ANÁLISE DOS ARTS. 947 E 948 DO ANTEPROJETO DO NOVO CPC uma interpretação crítica dos poderes do relator à luz do objetivo de uniformizar a jurisprudência a partir dos julgados do STF e do STJ.
Por Andre Crescenti Abdalla Saad Helal | 30/05/2014 | DireitoANÁLISE DOS ARTS. 947 E 948 DO ANTEPROJETO DO NOVO CPC – uma interpretação crítica dos poderes do relator à luz do objetivo de uniformizar a jurisprudência a partir dos julgados do STF e do STJ.[1]
Andre Crescenti Abdalla Saad Helal[2]
Christian Barros Pinto[3]
Sumário: Introdução; 1. O Processo Civil atual e suas modificações recentes.; 1.1 – Os objetivos do anteprojeto para um novo Código de Processo Civil.; 2. Os Recursos Excepcionais agora e no futuro.; 2.1 – Recursos excepcionais no diploma processual em vigência.; 2.2 – Recurso Extraordinário e Recurso Especial no anteprojeto do novo Código de Processo Civil.; 3. A (suposta) irrecorribilidade da decisão do relator nos arts. 947 e 948 do anteprojeto do novo Código de Processo Civil.; Considerações finais.
RESUMO
O objetivo precípuo deste paper é fazer um recorte do projeto de lei nº166/2010, anteprojeto do ovo CPC, analisando de forma aprofundada os dispositivos que trouxeram ao normativo processual civil a remessa determinada pelo relator do recurso especial ou extraordinário, quando houver dúvida quanto à questão ser federal ou constitucional. Frisa-se o aspecto da importância da decisão colegiada sobre essa remessa, tendo em vista que um dos objetivos principais do novo códex é a uniformização da e da força jurisprudência, mormente quanto à observação dos precedentes dos tribunais de sobreposição em relação às decisões em todos os graus de jurisdição.
PALAVRAS-CHAVE
Novo CPC – Recursos excepcionais – Fungibilidade – Força dos precedentes – Uniformização da jurisprudência.
Introdução
Este trabalho tem como objetivo analisar os artigos 947 e 948 do anteprojeto para o novo Código de Processo Civil brasileiro, tendo em vista os seus objetivos principais, mormente o de coesão nos julgamentos e de unificação da interpretação do direito, ou seja, a harmonização da jurisprudência.
É dado um breve vislumbre na situação atual do sistema processual civil brasileiro, suas recentes reformas e os anseios da atualidade por uma prestação jurisdicional mais eficiente e coesa, que desembocou na criação da Comissão para elaboração do anteprojeto do novo CPC.
A ênfase é dada no tratamento da uniformização da jurisprudência no âmbito dos tribunais de sobreposição, através do julgamento de recurso especial pelo Superior Tribunal de Justiça e de recurso extraordinário no Supremo Tribunal Federal, e a consolidação da tendência de haver entre esses dois recursos certa fungibilidade, visto que, por vezes, é tarefa difícil estabelecer o que é afronta à Constituição diretamente e o que é infringência de norma federal.
Analisa-se então o mecanismo de remessa entre os dois recursos quando o relator entende que a questão é federal em um recurso extraordinário, ou constitucional em um recurso especial. Mais importância ainda se dá à atribuição dada ao relator de decidir, sozinho, sobre tal remessa.
O método utilizado é o da pesquisa bibliográfica e de análise crítica e contundente da nova legislação em trâmite no Congresso Nacional.
1. O Processo Civil atual e suas modificações recentes.
O Código de Processo Civil vigente, lei nº 5.869 de 11 de janeira de 1973 é o diploma legal que rege, principal ou subsidiariamente, todo o procedimento do exercício do direito de ação que, nos dizeres de Luiz Guilherme Marinoni (2010, p. 224), é um direito fundamental decorrente do estado constitucional, e que tem como conteúdo o exercício e apreciação do direito material pelo Poder Judiciário:
“[...] a norma constitucional que afirma que a lei não excluirá da apreciação do poder judiciário lesão ou ameaça a direito (CF, art. 5º, XXXV) significa, de uma só vez, que: i) o autor tem o direito de afirmar lesão ou ameaça a direito; [...] e viii) o autor tem direito ao procedimento adequado à situação de direito substancial carente de proteção.” (grifo nosso.)
Portanto, quando alguém há de perquirir algum direito material em juízo, há de observar as regras procedimentais vigentes, reguladas pelo Código de Processo Civil.
Acontece que, com passar de quase três décadas de vigência, o CPC atual têm sofrido diversas modificações e reformas, com o intuito de levar ao jurisdicionado o que é demandado por ele, o fato natural que muda e que, por todas as complexidades das quais uma lei federal depende para sua modificação, acabam não tendo o efeito necessário para o cidadão carecedor de proteção do Poder Judiciário. É como diz Cândido Rangel Dinamarco, (2003, p. 20-21), a imperfeição da norma, materializada no caso concreto que não encontra amparo legal suficiente, é que leva a doutrina à criticá-la, mas não criticar por criticar, mas sim para propor inovações para uma melhor tutela jurisdicional.
Nessa senda que, apesar de inúmeras etapas de reformas, com o tempo foi-se fazendo necessária uma nova lei processual geral. Isso tudo é decorrente da constitucionalização do direito, mormente após promulgação da Constituição Federal de 1988, a Constituição cidadã da República, que trouxe o Processo Civil novos paradigmas no tocante à percepção de seu aspecto instrumental, onde há uma expressa quebra do velho ditame de que “o direito processual serve ao direito material (DINAMARCO, op. cit. p. 42).
Passou-se, então, a ver a lei processual não só como um instrumento para a realização do direito material pretendido pelo jurisdicionado, mas sim, ao ser estudado, analisado e interpretado à luz dos ditames da Constituição Federal, como um complexo de regras processuais que regem, sim, o procedimento do direito de agir, mas que também garantem materialmente direitos ao jurisdicionado, tais como o devido processo legal, a duração razoável do processo, o direito de defesa, nos seu aspecto amplo e no contraditório, dentre outros. (SCARPINELLA BUENO, 2003, pp. 53-57).
E foi por esse caminho que andou o legislador, no anteprojeto para um novo Código de Processo Civil, como se explanará adiante.
1.1 – Os objetivos do anteprojeto para um novo Código de Processo Civil.
Em 2009, atendendo aos anseios da doutrina processualista, o Presidente do Senado Federal, através do ato nº 379 do mesmo ano, instituiu uma comissão de juristas para a elaboração de um anteprojeto para um novo Código de Processo Civil, presidida pelo atual ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux. Daí surgiu a proposta de lei nº 166 de 2010, o “Novo CPC”.
O anteprojeto, em sua exposição de motivos, trouxe cinco objetivos norteadores para a elaboração do novo códex processual, que são de suma importância para o entendimento do que se propugna neste paper:
“Com evidente redução da complexidade inerente ao processo de criação de um novo Código de Processo Civil, poder-se-ia dizer que os trabalhos da Comissão se orientaram precipuamente por cinco objetivos: 1) estabelecer expressa e implicitamente verdadeira sintonia fina com a Constituição Federal; 2) criar condições para que o juiz possa proferir decisão de forma mais rente à realidade fática subjacente à causa; 3) simplificar, resolvendo problemas e reduzindo a complexidade de subsistemas, como, por exemplo, o recursal; 4) dar todo o rendimento possível a cada processo em si mesmo considerado; e, 5) finalmente, sendo talvez este último objetivo parcialmente alcançado pela realização daqueles mencionados antes, imprimir maior grau de organicidade ao sistema, dando-lhe, assim, mais coesão.” (Grifo nosso.)
É de saltar aos olhos, então, que a Comissão de elaboração do novo Código de Processo Civil deu uma primazia ainda mais evidente à efetividade e à coesão das decisões judiciais proferidas pelos órgãos que compõe o Poder Judiciário. E essa afirmação tem uma aplicação prática muito importante: o fortalecimento da jurisprudência no atual sistema legal brasileiro.
Essa será a ênfase dada aos ditames do anteprojeto do novo Código de Processo Civil neste trabalho, visto que os dispositivos a serem examinados têm íntima relação com a força dos precedentes que propugna a Comissão do anteprojeto.
Portanto, andou bem a Comissão ao, na exposição de motivos, deixar claro o que propõe, em relação ao poder jurisprudencial, mormente dos tribunais superiores, em relação às demais demandas que semelhantes ou iguais. Como pode ser ver (BRASIL, 2010, p. 17):
“[...] haver, indefinidamente, posicionamentos diferentes e incompatíveis, nos Tribunais, a respeito da mesma norma jurídica, leva a que jurisdicionados que estejam em situações idênticas, tenham de submeter- se a regras de conduta diferentes, ditadas por decisões judiciais emanadas de tribunais diversos. Esse fenômeno fragmenta o sistema, gera intranquilidade e, por vezes, verdadeira perplexidade na sociedade. Prestigiou-se, seguindo-se direção já abertamente seguida pelo ordenamento jurídico brasileiro, expressado na criação da Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal (STF) e do regime de julgamento conjunto de recursos especiais e extraordinários repetitivos (que foi mantido e aperfeiçoado) tendência a criar estímulos para que a jurisprudência se uniformize, à luz do que venham a decidir tribunais superiores e até de segundo grau, e se estabilize. Essa é a função e a razão de ser dos tribunais superiores: proferir decisões que moldem o ordenamento jurídico, objetivamente considerado. A função paradigmática que devem desempenhar é inerente ao sistema.”
Demonstra-se que a Comissão optou por prestigiar os princípios da isonomia e da segurança jurídica das decisões judiciais, que afetam diretamente o jurisdicionado e suas decisões na vida pessoal, pois a este será dado maior estabilidade diante da resolução de possíveis conflitos que possam resultar de suas ações na vida cotidiana.
Ademais, em relação à força atribuída aos precedentes para alcançar o objetivo da coesão das decisões judiciais, Cintia Regina Guedes (2012, pp. 266-268) afirma que as decisões judiciais passarão a ser aquelas esperadas pelos cidadãos, provenientes de julgamentos de massa anteriores, produzindo assim maior segurança para o jurisdicionado. A obediência pelas instâncias inferiores ao que já fora decidido pelos Tribunais Superiores geraria uma quebra da tão difamada “loteria jurídica”, em que cidadãos com demandas iguais acabam por ter decisões diferentes e, por muitas vezes, opostas, como muito ocorre atualmente.
Entretanto, a mesma autora faz uma ressalva aos críticos apressados que diriam que ocorreria, aí, um engessamento da jurisprudência nacional. A mudança de uma tese jurídica, nas alterações na jurisprudência devem ser fundamentadas e motivadas (art. 847, V, e §1º)[4], para que não haja, dessa forma, uma arbitrariedade por parte dos julgadores diante dos casos que venham a julgar. Aponta também a presença do overruling, instituto presente nos países de commom law, no art. 847, §§1º e 2º, pois quaisquer mudanças posteriores devem, também, serem motivadas e fundamentadas, apresentando a necessidade da mudança de tal paradigma.
Portanto, pode-se ver que os novos caminhos a serem traçados pelo anteprojeto do novo Código de Processo Civil têm como uma de suas características mais marcantes essa preferência e objetividade de alcançar um padrão jurisprudencial sobre as decisões proferidas em todos os âmbitos do Poder Judiciário, em consonância com as decisões consolidadas pelo STJ e pelo STF. E isso é de suma importância para o que se vem aqui expor.
2. Os Recursos Excepcionais agora e no futuro.
2.1 – Recursos excepcionais no diploma processual em vigência.
Os recursos excepcionais, ou recursos de sobreposição, assim chamados os Recursos Extraordinário e Especial (DIDIER, 2012, p.269) são meios de impugnação às decisões judiciais que têm, como objetivo simplificado, respectivamente, assegurar a eficácia e a interpretação das normas constitucionais e das leis federais.
Estão previstos, ambos, na Constituição Federal (Recurso Extraordinário para o STF – art. 102, III e Recurso Especial para o STJ no art. 105, III). No Código de Processo Civil em vigência atualmente, seus procedimentos estão disciplinados entre os artigos 541 ao 545.
No novel diploma processual em trâmite no Congresso Nacional, a disciplina dos recursos excepcionais continua razoavelmente a mesma, tendo algumas peculiaridades como mudanças. Mas o objetivo de cada um está engessado constitucionalmente, nos termos dos artigos da carta magna acima elencados. E quanto a nada mudou.
O que se vê de mais interessante, e que para este trabalho é crucial, é a consolidação legal de algo aclamado pela doutrina (MARINONI, 2008, pp. 569-579) de certa fungibilidade (atenta-se a essa palavra com cuidado, para que não haja confusão com o princípio da fungibilidade recursal como tratado doutrinariamente) entre ambos recursos, visto que vasta jurisprudência, algumas até consolidadas através de enunciados sumulares, divergem quanto à matéria objeto do recurso excepcional ser de questão federal ou constitucional, já que muito se pugna, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, pelo não cabimento de Recurso Extraordinário quando a ofensa à Constituição da República for indireta.
Nessa seara defende Rodolfo de Camargo Mancuso (2010, p. 241-242):
“Primeiro, convém abordar o fato de que, sendo o nosso sistema jurídico hierarquizado a partir da CF, pode dar-se que uma decisão, infringindo ou interpretando erroneamente uma lei federal, afronte ipso facto a CF, donde aquela norma haure sua coercitividade. Sensível a isso, o STF tem procurado equacionar essa imbricação – lei federal/Constituição Federal -, decidindo, v.g.: que a ofensa a preceito constitucional, para que autorize o recurso extraordinário, há que ser direta e frontal (RTJ 107/661, 120/1.279); ‘direta e não por via reflexa’ (RTJ 105/704 e 1.279); ‘se, para provar a contrariedade à Constituição, tem-se, antes, de demonstrar a ofensa à lei ordinária, é esta que conta para a admissibilidade do recurso extraordinário em face das restrições regimentais ‘ (RTJ 94/462; neste sentido: RTJ 60/294, 84/119, 103/188, 104/191) [...].”(Grifo nosso)
Faz-se extremamente oportuno tal colação de decisões, visto que as hipóteses de cabimento de cada recurso excepcional são claras e taxativas.
No entanto, a despeito do enunciado da súmula n. 636 do STF[5], afirma Luís Roberto Barroso (2012, p. 133) que, na prática, é muito difícil, por vezes, delimitar o que seja ofensa direta ou indireta à Constituição, visto que o princípio da legalidade acaba por ser violado toda vez que qualquer norma seja aplicada de maneira incorreta. Afirma o autor, ainda, que em tempos de neoconstitucionalismo e consequente constitucionalização do direito, não lhe parece certo que se barre o acesso à jurisdição constitucional somente porque exista lei ordinária que trate do assunto (contrariando, assim o entendimento sedimentado pelo STF na súmula acima aventada).
2.2 – Recurso Extraordinário e Recurso Especial no anteprojeto do novo Código de Processo Civil.
Como dito alhures, a disciplina em relação ao cabimento e ao procedimento dos recursos de sobreposição pouco mudou em relação ao Código de Processo Civil em atual vigência.
Entretanto, algumas mudanças significativas ocorreram no que tange à recorrente indecisão das duas cortes superiores, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal sobre o que é questão federal e questão constitucional.
Tal reflexão levou a comissão, mormente em vista do princípio da economia dos atos processuais (CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO, 2010, pp. 79-80), já que o processo, e, principalmente os recursos excepcionais, geram gastos econômicos para as partes envolvidas, portanto, para que não ocorra de um recurso especial ser inadmito por entender a corte que a matéria é constitucional, perdendo assim tempo e dinheiro o autor e o próprio tribunal, a estipular um aproveitamento de um recurso excepcional pelo outro, como se demonstra claramente nos artigos do anteprojeto que oportunamente se cola abaixo:
Art. 947. Se o relator, no Superior Tribunal de Justiça, entender que o recurso especial versa questão constitucional, deverá remeter o recurso ao Supremo Tribunal Federal, que procederá à sua admissibilidade ou o devolverá ao Superior Tribunal de Justiça, por decisão irrecorrível.
Art. 948. Se o relator, no Supremo Tribunal Federal, entender que o recurso extraordinário versa sobre questão legal, sendo indireta a ofensa à Constituição da República, os autos serão remetidos ao Superior Tribunal de Justiça para julgamento, por decisão irrecorrível.
Essa remessa a que se referem os dois artigos, de um Tribunal para o outro, é a materialização do princípio da instrumentalidade das formas no âmbito recursal, mais especificamente, nos recursos excepcionais. É o que Marinoni e Mitidiero (2010, p. 188) chamam de ponte entre o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, objetivando a unidade do direito, e não só o interesse do recorrente.
Os mesmos autores sustentam que (op. cit., p. 164) o projeto deu preferência ao trabalho com o plano da jurisprudência, dano um passo adiante no ordenamento jurídico brasileiro, um país de dimensões enormes e disparidades sociais e econômicas relevantíssimas. É uma evolução, visto que qualquer jurisdicionado tem direito a tutela isonômica e coerente com o que se tem decido em casos semelhantes ou iguais perante todo o país.
O problema que se vê, então, é apenas o da suposta irrecorribilidade da remessa do Supremo Tribunal Federal, ao receber o recurso extraordinário, para o Superior Tribunal de Justiça, por entender o relator que a questão é federal e não constitucional, e vice-versa.
3. A (suposta) irrecorribilidade da decisão do relator nos arts. 947 e 948 do anteprojeto do novo Código de Processo Civil.
No atual Código de Processo Civil, existe o chamado “agravo interno” que, na lição de Didier (2012, p. 147) é interposto contra decisão do relator. No anteprojeto do novo Código de Processo Civil, o agravo interno, até então muito discutido pela doutrina quanto à sua natureza recursal, tem previsão legal, no artigo que se cola abaixo:
“Art. 936. Ressalvadas as hipóteses expressamente previstas neste Código ou em lei, das decisões proferidas pelo relator caberá agravo interno para o respectivo órgão fracionário, observadas, quanto ao processamento, as regras dos regimentos internos dos tribunais.”(Grifo nosso).
Portanto, ainda cabe agravo contra a decisão do relator. Entretanto, o artigo faz uma ressalva, ao dizer que tal recurso não é cabível quando expressa previsão constar da norma. E os artigos 947 e 948, expostos no tópico anterior, contem exatamente esse ditame, que da decisão do relator de um dos Tribunais Superiores que pugna pela remessa do recurso para o outro é irrecorrível.
Ora, segundo Luiz Guilherme Marinoni (2008, p. 608):
“[O] ‘agravo interno’ constitui apenas maneira de devolver ao colegiado competência que originariamente já era sua. [...] O que tem é um recurso destinado a certo órgão, cujo seguimento se vê obstado pela intervenção de alguém (o relator, no caso). O agravo apenas desobstrui a via normal do recurso, permitindo a fluência adequada da irresignação.”(Grifo nosso).
É a clara observância ao princípio de que o juiz natural, no grau de recurso excepcional, é o colegiado, e não o relator. A aferição de poderes ao relator é um instrumento que agiliza, sim, o processo, principalmente quando se trata da celeridade na observação dos requisitos de admissibilidade de um recurso.
Entretanto, não se pode deixar que tais poderes sejam bastantes para que o jurisdicionado não tenha escolha senão se resignar à uma decisão que ele esperar (e tem o direito de) ser do colegiado, e vem a ser do relator, de forma irrecorrível.
É o que Fredie Didier (2012, p.179-180), ao analisar a decisão do relator (supostamente irrecorrível) de transformar o agravo de instrumento em agravo retido, no Código de Processo Civil atual, critica, pois, a colegialidade das decisões nos tribunais é, além de uma garantia fundamental do processo e garantia individual do jurisdicionado, é também fator legitimante da decisão em grau recursal, visto que a razão de ser da revisão de certa demanda por um tribunal é justamente a análise do caso por um número maior de julgadores, teoricamente mais experientes e capacitados, em busca de uma prestação jurisdicional mais próxima da justiça.
Por essa razão que pugna a doutrina não ser admissível tal suposta irrecorribilidade sobre a decisão que muda o regime do agravo de instrumento em retido. É o que Barbosa Moreira (2012, p. 510) considera como dispositivo de redação deselegante que suscita forte perplexidade.
Nessa senda, traz-se o problema para a atualidade do anteprojeto do Novo Código Civil. Será que essas decisões, de remessa de um tribunal para o outro, são mesmo irrecorríveis, visto que a quem cabe julgar o Recurso Especial e o Recurso Extraordinário é, respectivamente, o órgão colegiado do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal?
Tais dispositivos acabam por terem redação infeliz. Aplaude-se, como já se viu, a inserção da instrumentalidade e da “ponte” entre as duas Cortes Superiores no tocante aos recursos excepcionais. No entanto, é necessário que se tenha certa cautela. A decisão que define a remessa de um recurso de um tribunal para o outro deveria caber ao colegiado, e não ao relator, visto que o julgamento deste recurso, como já se viu, pode ter consequências sobre todos os outros julgamentos sobre a mesma matéria sob apreciação pelo Poder Judiciário brasileiro, devido à força que foi dada aos precedentes, quase que vinculante, no anteprojeto do novo Código de Processo Civil.
Considerações Finais
Viu-se que, diante das transformações pelas quais a sociedade brasileira tem passado, as demandas jurídicas tem se modificado e multiplicado de forma rápida, e, portanto, a lei processual passou a ser, diante de uma visão constitucional do processo em si, não só um instrumento para a realização do direito material pretendido pelo jurisdicionado. O processo passou a ser, também, um complexo de garantias e direitos que o cidadão tem ao ter a sua demanda apreciada pelo Poder Judiciário.
Com efeito, após diversas reformas, chegou-se a uma nova etapa na história do processualismo civil brasileiro: a formação de uma comissão para a criação de um projeto para um novo diploma civil geral e a posterior consolidação de um anteprojeto para o novo Código de Processo Civil.
A partir daí, analisando os objetivos de coesão e de unicidade do Direito dentro de todo o território nacional, e, mais precisamente, a força que foi dada aos precedentes judiciais nesta nova legislação, principalmente aos julgados do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, em sede de recurso extraordinário e recurso especial, respectivamente, para uma uniformização ainda maior da jurisprudência dos tribunais brasileiros.
O que se visa no novo códex é a harmonização do entendimento de regras constitucionais e de leis federais com as decisões em todos os graus de jurisdição do Poder Judiciário, criando paradigmas a serem seguidos pelos tribunais de superposição.
Entretanto, ocorre que há, por vezes, certa dificuldade em aferir, por parte das cortes superiores, quando a questão de direito versa sobre lei federal ou questão constitucional diretamente. E é por isso que o mecanismo de remessa de um tribunal para o outro, verdadeira fungibilidade recursal, foi atribuída ao relator do recurso especial ou extraordinário.
O problema foi visto ao se perceber a irrecorribilidade da decisão diante de tal remessa. Ora, se o objetivo principal do Novo Código de Processo Civil é uma coesão e harmonização jurisprudencial das decisões proferidas pelas cortes superiores, é necessário que tal mecanismo aconteça de forma segura. Daí surge a pergunta: cabe somente ao relator decidir pela remessa, de forma irrecorrível? Ou essa atribuição, como a do julgamento do recurso em si, é do colegiado?
A resposta a que se chegou neste trabalho é de que, apesar de louvável o esforço do legislador em prestar celeridade ao processo atribuindo alguns dos poderes ao relator, a uniformização da jurisprudência pretendida é aspecto de imperiosa importância, devendo toda e qualquer decisão passar não somente pelo relator, mas sim pelo órgão colegiado, juiz natural nos tribunais.
Portanto, conclui-se que, apesar de ter andado bem o legislador ao estabelecer tal “ponte” entre o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, pela importância dada aos precedentes no anteprojeto do novo Código de Processo Civil, a decisão que estabelece a remessa de um recurso de um tribunal para o outro não deve caber somente ao relator, de forma irrecorrível, devendo ela ser passível de agravo, ou mesmo, que tal decisão seja proferida pelo órgão colegiado dos tribunais superiores como um todo.
Isso tudo porque os princípios da segurança jurídica e da isonomia nos julgamentos das demandas dos jurisdicionados devem ser levados em conta de forma primordial, mesmo que à isso custe a celeridade do processo, pois o que se está em jogo é a justiça do julgamento de um recurso que terá repercussão nas decisões da vida de cada cidadão que se pauta pelo modo como as questões jurídicas são decididas no âmbito do Poder Judiciário do Brasil.
REFERÊNCIAS:
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DIDIER JR. Fredie. CARNEIRO DA CUNHA, Leonardo. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 3. 10ª ed. Salvador: Ed. Juspodivm, 2012.
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MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Processo Civil. Vol. 1 – Teoria Geral do Processo. 4ª ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2010.
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NERY JR. Nelson. Princípios Fundamentais – Teoria Geral dos Recursos. 5ª ed. São Paulo: Ed. Revisa dos Tribunais, 2000.
SCARPINELLA BUENO, Cassio. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil – Vol. 1 – Teoria geral do direito processual civil. São Paulo: Ed. Saraiva, 2007.
Senado Federal. Anteprojeto do novo código de processo civil. Brasília – 2010.
[1] Paper apresentado para a disciplina de Recursos no Processo Civil, do 6º período do curso de Direito da UNDB.
[2]Graduandos em Direito, 6º período, na UNDB.
[3] Professor Orientador.
[4] Art. 847. Os tribunais velarão pela uniformização e pela estabilidade da jurisprudência, observando-se o seguinte: I – sempre que possível, na forma e segundo as condições fixadas no regimento interno, deverão editar enunciados correspondentes à súmula da jurisprudência dominante; II – os órgãos fracionários seguirão a orientação do plenário, do órgão especial ou dos órgãos fracionários superiores aos quais estiverem vinculados, nesta ordem; III – a jurisprudência pacificada de qualquer tribunal deve orientar as decisões de todos os órgãos a ele vinculados; IV – a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores deve nortear as decisões de todos os tribunais e juízos singulares do país, de modo a concretizar plenamente os princípios da legalidade e da isonomia; V – na hipótese de alteração da jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica. § 1º A mudança de entendimento sedimentado observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando o imperativo de estabilidade das relações jurídicas. § 2º Os regimentos internos preverão formas de revisão da jurisprudência em procedimento autônomo, franqueando-se inclusive a realização de audiências públicas e a participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a elucidação da matéria.
[5] “Não cabe recurso extraordinário por contrariedade ao princípio constitucional da legalidade, quando sua verificação pressuponha rever a interpretação dada a normas infraconstitucionais pela decisão recorrida.”