesmos direitos, o que gera um grave problema na sociedade. Outra referência sobre a concepção de questão social é proposta por Carvalho e Iamamoto (1983, p.77):

A questão social não é senão as expressões do processo de formação e desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida social, da contradição entre o proletariado e a burguesia, a qual passa a exigir outros tipos de intervenção mais além da caridade e repressão.

 

É importante ressaltar que a questão social é uma categoria explicativa da totalidade social, de como os homens vivenciam a contradição capital-trabalho. Ela resulta das desigualdades sociais, políticas, econômicas, culturais, impostas pelo modo de produção. Nesse contexto, estão englobadas como características da questão social: a faixa etária de idade das acolhidas da CAANP que varia entre 21 à 40 anos e ainda que 80% eram de cor/etnia parda, cor essa também chamada negra. Isso porque, o Brasil é um país diversificado no que tange a raça, cor e etnia, isto é, marcado pelo pluralismo racial.

Gráfico 5: Percentual de idade das acolhidas

Gráfico 4: Percentual da cor/etnia das acolhidas

Fonte: Casa Abrigo Antonia Nascimento Priante

Dessa forma, está relacionada com a cultura do Brasil, a formação dos grupos diversificados, conforme Bruschini/Unbehaum (2002, p.169):

[...] a teoria de superioridade racial teve na subordinação feminina seu elemento complementar. A expressiva massa de população mestiça, nascida da relação subordinada de mulheres escravas negras e indígenas com os seus senhores [...] essa definição de gênero e raça, instituída por nossa tradição cultural, patriarcal e colonial para as mulheres brasileiras [...].

Isso porque após a abolição da escravatura, a mulher permaneceu discriminada, restringida a participar do mercado de trabalho, criando-se uma mentalidade racista e preconceituosa de que a mulher negra era sinônimo de descendente de escravo.

A situação da discriminação sofrida pela população negra permite que esta, esteja nas camadas mais vulneráveis da sociedade, tendo menos oportunidade profissional, por ter baixa escolaridade, sendo essa desigualdade social produto da discriminação racial. E, por conseguinte, permitindo que esta mulher negra esteja incluída em um cenário coberto pela violência, mais especificamente, a violência doméstica. Segundo Lima (2013, p.14) todo este cenário:

[...] de situação ocupacional, carência de profissionalização, baixa escolaridade, gênero, origem regional, idade, e acima de tudo, cor. [...] encontram-se situados nos degraus mais inferiores das hierarquias sociais [...]. A exclusão social é reforçada pelo preconceito e pela estigmatização.

Logo o autor vem reafirmar os fatores determinantes que colocam a mulher e, em contexto geral, o negro como camada social excluída, rejeitada e inferior. Sendo necessárias mudanças eficazes no combate a esses preconceitos que estão imbricados no subconsciente populacional.

A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER COMO EXPRESSÃO DA QUESTÃO SOCIAL

Para compreender a violência doméstica como expressão da questão social remete a um debate sobre este ato como processo de violação dos direitos humanos. Para tanto, essa seção tratará de um assunto abordado na atualidade, considerado caso de saúde pública, principalmente em relação à mulheres, crianças/adolescentes e idosos, que são as que mais sofrem com os diversos tipos de violência doméstica. Para que haja uma melhor compreensão, Annan apud Jesus (2010, p.7) ressalta que ‘a violência contra as mulheres é talvez, a mais vergonhosa entre todas as violações dos direitos humanos’. Enquanto ela prosseguir não poderemos dizer que progredimos efetivamente em direção à igualdade, ao desenvolvimento e à paz.

Sabendo-se que da questão social, decorrem os dilemas, as problemáticas e os desafios que afetam a sociedade, sendo estes advindos de uma sociedade capitalista, pode-se destacar a violência doméstica como uma das consequências das desigualdades sociais. Jesus (2010, p.8) relata que a violência doméstica contra a mulher,

é um dos fenômenos sociais mais denunciadores e que mais ganharam visibilidade nas últimas décadas em todo o mundo. Devido o seu caráter devastador sobre a saúde e a cidadania das mulheres, políticas públicas passaram a ser buscadas nos mais diversos setores da sociedade, particularmente pelo movimento feminista.

Vê-se assim a importância de se discutir essa temática, pois abrange o mundo todo e não apenas um país ou região, causando sérios danos à saúde pública quando não tomadas providências cabíveis para impedir um enorme quantitativo de casos relacionados.

Segundo dados do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento: 1 em cada 5 dias de falta ao trabalho no mundo é causado pela violência sofrida pelas mulheres dentro de suas casa; a cada 5 anos, a mulher perde 1 ano de vida saudável se ela sofre violência doméstica; o estupro e a violência doméstica são causas importantes de incapacidade e morte de mulheres em idade produtiva; na América Latina e Caribe, a violência doméstica atinge entre 25% a 50% das mulheres; um estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento estimou que o custo total da violência doméstica oscila entre 1,6% e 2% do PIB de um país; a cada dois minutos, cinco mulheres são espancadas no País, de acordo com pesquisa da Fundação Perseu Abramo (Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado), realizada em 25 estados, em 2010. No levantamento, constatou-se que 11,5 milhões de mulheres já sofreram tapas e empurrões e 9,3 milhões sofreram ameaças de surra.

E ainda, segundo a Agência Brasil (2012) o SUS atende 2,5 vezes mais mulheres vítimas de violência do que homens, gastos superam R$5 milhões em internações. Isso mostra o quanto essa violência interfere sim, no sistema socioeconômico, sendo uma expressão da questão social que deve ser combatida, para que mulheres tenham autonomia e a sociedade entenda a barbárie que é a violência doméstica.

A ação violenta destrói a capacidade de confiar no outro, por isso acaba impedindo uma vida saudável, harmônica e uma boa convivência social. Um exemplo que retrata expressamente as consequências acima citadas é o caso de Francisca*[2] e do filho João*. Em busca de melhores condições de vida, visando ‘livrar-se’ da violência sofrida por parte do companheiro, ela e sua família vieram do interior do estado do Amazonas para a capital. Vítima de violência sexual na cidade de origem, João, um dos filhos da Sra Francisca é mais uma vez vitimizado ao chegar a Manaus, recebendo dinheiro em troca dos abusos, sendo a mãe conivente à condição de exploração e ainda demonstrando poucos sinais de afeto pela criança. Toda essa gama de violência permite que tanto a mãe quanto o filho sejam encaminhados inúmeras vezes ao atendimento em saúde, principalmente João* que necessitou de medicação controlada para acalmar-se nos momentos de crise.

Mediante o exposto Schaiber (2005, p.102) afirma: “[...] são sintomas mentais e a dificuldade de cuidar de si ou de outros [...]. Chamamos essa dificuldade de negligência, uma vez que representa rupturas na continuidade de prestar cuidados a si mesma ou a outros que dela dependam [...]”.

Diante dessa vivencia, pode-se afirmar que possivelmente afetará o desenvolvimento da personalidade da criança e/ou adolescente, que no futuro, poderá reproduzir atos violentos, que vê como exemplo, as atitudes dos pais ou pessoas próximas a eles.

Em relação aos filhos das mulheres acolhidas, um fator relevante a mencionar, é que, realmente, os mais afetados em toda a violação dos direitos humanos, são elas: crianças despercebidas e negligenciadas, vítimas da omissão do Estado que deveria dar suporte às camadas mais frágeis da população, elas que ‘clamam’ num simples olhar, num simples gesto, sem saber que merecem o respeito, que por direito lhe é devido.

Isso porque, após a saída da mulher e seus filhos, a continuidade do acompanhamento não é operacionalizada efetivamente como deveria ocorrer. Certas problemáticas não são competência da unidade que tem a atribuição apenas de encaminhar para os devidos órgãos/instituições, onde em muitos casos não há resolutividade. E ainda os recursos materiais, como condução (veículo) para uma visita domiciliar ou institucional é limitado pela carência financeira/orçamentária dos recursos repassados pelo Estado.

CONTEXTUALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER E SUA CONFIGURAÇÃO NA SOCIEDADE

Contextualizar a violência doméstica contra a mulher não significa apenas defini-la de forma objetiva, mas compreender que foi necessária uma vontade política para combater atos violentos de forma a punir efetivamente os agressores. Para Jesus (2010, p. 8) “de acordo com a convenção de Belém do Pará (1994), define-se como violência contra a mulher, qualquer conduta de ação ou omissão, baseada no gênero que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, no âmbito público ou privado”.

Ou ainda como afirma Jesus (2010, p.8):

[...] entende-se por violência familiar, intrafamiliar ou doméstica toda ação ou omissão cometida no seio de uma família por um de seus membros, ameaçando a vida, a integridade física ou psíquica, incluindo a liberdade, causando sérios danos ao desenvolvimento da personalidade [...].

Sendo então uma violência que ocorre na unidade doméstica compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas com ou sem convívio familiar, na família, comunidade ou em qualquer relação íntima de afeto, no qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida. Deixando claro o autor, que a violência doméstica ocorre com maior frequência no ambiente familiar. Destacando que conflitos de gênero e justiça se inserem no sistema judiciário, nas legislações, no código civil, fazendo com que a garantia de direitos seja ‘atropelada’ pela omissão, pela negligência, pelo descumprimento de mecanismos que minimizem a violência nas relações familiares. Nesse contexto, por mais que exista uma constituição com leis que garantam essa segurança, na prática não há como acobertar a lógica da supremacia masculina.

Diante de diversas injustiças, Maria da Penha Maia Fernandes (vítima de violência doméstica) com a ajuda de ONGs e do movimento feminista enviaram o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) que acataram pela primeira vez um caso de violência doméstica. Condenando o Brasil em 2001 por negligência e omissão, exigindo do país uma legislação adequada, a Lei nº 11.340/2006 – Lei Maria da Penha, criando mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, conforme previsto na CF/88 em seu artigo 226, §8º: “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”.

Desta forma, a violência doméstica se expressa de diversas formas, destacando: a violência física como qualquer conduta que ofenda a integridade ou saúde corporal; a violência psicológica que causa dano emocional, diminuição da autoestima, por exemplo; a violência sexual que obriga a mulher a presenciar, manter ou participar de uma relação sexual indesejada; a violência patrimonial que destrói, subtrai ou retêm objetos/documentos pessoais, dentre outros; a violência moral através de difamações, calúnias à honra da mulher. Todas consideradas formas de violação dos direitos humanos conforme previsto no art. 6º da Lei.

Gráfico 6: Percentual de quem agride as acolhidas

Fonte: Casa Abrigo Antonia Nascimento Priante

A Lei 11.340/06 viabilizou o direito da mulher, garantindo – legalmente – sua proteção e permitindo a participação da sociedade em colaborar ativamente no combate a atos violentos. Também pretendia desafogar o judiciário, que estava com enormes demandas de processo de infração de menor potencial ofensivo. A partir de então, não mais prevalece o conhecido dito popular: ‘em briga de marido e mulher não se mete a colher’, não sendo apenas problema de âmbito familiar, mas do Estado e da sociedade como um todo.
Os dados obtidos em relação a quem é o agressor foi verificado que 90% é o companheiro quem praticava as agressões e apenas 10% o ex-companheiro. E 70% tinha algum vício – por entorpecentes, bebida alcoólica e demais seguimentos. Reiterando o que diz o Relatório Mundial (Lima, 2013, p.5, 17) sobre a Violência e Saúde da Organização Mundial de Saúde que 86% dos casos em que uma mulher é vítima de violência, é por alguém de sua intimidade e ainda ‘comparando-se os índices de homicídios ocorridos com o homem, principalmente os mais jovens no ambiente público e nas mulheres, onde estas estavam mais sujeitas a serem agredidas no ambiente privado’.

Uma observação importante é que a violência contra a mulher parece não escolher um nível socioeconômico e cultural, atingindo igualmente mulheres de países pobres e ricos.

Entende-se assim, que as agressões sofridas pelas mulheres, atos oriundos da violência doméstica ocorrem mais frequentemente numa relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido, no âmbito da unidade doméstica e na unidade familiar.

Levando-se em consideração os tipos de violência doméstica vivenciados pelas acolhidas da CAANP, conforme observa-se no gráfico abaixo, verifica-se que 100% das mulheres sofreram violência psicológica, entendendo que os ‘danos’ causados não eram solucionados em pouco tempo, ao contrário, haviam consequências posteriores a esse acontecimento, pois, no momento em que ocorre a violência, a integridade da mulher é atingida, em geral, todo o sistema biopsicossocial é comprometido, entendendo que seus princípios foram violados, e esta violação se processa atingindo o mais profundo do ser.

Gráfico 7: Tipos de violência doméstica cometidos pelo agressor

Fonte: Casa Abrigo Antonia Nascimento Priante

 Isso porque além do ato violento com a vítima, o sofrimento pelo qual é submetida, há consequências posteriores a esse acontecimento, pois, no momento em que ocorre a violência, a integridade da mulher é atingida, em geral, todo o sistema biopsicossocial é comprometido, entende-se que seus princípios foram violados, e esta violação se processa atingindo o mais profundo do ser. Conforme afirma Jesus (2010, p.13):

[...] os sentimentos da vitima são confusos, passando pelo medo, vergonha, insegurança, impotência, abatimento e depressão. O prolongamento pode ocasionar problemas graves de saúde, como redução da autoestima, distúrbios psicossomáticos, estresse, crises de insônia e angústia [...] até mesmo, situações extremas [...].

Vê-se assim que a mulher vítima de violência doméstica é submetida a traumas, sentimentos que impedem uma ação e reação para romper com ciclo de violência. Permitindo ao agressor apropriar-se desse tipo de violência, acaba obtendo certo êxito em seu domínio, um controle mais ‘efetivo’ para ela obedecê-lo e mantê-la sob seu controle.

APLICABILIDADE DA LEI 11.340/06 COMO FORMA DE DESCONSTRUÇÃO DA VIOLAÇÃO DOS DIREITOS DA MULHER

Desde os primórdios a legitimação do poder do homem sobre a mulher permitia a ele violar os seus direitos, sob o discurso da honra, do poder, da dominação da qual ele detinha, nesse contexto, destaca-se a violência conjugal. Isso porque a Lei 9.099/95 dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais não dispunha de uma proteção efetiva para as mulheres e não tratava das relações de pessoas do mesmo sexo como trata a lei Maria da Penha.

Um exemplo expressivo dos procedimentos da Lei 9.099/95 é que a mulher entregava pessoalmente a intimação ao agressor, estimulando-o novamente a ameaçá-la ou mesmo a agredi-la, hoje é vedada. E ainda eram permitidas penas pecuniárias, como as cestas básicas e multas além dos crimes serem julgados como penas de menor potencial ofensivo.

Dentre as mudanças antes e após a Lei 11.304/06 está o estabelecimento das formas de violência contra a mulher: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral; não tratava-se das pessoas do mesmo sexo, agora a violência independe de orientação sexual.

Não havia juizados especiais que julgassem casos de menor potencial ofensivo (penas de até 2 anos) sendo possível atualmente; as penas pecuniárias são proibidas, além da criação de juizados especiais e cíveis pois antes tratavam as penas do crime, mas para resolução das questões de família (separação, pensão, guarda de filhos), tinham que ingressar com outro processo na vara de família; a mulher podia desistir da denúncia, agora somente perante o juiz.

É possível a prisão em flagrante e a prisão preventiva, pois a antiga lei não previa; agora, a mulher deve ser notificada dos andamentos dos atos processuais além de ser acompanhada por advogado ou defensor; o que antes não era considerado agravante de pena agora altera o código penal 61; a pena de 6 meses a 1 ano vai para 3 meses a 3 anos, aumentando 1/3 da pena caso a violência cometida seja uma mulher com deficiência; pela alteração nas leis de execuções penais, o juiz pode determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação, hoje qualquer pessoa pode fazer uma denúncia, pois antes somente a vítima poderia fazer. Conforme demonstra Simões (2012, p.76): “[...] retirou dos juizados especiais criminais (Lei 9.099/1995) a competência para julgar esses crimes, excluindo de sua punição as penas pecuniárias [...] aumentando a pena de prisão para três meses a três anos e agravando-a de um terço se mulher com deficiência, [...]”.

Na resolução dos procedimentos de dissolução de união estável, pensão alimentícia, guarda de filhos, temos como exemplo o Núcleo de Atendimento da Mulher Vítima de Violência da Defensoria Pública do Estado do Amazonas, que tem competência civil e criminal para abranger todas as questões relacionadas.

A Lei Maria da Penha ainda prescreve a proibição dos agressores de se aproximarem da vítima, proporcionando ‘certa segurança’ em casos de risco de morte, permitindo que esta tenha ‘certa liberdade’ de continuar sua vida sem maiores prejuízos. Dessa forma, o que podemos chamar de instrumento da qual a mulher se respalda são as MPU’s[3], providenciadas após a realização do Boletim de Ocorrência quando for preciso/determinado.

Dados apontados pelo Ipea[4] (2013) demonstra que o número de homicídios de 2001 a 2006 era de 5,28% e subiu de 2009 a 2011 para 5,82%. Parece que violência está aumentando e que Lei Maria da Penha não é efetiva, porém é compreensível entender que as mulheres estão criando mais coragem, perdendo o medo e denunciando o agressor, justificando assim, o porquê deste aumento. Na verdade, as falhas estão no cumprimento, já que, entre o que se encontra na lei e o que vemos na prática, ainda existe uma distância considerável. Há juízes machistas que dão causa ao homem agressor além das medidas de proteção que demoram a ser despachadas, tendo a sociedade que exigir que a Lei (11.340/06) saia do papel.

Em relação ao tempo de convivência das acolhidas da CAANP com o agressor, é demonstrado no gráfico que o tempo varia de 2 anos a 12 anos.

Gráfico 8: Tempo de convivência da vítima com o agressor

FonteCasa Abrigo Antonia Nascimento Priante

Compreende-se assim, que o tempo de convivência está relacionado com o tempo de violência cometida pelo agressor, percebendo a demora em denunciar o agressor e convívio com o ciclo de violência estendendo-se durante anos, em muitos casos, por estarem em situação econômica totalmente dependente do companheiro. ‘A violência conjugal inclui situações de abuso que se produzem de forma cíclica e com intensidade crescente entre duas pessoas que estabelecem relações conjugais’ (Casique apud Lisboa, 2014, p.40).

Gráfico 9: Dados que demonstram a demora em não denunciar o agressor

Fonte: Casa Abrigo Antonia Nascimento Priante

Em comparação aos dados estatísticos do DataSenado (2013) verificou-se alguns fatores que contribuem para esse período se prolongar e o ciclo de violência ser tolerante.

Destacando o medo do agressor, a dependência financeira, preocupação com a criação dos filhos, a vergonha da agressão (especialmente em relação aos familiares e amigos), por acreditar que não existe punição (deixando-as impotentes e inseguras), que a agressão não ocorrerá novamente e ainda por não conhecerem seus direitos.

O RESGATE HISTÓRICO DE GARANTIA AOS DIREITOS DA MULHER

A consolidação do sistema capitalista se deu com o advento da revolução industrial provocando mudanças na sociedade e dentre elas afetando o trabalho feminino o que levou um grande contingente de mulheres às fábricas para oferecer sua força de trabalho; logo a mulher sai do ambiente privado e vai para a esfera pública. Nesse processo, as mesmas contestam a visão de que são inferiores aos homens e se articulam para provar que podem exercer as mesmas atividades, iniciando assim, a trajetória do movimento feminista que ganha maior repercussão com a sua organização.

No Brasil, as mulheres se organizaram e conquistaram seu espaço na área da educação e do trabalho no início do século 19 como destaque a greve das costureiras em São Paulo (1907) reivindicando jornada de trabalho de 8 horas; a Conferência do Conselho Feminino da Organização Internacional do Trabalho (1919).

Em 1937, o movimento feminista perde força com a ditadura do Estado Novo e somente no fim da década seguinte volta a ganhar intensidade com a criação da Federação das Mulheres do Brasil e a consolidação da presença feminina nos movimentos políticos. Como cita Saffiot (1987): “na qualidade de ser discriminado, com legitimidade para reivindicar a igualdade social com o homem, a mulher, é simultaneamente, um tema secundário”.  Eram nesses níveis que a mulher buscava ultrapassar barreiras com foco à garantir seus direitos.

Em 1946 é conquistado e assegurado o princípio de igualdade entre os sexos, o direito ao voto, a regulamentação do trabalho feminino e a equiparação salarial entre os gêneros através da Constituição, porém logo vem outro período de ditadura (1964). O fim da década de 1960 foi marcado pela liberação sexual (uso de contraceptivos).

Dentre os movimentos de destaque da década de 70 está o ano Internacional da Mulher em 1975 onde foi realizada a I Conferência Internacional da Mulher promovida pela ONU e o Movimento Feminino pela Anistia. Além de ser aprovada a lei do divórcio. ‘O ano internacional da mulher, chamou a atenção para o fato de que a condição social da mulher, em numerosos países [...], ainda é caracterizada por diferentes formas de discriminação e está associada à permanência de estereótipos, na definição de seu papel social’. (Tabak, 1983)

O Brasil tomou como ação os próprios movimentos feministas que se organizaram em favor desses direitos, como exemplo, o acontecimento ocorrido em 1976 quando uma mulher foi brutalmente assassinada (Ângela Diniz) ficando o agressor e marido Raul Street impune pelo discurso de legítima defesa da honra. Fato esse que motivou uma gama de mulheres a se mobilizarem contra a impunidade de homens machistas sob o lema: ‘quem ama não mata’.

Em 1979 as Nações Unidas adotaram a CEDAW (Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher) buscando promover os direitos das mulheres, também conhecida como Lei Internacional dos Direitos da Mulher. A CEDAW é o principal mecanismo internacional de viabilização da igualdade de gênero e contrariamente a discriminação.

O início da década de oitenta no Brasil foi marcado pela forte mobilização da classe feminina em torno da temática violência às mulheres e o princípio de igualdade entre homens e mulheres, sua articulação em movimentos próprios, somada a uma intensa busca por parcerias com o Estado, para a resolução desta problemática, resultou em uma série de conquistas ao longo dos anos.

Em 1980 foram criados programas específicos de saúde integral e prevenção às vítimas de violência sexual e doméstica. Em 1981 surge o SOS Mulher (espaço para mulheres vítimas de violência) na cidade do Rio de Janeiro e posteriormente em São Paulo e Porto Alegre. Em 1983 é criado o Conselho Estadual da Condição Feminina e o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher – ‘CNDM’ em 25/10/1985 e neste mesmo ano a primeira Delegacia de Defesa da Mulher, iniciativa pioneira do Brasil que incentivou outros países a adotarem essa medida, pois não havia uma delegacia específica para a questão da violência contra a mulher e essa atitude veio primeiramente do Brasil.

O ‘CNDM’ tinha o objetivo de eliminar a discriminação e aumentar a participação feminina nas atividades políticas, econômicas e culturais, posteriormente integrou a Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher (2002) e em 2003 vinculou-se à Presidência da República, agora chamado de Secretaria de Políticas para as Mulheres.

A Constituição Federal de 1988 foi um marco importante na consolidação dos direitos da mulher, considerada como Constituição Cidadã, afirmou nos seus princípios, a igualdade de direitos e obrigações entre homens e mulheres de acordo com que consta no Art.5º: “I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta constituição”. Garantindo ainda a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade privada.

Na década de noventa surge as redes de articulações setoriais, nacionais e regionais, a Articulação de Mulheres Brasileiras – AMB, a Rede Nacional Feminista de Saúde e direitos reprodutivos além da articulação com movimento de mulheres internacional – Latino Americano e do Caribe. Em 1993 ocorreram as conferências mundiais da ONU como a Declaração de Viena sobre Direitos Humanos dentre os assuntos em pauta estavam os vários graus e manifestações de violência com destaque a anulação da violência privada como criminalidade comum, considerando assim, que a violência contra a mulher infringe os Direitos Humanos e é realizada principalmente na esfera privada.

As políticas de enfrentamento a violência doméstica contra a mulher no Brasil

Para compreender a necessidade de criação das políticas públicas voltadas para a garantia de proteção à mulher vítima de violência doméstica, é preciso entender o contexto histórico desde sua gênese, considerando as relações que se estabeleceram entre homens e mulheres e do conjunto de lutas que a inseriu na sociedade.

É importante destacar nos anos noventa, a dificuldade de inserir a temática violência doméstica contra a mulher à justiça e à policia, pois encontrou-se enorme resistência, sendo necessário criar estratégias, conforme ressalta Jesus (2010, p. 17):

[...] A discussão foi remetida [...] para três campos principais: os direitos humanos, a saúde e o desenvolvimento social, todos já consolidados e reconhecidos internacionalmente [...]”. Utilizando-se deste prestígio para ligá-los ao tema violência doméstica, começa-se a reconhecê-la como caso de saúde pública.

Em 1994 foi aprovada pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos – OEA e Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher em Belém do Pará, no mesmo ano a temática População e Desenvolvimento no Cairo.

Em 1995 foi discutida a Declaração de Beijing sobre temática Mulher Igualdade, Desenvolvimento e Paz tema da IV Conferência Mundial sobre a mulher.

Em 1997, a resolução nº52/86 da Assembléia Geral e o X Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção ao Crime e Tratamento do deliquente (Declaração de Viena, 2000).

Também em Viena foi realizado 15° período de sessões da Comissão de Prevenção ao Crime e Justiça Penal tendo em pauta respostas a violência contra mulheres – Normas do Sistema da Justiça Criminal além de várias questões referentes à extensão da proteção à mulher e dos limites domésticos chegando ao tráfico Internacional. E no início do século XXI as primeiras denúncias contra a violência doméstica e a defesa do aborto.

Em 2003 o Estado brasileiro apresenta o Relatório ao Comitê CEDAW, referente ao período de 1985-2002. Recomendando a adoção de uma lei integral de combate à violência doméstica contra as mulheres. Em julho de 2004 é realizada I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres (I CNPM)

Em 2005 realizaram-se diversas discussões do Projeto na Câmara dos Deputados com realização de audiências públicas em alguns estados brasileiros e aprovação na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF), na Comissão de Finanças e Tributação (CFT), na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC). E finalmente em 2006, os fóruns de mulheres de todo Brasil realizaram as “Vigílias pelo Fim da Violência contra as Mulheres”, para denunciar a violência e os homicídios de mulheres e pedir a aprovação do PL 4.559/2004. O Projeto é aprovado no Plenário da Câmara e vai para o Senado, onde recebe o número PLC 37/2006. É discutido e aprovado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ).

Em todas as instâncias o projeto foi aprovado por unanimidade e sua tramitação no Congresso Nacional. No dia 7 de agosto, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva assina a Lei 11.340/2006. Depois de ter sido amplamente discutida e reformulada, fruto de uma luta constante do movimento feminista que sentia a necessidade de efetivação dos direitos da mulher no âmbito da violência doméstica.

A violência doméstica precisa ser combatida, e para isso, é necessário que haja investimentos em políticas públicas efetivas para o rompimento desse ciclo. Para Veronese (1998, p. 52):

Se o Brasil, de fato, tivesse optado por políticas públicas nas áreas de saúde, educação, habitação, pleno emprego, que tivessem um caráter institucional, isto é, não fossem aleatoriamente interrompidas, estas teriam contribuído para erradicar a miséria e, por seu turno, toda uma gama de violência que tem como fonte a estrondosa e perversa desigualdade social em que vivemos.

Somente com políticas públicas efetivadas tendo a participação do Estado focado em garantir e contribuir para que a sociedade esteja protegida como exemplo, um dos mecanismos de efetivação para combater essa questão foram os movimentos sociais que nos anos 80 estavam constantemente vinculados às causas sociais principalmente, quando se organizavam e se fortaleciam conquistando grandes avanços. Porém nos anos de 1990 ocorre o inverso – a desmobilização dos movimentos sociais – retrocesso advindo do êxito ideológico do neoliberalismo no Brasil e pelo descompromisso governamental.

A sociedade vive em um sistema econômico que apesar de ser eficiente (para o capitalismo), gera massas de famílias em risco, vulnerabilidade e desigualdade social produzindo o desemprego generalizado. Conforme explicitado por Simões (2012, p.293):

[...] o objetivo da máxima eficiência produtiva e do lucro [...] não se harmonizam [...] com a justiça distributiva. [...] o objetivo por todos desejado de uma sociedade que assegure a plena liberdade e o respeito aos direitos da cidadania é certamente compatível com uma economia que exija a máxima eficiência econômica, visto que tanto a liberdade, quanto a eficiência apoiam-se, também, nas diferenças individuais; mas é, também, certamente incompatível com a justiça social [...].

Por conseguinte, vê-se nesse contexto que não há compatibilidade que se proponha ao objetivo do Estado de Bem Estar Social que vise à igualdade de direitos, mas ao contrário, à medida que as crises ocorrem, a justiça social que se busca é ‘esquecida’ e o individualismo aumenta juntamente com a competitividade de mercado. É imprescindível a intervenção do Estado focado na redução das desigualdades sociais no sentido de favorecer àqueles que realmente necessitam, resistindo às propostas neoliberais, e não favorecendo os que possuem um poder aquisitivo elevado em desfavorecimento ao trabalhador.

As políticas públicas segundo seus objetivos que são de duas formas as que regulam atividades econômicas de interesse público (estatais ou privadas), visando atender a demandas sociais gerais e as que implementam os direitos sociais (demandas sociais específicas), e entre elas as políticas socioassistenciais. E ainda, as políticas públicas, segundo os conflitos sociais caracterizam-se como:

[...] distributivas, quando são relativamente consensuais, [...]; redistributivas, quando redirecionam recursos financeiros, direitos e outros valores; regulatóriasquando não são determináveis de antemão, porque ainda desconhecidos seus efeitos concretos, [...]; e constitutivas ou estruturadoras, quando regulam as próprias regras do jogo político e, com isso, a estrutura dos processos, os conflitos políticos e as condições gerais com que devem ser negociadas as políticas distributivas, redistributivas e regulatórias. (SIMÕES, 2012, p.295)

Dentre as principais políticas públicas voltadas para o enfrentamento da violência, destaca-se o Programa Pró-Equidade de Gênero, iniciativa do  Governo Federal, por meio da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, tendo como proposta estimular as práticas de gestão que promovam a igualdade de oportunidades entre homens e mulheres no ambiente de trabalho.

O Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência Contra a Mulher foi lançado em agosto de 2007, consiste em um pacto federativo entre o governo federal, os governos dos estados e dos municípios brasileiros para o planejamento de ações que consolidassem a Política Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres por meio da implementação de políticas públicas integradas em todo território nacional a partir de uma visão integral deste fenômeno, mas especificamente reduzir os índices de violência contra as mulheres, promover uma mudança cultural a partir da disseminação de atitudes igualitárias e valores éticos de irrestrito respeito às diversidades de gênero e de valorização da paz, garantir e proteger os direitos das mulheres em situação de violência considerando as questões raciais, étnicas, geracionais, de orientação sexual, de deficiência e de inserção social, econômica e regional.

A Consolidação da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, por meio da efetividade das ações do Pacto Nacional e da plena aplicação da Lei Maria da Penha são condições imprescindíveis para o enfrentamento à violência contra as mulheres no Brasil. Sendo necessários recursos específicos para o funcionamento dessas políticas e de forma a outros programas temáticos como de promoção da cidadania, direitos humanos, segurança pública e justiça social e autonomia das mulheres.

Destaca-se também a LOAS[5] (8.742/1993) que cumpre o encargo específico com relação à assistência social da qual a mulher, especialmente, a que se encontra em maior vulnerabilidade, tem direito como cidadã. O CNAS[6] órgão de deliberação superior é o normatizador da política de assistência social representando a estabilização da política e em conjunto com os conselhos estaduais e municipais, de participação direta da população nas decisões do Poder Executivo.

Nas Normas do Sistema Único de Segurança Pública onde é desenvolvido o Programa Nacional de Prevenção e Redução da Violência Doméstica e de Gênero que além de incorporar as conquistas representadas pelos movimentos sociais e pelos programas governamentais que o antecederam, tem o propósito de avançar na consolidação de um planejamento racional para doação de políticas eficientes.

O sistema único de saúde (8.080/90) tem em suas diretrizes uma relação com a violência doméstica, pois dispõe sobre as condições para promoção, proteção e recuperação da saúde. Conforme cita Aguiar (2011, p.43): [...] a sua inscrição na carta magna acatou as proposições da sociedade civil organizada, incorporando mudanças no papel do Estado e alterando de forma significativa o arcabouço jurídico-institucional do sistema público de saúde brasileiro [...].

Vê-se a importância do SUS, principalmente, na recuperação da mulher no âmbito da violência física/psicológica, não é uma especificidade da saúde, porém o impacto direto sobre ela por meio de lesões, traumas e mortes, representam um problema de saúde pública com graves problemas à sociedade atual. Recentemente foi aprovado um Projeto de Lei[7] voltado para o atendimento das vítimas de violência sexual embora o projeto abranja as vítimas de violência doméstica, a lei citada se refere apenas aos procedimentos para atender vítimas de violência sexual como diagnóstico e tratamento das lesões físicas no aparelho genital e nas demais áreas afetadas; amparo médico, psicológico e social imediatos; e profilaxia da gravidez e das doenças sexualmente transmissíveis, garantindo também o direito a cirurgias plásticas e reparadoras.

Como a violência é um fenômeno generalizado, que afeta particularmente, mulheres, crianças/adolescentes e idosos, põe em risco a vida e a integridade de milhares de pessoas, gera volumosas perdas econômicas e acarreta graves problemas sociais. É, ao mesmo tempo, um problema de saúde e de segurança pública sendo, portanto, um problema de todos, neste sentido, faz-se necessário à criação das políticas de enfrentamento a todo e qualquer tipo de violência contra a mulher.

No decorrer da história a mulher buscou meios de alcançar sua independência na sociedade, por meios das lutas e dos movimentos sociais, rompeu estigmas, almejou status e desfez os paradigmas até então incontestáveis relacionados à sua conduta, o que resultou nas políticas públicas existentes para a efetivação dos seus direitos, especialmente no que diz respeito ao combate a violência doméstica contra a mulher.

Nota-se nos dados coletados na ‘CAANP’ conforme o gráfico abaixo, sobre a escolaridade das dez mulheres entrevistadas, que somente uma tinha ensino médio completo e uma ensino fundamental completo. Em comparação a esses dados, a pesquisa do DataSenado demonstra que 48% das mulheres com ensino fundamental não se sentem respeitadas e apenas 32% de ensino médio/superior tem o mesmo sentimento. Sendo assim, a mulher com escolaridade elevada tem maior criticidade e esclarecimentos para se defender da violência e romper com o ciclo, constatando o efeito positivo da educação como forma de emancipação feminina.

Gráfico 9: Escolaridade das mulheres acolhidas na unidade

Fonte: Casa Abrigo Antonia Nascimento Priante


A CASA ABRIGO COMO FORMA DE EMPODERAMENTO E AMPLIAÇÃO DOS DIREITOS DA MULHER BEM COMO UMA POSSIBILIDADE DE ROMPER COM O CICLO DE VIOLÊNCIA

A criação das casas abrigos como proteção para mulheres vítimas de violência doméstica foi possível por meio de políticas públicas através da promulgação da Lei 11.340/06 em seu art.35 título VII que dispõe ‘a União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios poderão criar e promover, no limite das respectivas competências: I-centros de atendimento integral e multidisciplinar para mulheres e respectivos dependentes menores em situação de violência doméstica e familiar; II- casas-abrigo para mulheres e respectivos dependentes’.

Dessa forma, a Casa Abrigo Antonia Nascimento Priante – CAANP foi criada no mesmo ano da promulgação da Lei 11.340/06 quando houve a necessidade de um abrigo que acolhesse mulheres vítimas de violência doméstica no Estado do Amazonas. O nome do abrigo foi dado em homenagem a Antonia Nascimento Priante, técnica de enfermagem, militante do movimento de mulheres do estado do Amazonas na década de oitenta, era conhecida por sua luta contra a violência doméstica da qual foi vítima (1992).

Como já havia um projeto que operacionalizasse o que a Lei 11.340/06 indicava, foi dado início em novembro de 2007 as atividades da unidade operacional CAANP[8].

Sob a responsabilidade da SEAS[9] em parceria com o Instituto de Desenvolvimento Social Dom Adalberto Marzi, a ‘CAANP’ integra o conjunto de serviços da Rede de Atenção em Defesa dos Direitos da Mulher, estruturas essenciais para viabilização de demandas relacionadas ao foco da prevenção e do enfrentamento à violência contra a mulher, uma vez que visa promover a ruptura da situação e a construção da cidadania por meio de ações globais e de atendimento interdisciplinar (psicológico, social, pedagógico e jurídico) de orientação e informação à mulher e seus filhos, com o objetivo de garantir atendimento integral, humanizado e de qualidade às expressões da questão social vivenciadas.

Todos os profissionais envolvidos na unidade exercem um papel fundamental no combate à violência doméstica. Durante a permanência na unidade, as usuárias e seus filhos recebem todo o apoio da equipe, de forma a contribuir na superação de traumas, elevação da autoestima, ampliação do acesso à justiça e à assistência jurídica gratuita, a fim de que se fortaleçam os laços afetivos e possibilitem sua inclusão no mercado de trabalho, concretizando, desta forma, o princípio de autonomia e liberdade.

Apesar haver ‘facilidade’ em encaminhar as mulheres em sistemas de cadastro para emprego[10] são poucas, as que conseguem se inserir no mercado de trabalho, na maioria dos casos, não estão qualificadas ou não atendem ao perfil solicitado, sendo orientadas na unidade, a procurarem nas instituições indicadas formas de se qualifica.

Na prática das atividades, cada profissional se dedica a esclarecer, aconselhar e viabilizar questões que possibilitem à mulher, a autonomia, a liberdade e a segurança em si própria. É notório durante as entrevistas os sentimentos da mulher em relação ao companheiro, quando é evidenciado a possibilidade de reconciliação entre as partes, os profissionais procuram deixar claro o ‘valor’ que cada uma tem, do direito que cabe a elas e das procedências a serem tomadas no caso de reincidência. Além de sensibilizá-las quanto aos filhos, quando estes estiverem presentes durante as agressões e dos possíveis traumas que venham a causar na criança. Conforme é pontuado por Cardoso (1997) apud Menezes (2000):

[...] estar inserido em um ambiente familiar no qual, constantemente, os pais são agressivos entre si, ou mesmo com os filhos, favorece a uma concepção naturalizada da violência. São mulheres que cresceram vendo o pai bater na mãe, esta bater nos filhos, o irmão mais velho bater nos mais novos, estes nos colegas, reproduzindo um ciclo constante de violência.

Neste sentido, a unidade operacional realiza um trabalho pedagógico internamente com as crianças e adolescentes, em conjunto com outros profissionais para, de alguma forma, proporcionar um bem estar ao indivíduo, e isso engloba desde alimentação, medicação, material de higiene, brinquedos e também, diálogo, dinâmicas, prática de atividades escolares/lúdicas, enfim, apesar dos poucos recursos, é possível repassar certas normas, atitudes de respeito, e principalmente, de amor.

Na Cartilha: ‘Mulher, vire a página’[11] apud Lima (2013, p. 62): “A violência vai se reproduzindo de geração para geração [...]”. É um ciclo de violência que se reproduz constantemente como o passar dos anos, e segue para gerações futuras, que veem a mulher sob o ângulo de inferioridade, interiorizando o homem sob o ângulo da agressividade, do autoritarismo e da brutalidade. Causando consequências aos filhos que se revoltam, se isolam, ficam carentes de referências positivas e tendem reproduzir a violência.

Um procedimento vantajoso empregado na unidade enquanto uma possibilidade de romper com a violência doméstica é a realização de palestras dinâmicas. Onde são viabilizadas temáticas de esclarecimento voltadas para o âmbito da temática, especificamente, a Lei Maria da Penha, para direcionar e dar caminhos de autonomia aos direitos da mulher acolhida. Sampaio (1982) apud Souza (2000, p.191) sinaliza:

As questões técnicas exigem, sem dúvida, um conhecimento especializado que só se adquire mediante anos de estudo sistematizados e de experiência prática. Mas isso não quer dizer que seja impossível transmitir a pessoas legais as noções básicas desses conhecimentos. Tendo essas noções básicas, as pessoas leigas no assunto estão em perfeitas condições para tomar decisões [...]

A autora continua “palestra é o ato de reunir pessoas objetivando a transmissão de informações que contribuam para a reflexão de algum tema [...] para aclarar situações dúbias, ou ajudar a decidir sobre novas formas de ação relativas à vida social (p.191)”. É essa a intenção da unidade em possibilitar e dar a oportunidade para as mulheres acolhidas se reconhecerem enquanto sujeito de direitos e de valores.

Outro fator relevante vivenciado constantemente por mulheres vítimas de violência é a ocorrida no âmbito institucional. Durante o período de acolhimento, elas necessitavam de atendimentos de saúde, jurídicos, educacionais, dentre outros; era notável o tratamento ríspido/grosseiro com que os profissionais agiam no atendimento a estas. Conforme afirma D’Oliveira, Diniz & Schraiber (2002): “Outros atos, [...] violências étnicas e maus tratos nos atendimentos em diferentes serviços, como seria os casos relatados na atenção à saúde da mulher, são considerados violência institucional ou cometida pelo Estado”. Fatos estes que não deveriam acontecer, como exemplo, no atendimento à saúde, uma vez que, tais profissionais tem a capacidade de realizar um atendimento humanizado, Aguiar (2011) cita no cap.II art.7° dos princípios e diretrizes da Lei 8.080/90 que concerne em: “IV – igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie;”. Dessa forma, o assistente social da ‘casa abrigo’ age nas demandas vigentes, garantindo o respeito que deve prevalecer quanto ao atendimento em qualquer repartição pública da qual o cidadão necessite.

Diante dos procedimentos demonstrados, da prática de cada profissional, das atividades desenvolvidas, do acompanhamento realizado, do conteúdo explicitado, é possível afirmar que a mulheres acolhidas na unidade ‘CAANP’ receberam orientação adequada para um possível rompimento com a violência doméstica, tendo a oportunidade de conhecerem seus direitos e a possibilidade de garantia da sua autonomia.

A ATUAÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL NA CASA ABRIGO ‘CAANP’ E A REDE DE PROTEÇÃO AO ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

Uma mulher em situação de violência ao buscar os serviços especializados para solucionar a sua problemática espera ser atendida com qualidade e acredita que aquele profissional está preparado, que o mesmo tem a sensibilidade de ouvi-la e esteja capacitado para dar-lhe um direcionamento.

É nesse contexto, que o Serviço Social atua dentro da unidade operacional ‘CAANP’, ponto central para que o profissional direcione às diversas demandas[12] que venham surgir durante o período de acolhimento. A unidade não garante uma proteção efetiva prolongada, tendo o Serviço Social que elaborar num curto período de tempo, um plano individual e familiar de atendimento.

Em sua trajetória histórica, o Serviço Social antes de se tornar exercício profissional era voltado para ações de caridade, em atitudes imediatas e pontuais, isso porque ainda não se refletiam formas operacionais de concretização do que se pretendia (não tinham formação profissional), pois a prática exercida era voltada para os pobres, porém essas ações só confirmavam a condição de inferioridade e subalternidade dos sujeitos, conforme cita Martinelli (2003, p.97):

[...] é indispensável que se revele que muitas práticas de exploração, de repressão e de dominação política e ideológica foram realizadas sob a denominação de caridade [...] a assistência era encarada como forma de controlar a pobreza e de ratificar a sujeição daqueles que não detinham posses. Havia sempre intenções outras além da prática da caridade. O que se buscava era perpetuar a servidão, ratificar a submissão.

Foi dessa forma que a prática da assistência logrou durante muitos anos favorecendo a burguesia e atendendo aos interesses e objetivos do capitalismo, mesmo porque, o alastramento do pauperismo incomodava a classe dominante, o que se pretendia era uma prática social que fosse capaz de conter os impactos e não ameaçasse o capital.

O ponto culminante em direção a profissionalização do Serviço Social[13] foi em 1937 com a instauração do Estado Novo que “transparecia” se preocupar com o cidadão. E um desafio a ser vencido: O fetiche da prática, fortemente, impregnado na estrutura da sociedade, se apossou dos assistentes sociais, insuflando-lhes um sentido de urgência e uma prontidão para a ação que roubavam qualquer possibilidade de reflexão e de crítica (MARTINELLI, 2003, p.127).

Posteriormente, os profissionais se impulsionaram a lutar de forma coletiva, e não individual, articulando-se com o segmento de outras categorias profissionais que compartilhavam propostas similares, possibilitando então, uma mudança social, que favoreça a todos sem exceção. Para Barbosa (1990, p.11) o assistente social é “[...] o agente (da prática) institucional [que vai possibilitar] o desenvolvimento das condições gerais para o funcionamento das relações que se estabelecem entre o aparato institucional e as demandas emergentes [...]”.

Na viabilização dos direitos da mulher acolhida na unidade, o profissional atua como um mediador e interventor na efetivação das problemáticas existentes. Como possui uma relação direta com a população usuária, procura romper com a atividade burocrática e rotineira, que reduz seu trabalho ao mero emprego, à realização de um leque de tarefas diversas, ao cumprimento de atividades já preestabelecidas.

Isso motiva ir além das rotinas institucionais e buscar apreender o movimento da realidade para então mensurar as tendências e possibilidades nela presentes, passíveis de serem impulsionadas pelo profissional.

Nota-se a importância da contribuição da unidade operacionalizada, com relação à efetivação dos direitos da mulher vítima de violência doméstica no âmbito ‘proteção e enfrentamento’, porém há escassez, que seriam as contribuições heterogêneas, isto é, a ausência de união (articulação) das instituições, que não se aglutinam ou são individualizadas além da omissão do Estado. Ressaltando ainda, a existência de práticas de caridade (ajuda) principalmente no desligamento das acolhidas da ‘CAANP’, vivendo em condições precárias, acabam recebendo ‘doações’ suprindo suas necessidades em curto prazo, porém não resolvendo o problema em sua raiz.

No atendimento inicial, as mulheres chegam à unidade, abatidas e debilitadas, logo o Serviço Social procura realizar um atendimento humanizado de forma ética, tratando a mulher acolhida com respeito e sigilo profissional.

Assim, é imprescindível durante o diálogo, que o profissional transmita confiança às usuárias no sentido de viabilizar os procedimentos, e também mensurar a realidade e informações repassadas. Um exemplo a ser citado, é no primeiro contato com a usuária acolhida, que em certos momentos repassa informações incompletas para o assistente social, e no atendimento psicológico repassa outras informações ou mesmo, informações contraditórias. Sendo de extrema importância a relação interdisciplinar entre os profissionais e envolvidos (serviço social, psicologia e pedagogia) “cada profissional delimitará seu campo de conhecimento e definirá seu objeto de estudo, buscando formas de interação e intercâmbio com as demais integrantes da equipe.” (LISBOA, 2014, p.48).

A articulação observada na unidade ‘CAANP’ entre os profissionais da área de psicologia, pedagogia e serviço social é constante, pois é assumido um compromisso profissional que permita à mulher acolhida uma tomada de decisão, ajudando-a a buscar alternativas, fortalecendo sua autoestima e assim, permitindo a mesma, resolver conflitos já fora da unidade, caminhando em busca do empoderamento. Para que, após sua saída, possa dar início a uma vida ‘nova’ livre de violência.

Cabe ao profissional de Serviço Social ter informações adequadas e suficientes sobre a rede de proteção à violência doméstica para encaminhar as situações relacionadas, pois a esta possui múltiplas facetas e não somente sobre a proteção da mulher, mas também as principais políticas voltadas para o enfrentamento das expressões da questão social, desde políticas para mulher, criança e juventude, idoso, saúde, educação, habitação, dentre outros. Como exemplo a ser citado, existem mulheres que chegam na unidade com diversas problemáticas: filhos fora da escola, crianças vítimas de violência física e principalmente, violência sexual, esta última em sua maioria, praticada pelos próprios pais; mulheres com limitações, idosas, desempregadas, dependentes financeiramente, sem moradia, sem apoio familiar, enfim, são inúmeras situações que fazem, ou mesmo ‘obrigam’ o profissional de Serviço Social a ter conhecimento dessas políticas para então, direcioná-las; encaminhando todas as possíveis demandas para os demais profissionais e demais órgãos.

É nessa primeira abordagem de acolhimento e escuta que é realizada a entrevista, pelo preenchimento do cadastro socioeconômico, onde são coletados desde dados de identificação da mulher (endereço, naturalidade, idade, cor, religião, etc.) e do agressor (vínculo, identificação, idade) até a verificação das formas de violência, a            renda familiar, o tempo de convivência e outras informações relevantes.  Para Lisboa (2014, p.49):

Esse espaço de escuta é fundamental para [...] romper o silencio imposto. É o tempo em que ela se sentirá segura frente a um profissional que transmite confiança, que acredita no que ela vai falar, que a respeita e a encoraja a expressar sentimentos.

Além dos procedimentos já citados há duas atividades que colaboram para o empoderamento da autonomia e ampliação dos direitos da mulher que vivencia violência doméstica. A ‘abordagem’ que é realizada pela assistente social, estagiárias e demais profissionais da unidade ‘CAANP’ através da divulgação da rede de serviços oferecidos para combater a violência doméstica contra a mulher, geralmente realizadas nas maternidades, instituições públicas/privadas, prontos-socorros, unidades básicas de saúde, centros de convivência, dentre outros. É uma forma de divulgar a Lei Maria da Penha esclarecendo possíveis dúvidas, trazendo caminhos de saída para a emancipação das mulheres.

A segunda atividade é operacionalizada com as oficinas populares através das palestras realizadas em comunidades, nos Centros de Referência de Assistência Social – CRAS e/ou espaços disponíveis para apresentação, de acordo com o cronograma elaborado pela Secretaria de Estado da Assistência Social e Cidadania – SEAS e também na própria unidade durante o período de acolhimento, com objetivo de divulgar a Lei Maria da Penha e os serviços de atenção em defesa dos direitos da mulher, além de outras temáticas ligadas ao universo feminino. Percebe-se desta forma uma expressão tangível de que violência é algo desagradável, negativo e ruim, que perpassa tanto na esfera privada quanto na esfera pública.

É o momento de propor estratégias de enfrentamento e resistência, uma vez que a unidade operacional ‘CAANP’ é o único abrigo do Estado do Amazonas, porquanto é preciso assim perceber, que mesmo com toda pressão organizada no processo de elaboração de leis, propostas políticas e o que prevê a Constituição/88 para enfrentar e coibir a violência doméstica, ainda é perceptível a negligência por parte do Estado que dá prioridade a outras questões (econômicas, por exemplo) não tão relevantes. E não valoriza o profissional de Serviço Social que tem atribuições únicas no âmbito da violência doméstica.

Para Iamamoto (2000) o exercício da profissão é uma ação de um sujeito profissional que tem competência para propor, para negociar com a instituição os seus projetos, para defender o seu campo de trabalho, suas qualificações e funções profissionais.

Então o profissional de Serviço Social é demandado, cada vez mais, para atuar junto às instituições que trabalham com a violência, colaborando no empoderamento da autonomia das inúmeras vítimas de violência doméstica para que rompam decisivamente com a violação de seus direitos.

Gráfico 10: Percentual de moradia: acolhidas com ou sem residência fixa

Fonte: Casa Abrigo Antonia Nascimento Priante

Nos dados coletados referente a moradia das acolhidas, verificou-se conforme gráfico a seguir, que 60% não possuíam moradia, fator preocupante e complexo, principalmente, pela falta de renda financeira, permitindo que ocorresse o prolongamento do período de acolhimento. Uma das maneiras de solucionar a saída da acolhida era, após a audiência de resolução de pensão alimentícia, já acordado um valor, aguardar o recebimento, para então articular um local onde esta mulher e seus dependentes estejam ‘seguros’.

Segundo Lima (2013, p.59): “[...] nem todas as mulheres possuem ainda uma situação de independência em relação ao homem. No Brasil, a maioria absoluta das mulheres depende do homem e, às vezes, são obrigadas a se submeter de toda ordem para poder manter a relação familiar”. Uma parcela considerável de mulheres está inserida atualmente, nos mais diversos espaços sociais, atuando ativamente no cenário político, porém ainda existe uma realidade de violência doméstica, que perpassa nas camadas mais vulneráveis da sociedade.

Dessa forma, compreende-se que a questão da moradia está relacionada com a permanência da situação de violência, especialmente, quando estas acreditam que não há alternativa ou opção para romper com ciclo de violência.

  1. A rede de proteção e enfrentamento a violência doméstica contra a mulher

O enfrentamento a violência doméstica age na atualidade, através da implementação de um conjunto de rede de proteção social de forma articulada a esse público que possui seus direitos violados.

Assim, a rede de proteção à mulher vítima de violência é um mecanismo fundamental na esfera ‘proteção’ fazendo com que haja uma mudança cultural que se inicia com o conhecimento dos direitos da mulher e, do homem dos seus deveres em relação ao trato, convivência e respeito; que apoie a mulher na tomada de decisão para dizer não à violência e quebre o ciclo de opressão.

Esse conjunto articulado de organizações institucionais, unidades operacionais, secretarias, conselhos, dentre outros; juntos poderão contribuir na disseminação do conhecimento da rede de proteção e possibilitarão um caminho para o enfrentamento à violência doméstica contra a mulher.

O desenvolvimento da rede de proteção à mulher é composto por entidades do poder público e privado que buscam realizar um trabalho multidisciplinar no combate à violência contra mulher. Através do disk 180 (âmbito federal) ou 181 (âmbito estadual) ou através da denúncia nas delegacias, que seguem dando suporte diferenciado para cada caso.

Quando a usuária estiver sob risco iminente de morte é encaminhada ao Serviço de Apoio Emergencial à Mulher e quando necessário (se for por um tempo prolongado) é encaminhada à Casa Abrigo Antonia Nascimento Priante; e posteriormente, (pós-acolhimento) aos serviços disponibilizados pela rede, como o Centro Estadual de Referência e Apoio à Mulher-CREAM  e o  núcleo de Atendimento da Mulher vítima de violência da Defensoria Pública – NAEM, que realizam o trabalho subsequente, o primeiro, o atendimento psicológico, social e o segundo o atendimento jurídico (questões como dissolução dos bens, pensão alimentícia, divórcio) para que a mulher consiga estar segura em amplos sentidos, sem se sentir intimidada pelo agressor e consiga resolver as questões jurídicas da qual necessite. Esse fenômeno é um problema complexo, seu enfretamento necessita da composição dos serviços dessa natureza, demandando grande esforço do trabalho articulado bem como a integração entre os serviços existentes.

Rede de Proteção à Mulher vítima de violência doméstica do Amazonas elaborada pelas discentes do curso de Serviço Social do Centro Universitário do Norte – Uninorte

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A violência contra a mulher advém de uma construção sócio-histórica, portanto passível de desconstrução, que traz em seu seio estreita relação com as categorias de gênero, classe, raça/etnia e suas relações de poder.

Dessa forma, dentre as expressões tangíveis abordadas neste artigo, destaca-se o gênero como elemento constitutivo de desigualdade interligado às relações de poder; a violência física que é a mais visivelmente compreendida diferentemente da violência psicológica que ocorre no âmbito subjetivo; quem geralmente é o responsável pela agressão, na maioria dos casos, o companheiro; é captada também, a falta de esclarecimentos, pois muitas das mulheres vítimas da violência, não tiveram oportunidade de estudar ou mesmo de dar prosseguimento aos estudos. É importante ressaltar que esse fenômeno não ocorre somente com mulheres em vulnerabilidade social, mas também com as de nível elevado.

Dentre as expressões intangíveis, estão as consequências da violência doméstica: o desequilíbrio emocional, isto é, a fragilidade em que se encontravam pelas ‘marcas’ deixadas em seu subconsciente, isto é, a violência psicológica; a reprodução de violência que as próprias mulheres reiniciam, como meio de ‘descontar’ o sentimento de raiva, o estresse, a angústia, dentre outros; e não somente elas, mas os filhos, que por presenciarem, acabavam agindo de forma agressiva (ciclo de violência); a violência institucional, ocorrida nos diversos espaços de atendimento; a negligência própria a si e com seus filhos.

Foram comparados no item 3., os procedimentos ocorridos antes e após a vigência da Lei 11.340/06, apontados os fatores que influenciam a violência doméstica nos itens 1. e 1.2; na seção 3.2 a identificação do perfil socioeconômico.

É preciso o estabelecimento de uma gestão efetiva voltada para as causas sociais, que dê maior importância às políticas de enfretamento às violações dos direitos humanos, pois são as camadas sociais mais ‘frágeis’ que expressam esse fenômeno, como cita Jesus (2010, p.9): “os grupos de riscos são as mulheres, as crianças, as pessoas com deficiências físicas e mentais, e as da terceira idade”.

Sendo assim, a produção deste artigo é de suma importância para o conhecimento científico de acadêmicos / docentes e para a sociedade em geral; trazendo subsídios que esclarecessem essa temática além de trazer à tona informações inéditas que reafirmam conceituações de diversos autores que relacionam a temática de violência doméstica.

Ainda que se perceba a enorme disparidade das desigualdades sociais predominantes, principalmente, com a relação à mulher ainda não será suficiente para banir da sociedade o sentimento machista que predomina, pois continua escasso o conhecimento no que se refere à violência voltada para a mulher e suas especificidades, a pretensão é de tornar uma sociedade esclarecida e defensora dos direitos da mulher, fazendo destes a sua bandeira de luta.

 

REFERÊNCIAS

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[1] Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, 27/09/2013.

[2] Nome fictício dado aos acolhidos da unidade operacional Casa Abrigo Antonia Nascimento Priante

[3] Medidas Protetivas de Urgência – MPU’s

[4] Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA

[5] Lei Orgânica da Assistência Social

[6] Conselho Nacional de Assistência Social

[7]  Projeto de Lei 6.295/13 da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência contra a Mulher tendo como referência a Lei específica 12.845/13

[8] Casa Abrigo Antonia Nascimento Priante – CAANP

[9] Secretaria de Estado da Assistência Social e Cidadania (SEAS)

[10] Como exemplo, temos na cidade de Manaus – o Sine Manaus e o Sine Amazonas (Sistema Nacional de Emprego do Estado e da capital do Amazonas) onde são encaminhadas as mulheres acolhidas para realizarem o cadastro no sistema e aguardarem uma possível oportunidade emprego.

[11] Cartilha da Promotoria de Justiça do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul

[12] O serviço social inicia o atendimento de acolhimento, realizando o cadastro socioeconômico, e em seguida, a entrevista social. Posteriormente, orienta os procedimentos da unidade, direciona as demandas para os profissionais internos e encaminha para os demais órgãos/instituições.

[13]Os profissionais não exerciam a prática da reflexão como forma de buscar mecanismos para operacionalizar as demandas vigentes. Foi somente com o Código de Ética Profissional do Serviço Social em 1986 que se iniciou a ideia de mudança, isto é, a negação ao conservadorismo profissional, percebendo que as fragilidades da sociedade, nas diversas expressões da questão social, tinham em sua raiz a dinâmica do capital.

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