Análise do livro didático: História e Consciência do Brasil na Ótica de Gilberto Cotrim.

Por Luciano Agra | 29/01/2009 | História

Será que o que "eu" na responsabilidade de exercer a função de profissional em história ao ministrar uma aula, mediar discursos, debates, seminários e palestras em sala de aula, com o auxílio de instrumentos no meu método de ensino, como por exemplo o livro didático, reflito sobre as seguintes questões? A minha concepção teórica e postura pedagógica como proposta de ensino-aprendizagem em história contribuem para formar cidadãos(ãs)? A história como saber das ciências sociais, deve ser problematizada como um espelho ou não das problemáticas que compõem e configuram uma sociedade dentro de uma temporalidade e espacialidade específicas?

Bom, estas interrogações "representam" duas de inúmeras problemáticas que poderíamos levantar aqui neste trabalho, que tem como proposta central a análise de um livro didático de história. Em síntese, estas duas interrogações já nos dão total atenção e pertinência à seriedade das pesquisas que vem sendo feitas sobre o livro didático em nossa contemporaneidade. Primeiramente, porque na minha concepção existem inúmeras correntes teóricas e propostas pedagógicas que são carregadas de interesses e que nos regulam desde a nossa formação do profissional, e que vai influenciarnos diretamente na maneira de instrumentalizarmos o livro didático em sala de aula, como por exemplo o Estado, a indústria cultural e as diversas tramas que configuram da fabricação à distribuição do livro didático nas escolas de todo o Brasil. Em segundo lugar, por trás de todo este campo de poderes que potencializa o livro didático como objeto de interesses complexos, e para além de qualquer teoria ou proposta pedagógica, existem crianças, meninos e meninas, adolescentes, jovens, homens e mulheres, e até pessoas da melhor idade, todos estes sujeitos compõem o corpo de uma sociedade na forma mais contingente possível de se imaginar, ali diante de nossos olhos, com olhares e ângulos diferentes do nosso. Desta relação se levanta uma problemática de nossa responsabilidade.

Se um médico(a) salva vidas com diagnósticos preventivos ou cirurgias por exemplo, contribuindo assim como ator de uma função social. O que dizer de um professor(a)? Somos nós quem com muito menos recursos seja do governo federal, estadual ou municipal, por exemplo, lidamos diariamente com nossas crianças adolescentes, jovens e adultos, muitos dos quais fazem parte de uma realidade estatística e histórica de nosso país, precária. Seja em falta de habitação, saúde, segurança, educação qualificada, laser, acesso a cultura, informática e principalmente atenção, carinho e afeto, muitas vezes tal carência vindos dos próprios pais. Daí a importância da nossa função social enquanto historiador(as), ao encararmos a profissão, desde já, devemos passar por cima de todas as adversidades, sejam elas de nossa formação acadêmica, questão salarial, estrutural e etc, pois exercer a função social de professor(a) exige sacrifício e um grande desempenho prazeroso de salvar dezenas de vidas, sejam das drogas, do analfabetismo ou da falta de perspectiva de vida social para muitos jovens e adolescentes por exemplo. Como recompensa, o mais importante neste processo de mediação é trazer o indivíduo para o campo social como ator que se reconhece a partir de suas necessidades internas, para reconhecer seus direitos e deveres dentro das circunstâncias externas de seu lugar social. "O indivíduo é social não como resultado de circunstâncias externas, mas em virtude de uma necessidade interna." (WALLON, 2008, p. 76)

Esta citação do médico, psicólogo e filósofo francês, "Henri Wallon", representa sua proposta pedagógica de "educação integral",baseado na teoria "sócio-interacionista", que é na minha concepção importantíssima para que nós profissionais da educação reflitamos como foi interrogado no início da introdução, tanto para os nossos posicionamentos teóricos e pedagógicos quanto da instrumentalização do livro didático na sala de aula, pois anterior ao livro didático que é um importante suporte articulador dos conteúdos educacionais e da prática do ensino, existe a nossa "função social", pois assim como o médico, engenheiro, policial e etc, que possuem suas funções sociais, nos temos o dever de potencializar como ratifica a citação mencionada acima, a capacidade sócio – interacionista dos alunos. Trata-se do reconhecimento do "eu", para com o "outro", e vice e versa, onde o sujeito a partir de suas próprias experiências desde a sua infância assume a posição de sujeito social, onde lhe é reservado direitos, assim como ele mesmo tem seus deveres sociais a serem exercidos.

Análise do livro didático: História e Consciência do Brasil.

Autor: Gilberto Cotrim- 2º Grau,2º edição – 1995, Editora: Saraiva.
Livro de bases relacionado a História intercalada.

1. Proposta histórica

1.1 - Concepção de História:

O livro "História e Consciência do Brasil" tem como concepção de história fazer uma "leitura crítica" do processo histórico do Brasil, do período colonial até a nossa redemocratização da década de 80 do século XX. A relação com que o livro "História e Consciência do Brasil" aborda os sujeitos históricos com as problemáticas de seus contextos, os configura dentro do conceito de "luta de classe" constituída e representada no livro através de grandes heróis, vultos da história, construções de mitos e memórias, datas e fatos comemorativos da história e etc. Na minha concepção, esta apreensão visível na análise do livro "História e Consciência do Brasil", do conceito de "luta de classe", além de outros como "Consciência", que vem intitulado na própria capa do livro, são representações do contexto e do "lugar social" do próprio Gilberto Cotrim, onde as leituras marxistas influenciam diretamente na sua abordagem tanto histórica quanto pedagógica, logo a sua relação analítica para com os sujeitos históricos abordados no livro não poderiam deixar de estar correlacionados diretamente com as leituras críticas marxistas da década de 80 e 90, contexto da produção de Gilberto Cotrim.

O tempo histórico e cronológico proposto no livro é "linear", visto como evolucionista e processual em busca de uma suposta consciência. Em relação a abordagem historiográfica de Gilberto Cotrim apreendida nas temáticas do livro, pude perceber algumas renovações historiográficas inseridas nas temáticas, como por exemplo, discussões do cotidiano como vestimentas, alimentação, literatura e etc, além de trazer uma abordagem nova para o contexto da inserção da mulher do trabalho e a idéia de "mentalidade" dos grupos sociais.

1. 2 – Conhecimentos históricos:

Como já virmos anteriormente à época da produção do livro "História e Consciência do Brasil", conceitos como luta de classe, mentalidade e Consciência por exemplo estão postos corretamente. Já imagens como a foto de Christiano Júnior, intitulada por Gilberto Cotrim como, "trabalhadores negros no Brasil"(p. 205), é um determinante que na minha concepção torna-se insuficiente para se pensar a mentalidade do negro no período colonial, já que a proposta de Gilberto Cotrim, como ele mesmo menciona na sua apresentação do livro, é instrumentalizar a "leitura crítica" das temáticas propostas. A partir de tal fotografia, isto torna-se impossível uma vez que não há uma problematização anterior à exposição da foto, dá situação do negro no período colonial, suas lutas, resistências, condições de trabalho e etc, ou seja, falta um movimento de articulação desta imagens comabordagens referentes ao negro no período colonial que o re-configure para além de um simples objeto de dominação e exploração, além da ilustração da foto não vir acompanhada do ano em que foi tirada, e de não mencionar quem são os negros fotografados, é como se tais negros não tivessem identidades. E mesmo Gilberto Cotrim escrevendo na década de 90, tais preocupações já deveriam ser reavaliadas, se se propõe fazer uma leitura crítica sobre as abordagens sociais do período colonial.

Chamo atenção desta observação importante porque o que pode passar despercebido em uma rápida leitura do livro, na minha concepção pode reforçar preconceitos e extereotipos representados nos próprios livros didáticos, pois analisando agora a tela de "Debret" exposta na página 45, podemos perceber a diferença do trato para com a foto anterior e esta tela. Tal ilustração traz a figura imponente de D. João VI, como herói e membro da família real localizada no Rio de Janeiro, coroado em 1816. Mesmo o ano da tela de Debret também não estando exposto junto com a imagem podemos fazer um comparativo das duas imagens problematizadas acima. Percebemos, a primeira imagem não se articula dentro de uma historicização colonial que amplie o conhecimento em sala de aula do negro e sua luta social dentro deste contexto, já a segunda imagem é articulada como a representação do lugar de poder da família real a parti de sua chegada ao Brasil. Em síntese, a primeira imagem torna-se marginal da segunda, por isso é altamente pertinente o conhecimento histórico das imagens e suas representações tanto do contexto a que tal imagem se retrata quanto o contexto de sua produção, para que nos professores(as) de história, façamos movimentos deslocadores de tais imagens na sala de aula. Pois se eu tenho um conhecimento histórico dinâmico com as problemáticas do meu tempo, mesmo as imagens carregando preconceitos, estigmas, estereótipos e incoerências que podem passar despercebidos como codificações ocultas, eu posso às reconfigurá-las e reelaborá – las a partir do conhecimento e "utensilagem mental" do meu presente historiográfico, preenchendo assim lacunas e distorções históricas presentes nos livros didáticos.

1.3. Fontes históricas /documentos

As fontes históricas e os documentos que constituem o livro "História e consciência do Brasil", são elaboradas e configuradas a partir da historiografia e metodologia do contexto de Gilberto Cotrim que influenciam diretamente também os profissionais que fazem parte da editoração, pesquisa de texto, supervisão de arte, projeção gráfica e a diagramação do corpo do livro didático. Sendo assim, consegui dentro da minha análise encontrar representações da "história quantitativa", "serial" e "estatística", além da utilização de mapas, cartografias, fotos, telas, depoimentos de jornais, datas comemorativas e etc. Todas estas representações contidas no livro se completam com a grande influencia econômica, política e social das leituras críticas marxistas- estruturalistas do contexto da década de 90 do século XX.

1.4. Imagens 

Como eu já falei anteriormente no item concepção histórica as imagens do livro "História e Consciência do Brasil", incoerentemente não trazem o ano em que foram construídas, e muito menos o porque de suas utilizações no corpo do livro didático. Ou seja trata-se da imagem pela imagem, onde não há uma problematização da imagem que contextualize, primeiramente a vida de seu autor e o seu lugar social, em segundo lugar, Gilberto Cotrim ou os responsáveis pela escolha das imagens não expressam o porque da escolha de tais imagens, sua colocação na temática discutida e etc.É como se a imagem falasse por se só, mas ela fala! Fala do que se ver determinado na percepção coloquial da imagem ilustrada. Mas o que está por trás dos semblantes das negras "quitandeiras"? (p. 214) Esta foto é um caso a parte no livro didático "História e Consciência do Brasil", ela vem ilustrada com o ano em que foi tirada, 1884, por Marc Ferrez. Mas quem são essas negras? O que as leva a serem fotografadas como já falei acima com os traços dos rostos carregados de sofrimento?

Se a proposta de Gilberto Cotrim é fazer uma leitura crítica das condições sociais do negro no pré-abolicionismo, uma foto não pode ser ilustrada apenas para falar da Lei Eusébio de Queiroz, ou então, a Lei do Ventre Livre de 1871. Os traços e semblantes entristecidos das negras quitandeiras estão para além do que a foto refere, trata-se na verdade de uma representação de resistência, luta e inserção dos negros como atores sociais no fim do século XIX.

2º Proposta pedagógica

2.1 – Metodologia de ensino e aprendizagem

A metodologia e o ensino aprendizagem do livro "História e Consciência do Brasil" dentro de sua proposta pedagógica não foge também das matrizes do contexto da década de 90, leitura críticas como a de "Paulo Freire" em "Pedagogia do Oprimido" por exemplo já questionam saberes como a história, filosofia, geografia, sociologia, antropologia, literatura, economia e etc, que passam por reformulações pedagógicas nas suas instrumentalizações de ensino aprendizagem em sala de aula. No livro aqui analisado de Gilberto Cotrim, apesar das lacunas e incoerências esclarecidas anteriormente, já podemos perceber como as leituras críticas questionam as concepções tradicionais de ensino, vistas como depositárias de informações perante os alunos.

 

2.2 – Capacidades e habilidades

"Este livro, História e Consciência do Brasil – 2º grau, traz uma visão clara e concisa dos principais tópicos da história brasileira, desde a Colônia até a República. Foi criteriosamente elaborado para atender a um ensino crítico, dinâmico e atualizado.[...] Novos temas de estudo[...] Mais reflexão, menos memorização]." (COTRIM, 1995, p, 3)

 

Dando seqüência à nossa análise, como não poderia deixar de ser, tomando como base esta citação de Gilberto Cotrim retirada da sua apresentação, percebemos como na década de 90, falas do tipo "mais reflexão e menos memorização" são representantes da proposta pedagógica crítica que rompe com o modelo da pedagogia tradicional no ensino-aprendizagem, isto vai influenciar diretamente em uma ampliação e desenvolvimento da capacidade de crítica, investigação, interpretação, argumentação, comparação e formulação de hipóteses construídas pelo próprio alunado. Sendo assim, perguntas como. 5 Volta de Getúlio: O que fez Getúlio Vargas para apagar a imagem de ditador e construir uma imagem de democrata?(p. 304)

Percebamos a formatação crítica desta pergunta que está dentro do capítulo 18. "O Período Democrático", do qual está inserido o "Governo Vargas" ( 1951 – 1954), realizada a partir da avaliação monitorando o estudo( p. 304 – 305). É interessante como a partir da problematização desta pergunta podemos perceber como o aluno é forçado a desenvolver sua capacidade de investigar e comparar como se deu a construção feita por Getúlio Vargas, a partir do seu segundo Governo, de uma imagem democrática em prol de uma ditatorial muito forte em seu primeiro governo. Então interpretar, argumentar, sintetizar e apreender a diferenciação dos dois governos de Getúlio Vargas dentro de um processo e trama política fazem parte da proposta pedagógica mediada por uma leitura crítica.

Com esta ligeira problematização pude compreender em minha análise que a capacidade crítica do aluno dentro desta proposta pedagógica amplia-se, alémde favorecer o desenvolvimento do pensamento autônomo e crítico do próprio aluno, apesar das lacunas e incoerências que já foram mencionadas anteriormente presentes no livro.

 

2.3 – Atividades e exercícios

 

Em relação a atividades e exercícios presentes no corpo do livro, um pouco já foi dito acima, quando mencionei a ampliação da capacidade do desenvolvimento crítico do aluno, isto torna-se possível por conta dos exercícios estarem correlacionados aos conteúdos também de forma crítica, permitindo que o aluno desenvolva as suas capacidades e estratégias pedagógicas. Sempre lembrando que se a elaboração das atividades e exercícios são coerentes com os conteúdos discutidos, falta um pouco de cuidado na articulação de algumas imagens como a dos "negros trabalhadores no Brasil" por exemplo, pois nem encontram-se os nomes dos negros e nem a data da foto. Tal reflexão é totalmente pertinente, pois a leitura de uma imagem também é um exercício que pode construir memórias distorcidas da realidade social do contexto da construção da imagem, que pode ser reproduzidos sem uma reflexão cuidadosa dentro da própria sala de aula.

 

3. Conjunto Gráfico

3. 1 – Editoração e aspectos visuais

*A editoração advém do programa da Editora Saraiva dentro de uma perspectiva de uma história intercalada.

*A capa do livro condiz com as temáticas discutidas dentro de seus eixos temáticos, trabalhadores exercendo suas funções sociais. A capa vem apenas com o título sem subtítulo, nome do autor, da editora, e a sua referência de ensino [2º grau].

*Na apresentação de Gilberto Cotrim(p. 4) ele faz uma síntese do que pretende abordar e problematizar nos capítulos propostos.

*Também está exposto na apresentação do livro o conjunto de supervisão, editoração, pesquisa iconográfica, pesquisa de texto, edição de arte, supervisão de arte, projeto gráfico de capa, quadro, diagramação e arte, além da localização da editora.

*O sumário é composto de 20 capítulos, que vem compostas por subcapítulos dentro de uma seqüência cronológica do período colonial, do século XVI, até a redemocratização do Brasil no fim do século XX.

*O corpo do livro é constituído como já foi citado, de textos, fotos, telas, mapas, depoimentos, datas, fatos importantes e etc, estes por sua vez possuem uma apresentação agradável. As abordagens temáticas e os eixos problematizadores são curtos de um capítulo para outro. Os conceitos mais presentes são os marxistas, assim como as suas utilizações passam pelo viés da história estruturalista.

*No intervalo de um capítulo para outro, existem exercícios extraídos de vários vestibulares existentes no país, e que se enquadram nas temáticas dos capítulos discutidos. Na minha concepção, trata-se de uma estratégia para mostrar para o aluno a importância do que foi discutido dentro do capítulo, para as suas futuras pretensões de querer passar em um vestibular por exemplo.

*A parte final do livro vem trazendo a cronologia da história do Brasil, do período colonial até década de 90 do século XX, além de sugestões de filmes relacionados a temáticas históricas, propostos dentro de cada capítulo discutido.

Em suma,tenho pouca experiência em análise de livro didático, mais pelo pouco que pude desenvolver ao longo dos meus anos de disciplinas de práticas pedagógicas, tenho certeza que o livro didático é o suporte temático importantíssimo do auxílio de nosso ofício, pois é através dele que articulamos conteúdos de ensino dentro de uma prática, tanto de mediação quanto de avaliação pedagógicas. Mas na minha visão, o(a) profissional em história deve ter o livro didático sempre como suporte "secundário" de ensino, pois é da sua capacidade de atualização e domínio de conteúdo historiográfico que o(a) historiador(a) poderá trabalhar o livro didático como objeto passivo de "deslocamentos" e "reconfigurações" de seus olhares fixos.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

  • COTRIM, Gilberto. História e Consciência do Brasil. - 2º Grau,2º edição – 1995, Editora: Saraiva.