Análise do Discurso de Lideranças Garimpeiras de Serra Pelada

Por Katiane Miranda Ferreira | 20/03/2011 | Educação

Licenciatura Plena em Letras
Coordenação do Curso de Letras
2003

Por
Katiane Dias Miranda
Mat.: 9903704107


Orientador:
Profª. Cláudio Fonseca

Trabalho apresentado à coordenação do curso de Letras da Universidade Federal do Pará para a obtenção do título de Licenciado Pleno em Letras.

Marabá ? PA
Agosto ? 2003


O sentido pode ser perseguido, mas ele escapa, sempre, a toda redução que tenta aloja-lo numa configuração orgânica e mecânica...
Porque o sentido é relação, o homem pode jogar com ele, desvia-lo, simulá-lo, mentir, armar ciladas.
Georges Canguilhem





Resumo
No trabalho a seguir proponho-me a analisar os discursos de algumas importantes Lideranças garimpeiras de Serra Pelada. Para tanto apresentarei nesse trabalho três capítulos, em que no primeiro momento abordo o surgimento e decadência do garimpo. Em um segundo momentos do trabalho apresentam a teoria da Análise do Discurso. E posteriormente, faço o entrelaçamento entre teoria e prática discursiva.
No primeiro capitulo, faço um contexto histórico sobre o Garimpo de Serra Pelada, que vai desde a descoberta do primeiro foco de ouro, e posteriormente, a intervenção do Governo Federal no Garimpo, no intuito de manter a ordem no local devida o grande fluxo de homens vindos de todas as partes do país.
O segundo capítulo desse trabalho volta-se para a teoria da Análise do Discurso proposta inicialmente por Pêcheux e Foucault na década de sessenta, em que ambos analisavam o enunciado além de sua materialidade discursiva. Para esses estudiosos o enunciado ao ser averiguado, deverá levar em consideração o momento da enunciação, quais as condições que levaram o sujeito a produzir seus atos de fala, e sua real intenção na interação discursiva.No último capítulo, após seleção de reportagens jornalísticas, e a realização de entrevistas com importantes Lideranças garimpeiras no momento da pesquisa de campo em Serra Pelada, no mês de Julho de 2003, procurei entrelaçar as reportagens, o material gravado com a teoria da Análise do Discurso, na tentativa de compreender o que de fato querem dizer esses líderes em seus atos de fala.
Partindo da pesquisa e estudo da Análise do Discurso, pude constatar quais as estratégias discursivas que as Lideranças utilizam para perpetuarem no poder, e como os garimpeiros assimilam as propostas das Lideranças mantendo-as no poder de sua Cooperativa durante muitos anos.
Essa pesquisa e estudo dos discursos pronunciados com a fundamentação teórica deram luz aos questionamentos levantados na introdução desse trabalho, que é o motivo dos garimpeiros continuarem votando nas mesmas Lideranças embora não resolvam os problemas do garimpo, já que a Cooperativa tem autonomia para intervir em alguns assuntos que dizem respeito ao Garimpo de Serra Pelada.


Introdução


Tomando por base a Análise do Discurso que surge na década de sessenta na tentativa de compreender o que foi dito e procurando trabalhar como arquivo textual, isto é, reunindo um conjunto de documentos pertinentes à questão a ser estudada, entrelaçando os textos com o momento político-histórico e social para compreender o enunciado na sua estrutura e singularidade, procurando determinar suas condições de produção e existência, é que elaborei esse trabalho de Análise do Discurso das Lideranças Garimpeiras de Serra Pelada.
Este trabalho de pesquisa bibliográfica e pesquisa de campo foi realizado com o intento de averiguar os reais objetivos das Lideranças dos Garimpeiros de Serra Pelada, partindo do fato de que as mesmas Lideranças têm continuado atuando na Presidência da Coomigasp (Cooperativa de Mineração dos Garimpeiros de Serra Pelada), por longo período de tempo.
O que me levou a essa pesquisa foi o pressuposto de se repetirem as mesmas Lideranças sem nunca resolver o problema dos garimpeiros, que seria a liberação do garimpo para extração do ouro com mecanização adequada, haja vista, que não é mais possível realizar o trabalho manual devido à profundidade da cava principal de onde é retirado o ouro. Outro fator intrigante é a não liberação do dinheiro retido na Caixa Econômica Federal no período em que os garimpeiros vendiam ouro para o Banco Central do Brasil no auge do ouro, que é resultado das sobras do minério vendido e que não era repassado aos garimpeiros; o dinheiro ficou retido na Caixa Econômica e lá está até hoje.
Em vista de todos esses impasses, surge em 1984 a Cooperativa dos garimpeiros, com o objetivo de defender a causa garimpeira, onde representantes escolhidos pelos próprios garimpeiros atuariam em prol do andamento de suas questões.
No entanto, o que se tem constatado é que quase nada se resolveu no decorrer desses vinte anos de luta, seja por falta de interesse do Governo Federal ou Estadual, seja por interesses próprios das Lideranças Garimpeiras.
Outro questionamento levantado, é o fato de os garimpeiros terem uma parcela de contribuição no perpetuar das Lideranças, já que a Cooperativa foi criada com autonomia para intervir nos assuntos dos trabalhadores e quem nomeia as Lideranças são os próprios garimpeiros. A demora em resolver seus problemas tem acarretado desgaste e paralisação nos andamentos dos trabalhos em Serra Pelada porque os garimpeiros continuam apoiando essas mesmas lideranças.
No intuito de detectar o real interesse das Lideranças Garimpeiras e o motivo dos garimpeiros continuarem a colocá-los na Presidência da Cooperativa, mesmo sem resolver os seus problemas, é que deti minha atenção nessa questão. Para compreender Serra Pelada e seus dois grandes problemas, tive que recorrer a reportagens em jornais e revistas de circulação Local e Nacional que falavam sobre o Garimpo de Serra Pelada no decorrer dos anos.
A Análise dos Discursos das Lideranças, foi feita através de comparação com as reportagens e fotografias tiradas no garimpo, no auge e decadência do ouro, focalizando também o garimpeiro atualmente, depois de muitos anos de luta.
Para uma melhor compreensão do mito Serra Pelada, passei uma semana do mês de julho de 2003 no garimpo coletando material para auxílio na pesquisa, e depoimentos dos garimpeiros e candidatos à presidência da Cooperativa. Nessa pesquisa constatei que os candidatos eram os mesmos nos vinte anos decorridos.
Depois de recolher o material para subsidiar meu trabalho, parti para o entrelaçamento do mesmo com a teoria da Análise do Discurso proposta inicialmente por Michel Pêcheux na década de sessenta, em que o estudioso tinha como objetivo estudar o enunciado além de sua materialidade. Para ser compreendido, o discurso deveria ser averiguada, relacionando-o com o contexto histórico e social de produção, a ótica no discurso deveria ser profundo, o que compreendia a língua com seu emaranhado de normas e regras e a intenção do locutor nos atos de fala e interação com o interlocutor.
O trabalho está dividido em três capítulos, onde o primeiro apresenta um contexto histórico do Garimpo de Serra Pelada, que relata desde a sua descoberta, intervenção por parte do Governo Federal na tentativa de impor ordem no garimpo, até a decadência do ouro e concessão do garimpo à Vale do Rio Doce.
O segundo capítulo toma por base o estudo da Análise do Discurso proposta inicialmente por Pêcheux na década de sessenta, na tentativa de compreender o real objetivo do sujeito no ato discursivo e interação com o outro.
E por fim, o terceiro capítulo, que é elaborado por meio de entrelaçamento entre teoria da Análise do Discurso e coleta de discursos pronunciados por algumas Lideranças destaques em Serra Pelada, na tentativa de compreender o real objetivo das Lideranças ao assumirem a presidência da Cooperativa. Para um melhor entendimento desses discursos, procurei dividir o capítulo três em tópicos que analisam desde discursos das lideranças, fotografias tiradas no garimpo no auge e decadência do ouro, até a atuação da Cooperativa no movimento garimpeiro.


I ? Como pode ser isso? Ricos e pobres ao mesmo tempo


O tempo brilhante do ouro no sudeste do Pará foi marcado por um fluxo com centenas de pessoas de todas as partes em busca de um futuro rico e promissor que aos seus olhares tristonhos parecia ser a único soluto dado por Deus. Todos os dias chegavam mais e mais pessoas ao tão falado garimpo de Serra Pelada. A maioria vinha da região nordeste, motivados pelo noticiário sobre a explosão do ouro, que noticiava que pessoas "bamburravam " do dia para a noite, o que as fazia ficar empolgadas para trabalhar no tal garimpo.
Para chegar até lá, passavam por diversas dificuldades, eram precursores. No entanto, esse obstáculo era superável, pois, os nordestinos já estavam acostumados a enfrentar dificuldades por causa da seca. Há anos estavam na perspectiva de solução para os seus problemas, por parte das autoridades governamentais mas, devido a não resoluções já haviam perdido as esperanças. Todos haviam deixado para trás suas famílias e amigos em busca do metal amarelo, com a promessa de que só regressariam com riqueza e condições para sustentar suas famílias.
Esse relato é a autêntica história da grande leva de gente que chegava ao garimpo de Serra Pelada acerca de 150 km de Marabá, no sudeste do estado do Pará, cidade que na década de 80, com o advento do ouro ficou bastante agitada, pois os homens que trabalhavam em Serra Pelada desempenhavam suas atividades financeiras ali, mas com a intervenção do Governo no Garimpo, não se fazia mais necessário o deslocamento até Marabá, já que foram implantados estabelecimentos comerciais e até mesmo órgãos governamentais no próprio garimpo, desde a instalação de Bancos até serviços dos Correios.
A corrida pelo ouro teve como pano de fundo a crise social que o país estava enfrentando na década de 70, gente de todo o país vinha para o estado do Pará em busca de enriquecimento. O governo, então, admitiu que os homens trabalhassem na extração de ouro.
Segundo relatado por garimpeiros, a descoberta do ouro em Serra Pelada, nome dado devido a região ter vegetação cerrada em meio à floresta Amazônica, deu-se em 16 de setembro de 1979, quando um vaqueiro chamado Sebastião Ferreira que trabalhava na fazenda "Três Barras", propriedade de um pequeno agricultor chamado Genésio (o senhor Genésio estava passando por dificuldades financeiras e pretendia vender sua propriedade), ao tomar banho em um córrego chamado Grota Rica, descobre pequenas pepitas de ouro sem a presença de máquinas e técnicos em geologia. Sebastião notificou de imediato o fato a seu patrão que seguiu em direção à Marabá onde foi feita a averiguação da pepita e comprovado que a mesma, para seu deslumbramento, era ouro. Não demorou muito para que a notícia se alastrasse e logo homens, como bandeirantes, aventurassem sua vida para chegar ao maior garimpo a céu aberto do mundo. Já em fevereiro de 1980 havia cerca de vinte e cinco mil homens em Serra Pelada, e a cada dia chegava gente de toda parte a procura de trabalho.
Antes dessa explosão do ouro, na década de 70, o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) já estava a par do potencial da região devido a pesquisas realizadas para a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) nas áreas denominadas Grande Carajás e Serra das Andorinhas, mas o governo tinha mantido em segredo durante todos esses anos esse fato até acontecer a descoberta por um homem comum.
O grande fluxo de pessoas não passou despercebido pelos olhos das autoridades governamentais através do SNI (Sistema Nacional de Informação). Em 21 de maio de 1980 uma comitiva do governo chega a Serra Pelada para agir em caráter cauteloso, no trato com os garimpeiros, pois o governo sabia que seria quase impossível remover do garimpo aquele contingente de pessoas.
Então o governo manda seu interventor juntamente com agentes da polícia Federal e Civil. Sua chegada triunfante, de imediato, impôs autoridade e ordem no garimpo. Descendo de helicóptero, o ten.cel. Sebastião Rodrigues de Moura, mais tarde conhecido como Curió, homem de confiança do presidente João Batista Figueiredo e bastante conhecido pela sua atuação ao combater os guerrilheiros na Guerrilha do Araguaia, onde usou o nome falso de Marco Antônio Clucchini ocupou a posição de autoridade no garimpo. Daquele período em diante atuaria livremente como "general" combatente da "desordem" que poderia incidir no garimpo de Serra Pelada a qualquer tentativa em infringir a lei, o que seria motivo para se receber severa punição. Todos os homens deveriam estar sujeitos a ele.
A principio a lei era a seguinte: ou mantinha-se total obediência ao Senhor Curió ou seriam expulsos do garimpo. Nenhum garimpeiro queria sair da Serra, pois, embora o trabalho fosse extremamente cansativo, a Serra Pelada no momento de crise em que o país enfrentava parecia ser o único meio que homens de vida simples, lavradores e até pessoas que possuíam elevado grau de instrução secular, vítimas do desemprego, encontravam para enriquecer facilmente.
Até a chegada do "general" Sebastião de Moura os homens portavam armas, o que durante a noite perturbava o sono de muita gente com o tiroteio que alguns "valentões" faziam atirando para cima. Até então, não se sabia de nenhum garimpo em que havia intervenção por parte do governo. O de Serra Pelada foi o primeiro, pois o governo tinha grande interesse ao colocar seus representantes lá; estava consciente do grande potencial de ouro e queria evitar o contrabando. Mesmo sob dura vigilância ainda havia extravio de minério.
Enquanto isso, Sebastião de Moura, fazia dos garimpeiros de Serra Pelada um grande Exército que cumpria ordens temendo punições que iam desde deitar-se de barriga para baixo sob sol quente e levantar alternadamente braço esquerdo e perna direita até colocar o dedo indicador no chão e ficar girando durante quinze minutos. Quando acusado de roubo, a cabeça do homem era raspada e tinha de confessar o crime perante todos, isso quando não era expulso do garimpo, o que nenhum homem queria, pois para sobreviver se sujeitaria a qualquer coisa: a extração de minério era sua única alternativa.
Para manter o controle, Sebastião Curió, proibiu bebidas alcoólicas e a presença de mulheres, o que até certo ponto permitia a ordem em um local em que todos estavam voltados para um só objetivo, que era a extração do ouro. Mas isso não impedia que alguns saíssem para se divertir com mulheres nas regiões vizinhas, como em uma das famosas casas de prostituição chamada "Troca Tapas", nome dado devido à grande quantidade de garimpeiros que ali freqüentavam e às vezes, bêbados, trocavam sopapos no local. Tanto o cafetão quanto as mulheres que trabalhavam nas casas de prostituição enriqueciam do dia para noite à custa dos garimpeiros e quando alguns não conseguiam pagar na hora, deixavam o débito contando em pagá-lo com o ouro que extrairiam no dia seguinte.
Para reforçar que os garimpeiros tinham alguém a quem deviam obedecer, Sebastião Curió montou um grande palanque em que dava suas "instruções" ao final das tardes, e diante do qual todos se reuniam para cantar o hino nacional no asteamento e arreamento da Bandeira Nacional nos horários de 08:h00e 17:00 horas.
O garimpo funcionava como um verdadeiro campo de concentração. Todos os movimentos dos garimpeiros eram controlados por policiais federais e militares e pelos grandes "proprietários" dos barrancos , que eram pessoas poderosas, que comandavam milhares de homens no trabalho diário e cansativo quando carregavam cerca de quarenta quilos de barro nas costas subindo escadas de cordas perigosíssimas nas encostas da Serra, uma delas conhecida como "adeus-mamãe " e também não podia parar no meio da estrada, pois logo eram abordados pelos agentes que acreditavam que os diaristas ou "meia-praças" como eram chamados estavam tentando extraviar o ouro.
O trabalho de extração de ouro em Serra Pelada era contínuo. O formigueiro humano era movido pelo incansável desejo de homens que vinham da mais miserável condição de vida e pobreza para ficarem ricos repentinamente, o que alguns poucos chegaram a alcançar a tão almejada prosperidade, mas na realidade o ouro extraído beneficiava principalmente uma minoria de intermediários do governo e grandes empresários.


Figura 1 - Visão do chamado "formigueiro"

Homens formavam filões de até 15 mil garimpeiros, carregando de forma ordenada os cascalhos e andavam cerca de 20 a 25 km por dia na esperança de encontrar quilos de ouro. Não desistiam, pois todo dia ouvia-se notícia de homens que haviam "bamburrado", e de alguém que havia encontrado enormes pedras de ouro facilmente. Um dos homens que extraiu muito ouro, segundo noticiários jornalísticos e a própria revista intitulada Garimpeiro, de circulação Nacional na década de oitenta, foi Júlio de Deus Filho, conhecido como Julinho, que no dia 18 de setembro de 1983, às 22 horas encontrou a maior pepita de ouro do Brasil e também a terceira maior do mundo pesando 62, 300 quilos perdendo apenas para duas descobertas na Austrália de 92 e 72 quilos cada uma.
O trabalho diário desses homens ajudou o país, pois o Brasil tornou-se um dos grandes países de extração de ouro. O garimpo produziu mais ou menos 28 mil quilos de ouro, dos quais 6.600 kg foram retirados em 1980, 2.500 em 1981 e 6.800 kg em 1982, no ano de 1983 chegou a produzir uma tonelada de ouro mensalmente. Alguns estudiosos na área de garimpagem revelaram que o garimpo poderia ter atingido 205,50 toneladas, lembrando que toda essa extração era feita manualmente e sem auxilio do governo.
Com a falta de infra-estrutura adequada muito garimpeiros morriam vítimas de acidentes fatais e ao mesmo tempo havia índice altíssimo de proliferação de doenças como malária, que é bastante comum na região amazônica e doenças sexualmente transmissíveis, pois os garimpeiros não tinham orientações por parte de agentes de saúde.
A maioria dos garimpeiros que ali viviam era conhecida como "furões", pois entravam escondidos em Serra Pelada. Para conseguir tal faceta embrenhavam-se pela mata e ficavam à espreita mais de mês e quando conseguiam entrar na Serra, andavam desconfiados temendo ser pegos pelos agentes da Policia Federal, isso porque era proibido entrar sem autorização. Então, a grande maioria dos garimpeiros, cerca de setenta e dois mil estava nessa situação, mas mesmo assim, em fileiras, sem ter ao menos o que comer, arriscavam suas vidas. Alguns foram pegos e devolvidos pela polícia para seu lugar de origem, mas insistiam e retornavam até conseguirem entrar no garimpo e lá ficavam trabalhando nos barrancos até receberem autorização ou a "carteirinha amarela" cedida pela Receita Federal, que era um dos meios que Sebastião de Moura usava para ser promovido como o "pai dos garimpeiros".
Em 15 de maio de 1980 foi criada a zona de garimpagem de Serra Pelada. Como o governo não podia proibir diretamente os garimpeiros, foi agindo de maneira sutil. Seus agentes estavam lá com o intuito de garantir que todo ouro extraído fosse direcionado ao Governo e por isso montou uma estrutura dentro do próprio garimpo com o objetivo de comprar e vender o ouro. Assim, os garimpeiros não precisavam se deslocar do garimpo, uma vez que tudo podia ser resolvido lá dentro.
De 1981 a 1983 a Vale do Rio Doce juntamente com o DNPM afirmavam que não havia mais condições de ser feito o trabalho manual e agiam na tentativa de tirar os garimpeiros da região com intuito de fazer a extração de ouro por meio de equipamento maquinário. O governo, para fortalecer esse conceito e convencer os garimpeiros, não fazia o rebaixamento para facilitar o trabalho manual, o que causou a morte de muitos garimpeiros nos freqüentes desmoronamentos.
Segundo relatado pelos próprios garimpeiros, os agentes da Polícia Federal eram mandados pelo Governo para quebrar as máquinas responsáveis pela retirada de água da cava principal, o que causava constantes problemas e a grande dificuldade de exploração manual.
A produção de ouro foi caindo, mas mesmo assim os garimpeiros não abriam mão de seu direito. O garimpo ficou sob controle do SNI (Sistema Nacional de Inteligência) de maio de 1980 até outubro de 1983, e, com problemas de deslizamento de terras no morro, a produção caiu para 2,5 toneladas ou 60 % em relação ao ano anterior. A cava principal já estava com 10 mil metros quadrados de profundidade, e quando não tinha mais jeito, em 1983, o governo teve que fazer um rebaixamento que lhe custou 2,4 milhões de dólares, mesmo assim o trabalho sofria constante paralisação por conta dos acidentes.
Sebastião Curió sabendo que seu tempo como interventor estava se acabando e que estava prestes a ser repassada a extração para a Companhia Vale do Rio Doce, lançou-se como candidato a Deputado Federal pelo Estado do Pará. Em 1982 retorna de Brasília com um novo coordenador para o garimpo, o cel.Santos. O novo representante foi bem aceito pelos trabalhadores.
Curió se promoveu durante os dois anos de intervenção como um mantenedor da ordem e promoção do desenvolvimento do garimpo e tinha firme convicção de sua vitória nas eleições para Deputado. Um de seus primeiros atos como deputado é a mobilização dos garimpeiros com o objetivo de impedir a ação do governo em fechar o garimpo para a extração manual e repassá-lo para a CVRD. Juntamente com comitiva de garimpeiros mobilizou cerca de cinqüenta ônibus e foi à Brasília fazer um apelo ao Governo Federal, e prometendo resolver os problemas dos garimpeiros, Curió propõe lançar um projeto que aprove adiar o fechamento do garimpo.
Então, em outubro de 1983, apresenta seu projeto que é vetado pelo então Presidente da República, João Figueiredo. O presidente sob pressão por parte dos garimpeiros e lideranças que os representavam o encaminha o projeto para o Congresso Nacional que aprova a permanência dos garimpeiros por mais cinco anos, pois se temia conflito na localidade. O governo militar agiu assim porque temia, na verdade, uma convulsão social.
Sebastião Curió, orientado pelo ministério de Minas e Energia, teve grande contribuição na criação do órgão que agiria em defesa dos direitos dos garimpeiros, incentivando os mesmos a buscar apoio com o Sindicato Nacional dos Garimpeiros que era sediado no Rio de Janeiro. Cria em Marabá a Delegacia Regional do Sindicato Nacional dos Garimpeiros, com o objetivo de defender seus direitos. O Sindicato entrava em contato com os principais jornais do país, pagando fortunas para aparecer nas páginas principais denunciando a atitude do Governo Federal que favorecia a Companhia Vale do Rio Doce.
Pressionado, o ministro de Minas e Energia, César Carls, entrega nas mãos de Curió a responsabilidade de criar um órgão que interviesse a favor de Serra Pelada e o governo só ajudaria quando necessário. Então através de Curió e dos garimpeiros que queriam tornar-se independentes, nasceu a Cooperativa dos Garimpeiros de Serra Pelada (COOGAR) fundada em 27/12/83. O primeiro presidente eleito foi o senhor João Bonifácio. Como o governo havia assumido compromisso de auxiliar, em 1985 libera verba para rebaixamento na cava principal.
Nesse ínterim, a Vale do Rio Doce entra com recurso alegando que a área garimpada lhe pertencia e que o governo teria de pagar indenização pela permanência dos garimpeiros na região, o que custou aos cofres públicos 60 milhões de dólares.
Em março de 1984, o geólogo Francisco Assuero Bezerra de França, envia ao ministro de Minas e Energia Dr.César Carls um relatório em que afirmava que a área que a Vale dizia ser sua, não lhe pertencia e que deveria ser considerada área dos garimpeiros. Em 26 de março de 1984 o Dr.Yvan Barreto envia oficio ao então deputado Sebastião Curió lhe informando sobre o relatório. Durante todo esse tempo o Departamento Nacional de Produção Mineral atuava irregularmente, dando direito à Companhia Vale do Rio Doce. Não é à toa o "olho grande" do Vale, pois, em nenhum momento se havia registrado tanto ouro como em Serra Pelada. Até 1985 a Serra produziu só com trabalho manual 35,3 toneladas.
Como o governo nunca havia dado assistência necessária ao garimpo, as conseqüências vieram e em 1986 começou a surgir uma série de acidentes em barrancos e os órgãos do governo acusam a Cooperativa dos garimpeiros pelos acidentes ocorridos. Daí em diante, realmente era impossível a extração manual. Para haver controle a Policia Civil e Militar interditaram a área considerada de risco, os garimpeiros revoltados incendiaram alojamentos da Policia, interditaram ruas e incendiaram também o prédio de sua Cooperativa, pois a mesma estava sendo acusada de corrupção e desvio do dinheiro.
Mais uma vez Curió com suas habilidades e inteligência entra em cena, pois estava próximo de terminar seu mandato como Deputado Federal e o atual presidente da Cooperativa estava sendo exonerado do cargo. Considerou esse momento propicio para assumir a presidência da Cooperativa.
No ano 1986 é outorgado o direito das sobras de ouro aos garimpeiros, pois ao venderem ouro diretamente à Caixa Econômica Federal, havia as sobras de ouro que não eram repassadas para os garimpeiros. O que estava incluído nessas sobras era o paládio, que incluía prata e outros metais preciosos. Essa sobra deveria ser aplicada no próprio garimpo como recurso para melhoramento no trabalho e produtividade da garimpagem manual em Serra Pelada, em vez disso era guardada nos cofres do Banco Central. Os garimpeiros tendo conhecimento do dinheiro que estava retido, e que de fato lhes era de direito, decidem fazer manifestação e em Dezembro de 1987 ocupam a ponte sobre o rio Tocantins em Marabá. Algumas fontes dizem que foram entre 2.000 a 4.000 garimpeiros que pacificamente montaram acampamento sobre a ponte rodo ferroviária sobre o rio Tocantins, impedindo a passagem de quem quer que pretendesse passar sobre a ponte. Enquanto isso na Prefeitura Municipal de Marabá estava ocorrendo negociações entre Governo Federal e representante dos garimpeiros. Tal acordo implicaria na liberação imediata de verbas para manutenção do garimpo e extração manual e também de maquinário necessário para auxiliar no trabalho de terraplanagem e rebaixamento que fossem necessários a título de segurança.
Por outro lado, negligentemente o governo Estadual através do então governador Hélio Gueiros, já havia despachado tropas de choque da capital e deslocamento de uma unidade da PM com o intuito de reforçar o policiamento de Marabá. A ordem era a retirada dos garimpeiros a qualquer custo e se fosse necessário poder-se-ia abrir fogo. Em 29/12/87 às 18h30min chegaram o reforço policial de Belém, Tucurui e Marabá.
Os policiais de Belém e Marabá, segundo fontes de jornais de circulação local e nacional da época, ocuparam a margem esquerda da ponte enquanto que os de Tucurui ocuparam a margem direita. Não restava alternativa para os garimpeiros a não ser pular a uma altura de 100 metros. Algumas testemunhas dizem que alguns garimpeiros morreram vitimas das balas atiradas pelos policiais, e que de imediato eram jogados para baixo da ponte; até transeuntes que estavam pelo local foram vitimas fatais. Segundo relatos, foram 20 feridos e 93 desaparecidos. Esse ato imprudente teve repercussão nacional e internacional, mesmo assim os garimpeiros não ficaram parados e novamente ameaçaram retornar ao acampamento caso não fossem atendidos pelo governo.
No ano de 1988 o governo convoca CPI para investigar o caso e o governo do Estado tenta se justificar jogando a culpa no governo Federal por meio do seu representante Nelson Marabuto, que é afastado e a Policia Federal novamente assume o controle do garimpo para manter a ordem.
Incansavelmente os garimpeiros encaminham recursos e vão a Brasília para tentar adquirir o que é de direito, a sobra do ouro vendido ao governo. O seu intermediário, o ministro do gabinete civil Ronaldo Couto, chega a um acordo com a Vale terminando toda a polêmica sobre mecanização e criam um fórum para discutir sobre a mineração na região no intuito de estabelecer a paz entre a Vale e garimpeiros.
Em 1990, na tentativa de reativar o garimpo , Sebastião Curió surge com a idéia de abrir concorrência internacional para o reaproveitamento do garimpo, mas sua tentativa fracassa, Em 1991 termina o decreto número 99.385 que prevê novo plano para Cooperativa dos garimpeiros, viabilizando a extração manual, mas para isso é necessário investimento em terraplanagem e rebaixamento para se ter segurança no trabalho. Mais uma vez fracassado,o então conhecido garimpo de Serra Pelada que foi o responsável por enriquecer poucos estava adormecido e o governo como sempre continuava na longa tentativa de vencer os garimpeiros pelo cansaço.
A Vale do Rio Doce sempre interveio junto aos garimpeiros na tentativa de intervenção nas atividades em Serra Pelada, sempre surgindo no cenário e se colocando como tendo direito de instalar seus maquinários na extração do ouro, distribuindo nota à imprensa alegando ter direito à exploração na área, pois a mesma foi concedida pelos desembargadores do Estado que permitia a retirada dos garimpeiros e a extração de cerca de 150 toneladas de ouro por parte da Companhia. Segundo ela, a concessão lhe foi dada pelo decreto número 74.509/74,de 05/09/74, que deu a estatal o direito de pesquisa e de lavra de minério de ferro numa área de 10 mil hectares, os quais se encontram em Serra Pelada, o que para a companhia Vale do Rio Doce seria Serra Leste. Os garimpeiros não entravam em consenso e reafirmavam recorrer diante do que eles consideravam seu direito de retirada do ouro, no entanto, a Vale conseguiu intervir no garimpo no ano de 1996.
Mesmo sob pressão os garimpeiros não arredavam os pés afirmando que a área não correspondia a Serra Leste. Os garimpeiros, embora diante de constantes ameaças, protestavam contra a estatal e faziam as mais diversas manifestações, que iam desde interditar a entrada do garimpo, seqüestro de máquinas instaladas, ida à Brasília, a até levantarem acampamento nos trilhos de trem que saem da Serra de Carajás no Estado do Pará até São Luís do Maranhão.
A Vale em contrapartida reagia, ora com ameaças, ora com propostas "fabulosas" aos garimpeiros para que em troca se retirassem do garimpo; entre elas a Vale, lhes oferecia casas de alvenaria no município de Curionópolis. As casas tinham dois quartos, sala, cozinha, banheiro e área de serviço e além de oferecer todo um programa de assistência social, o que parecia um sonho para quem vivia há anos debaixo de taperas no mais deplorável estado. Então alguns poucos venderam seus terrenos em Serra Pelada, mais a grande maioria não desistia. Então, através de processos judiciais a CVRD determina que os garimpeiros desocupem os "seu" território ou teriam de pagar uma multa diária no valor 10 mil reais, essa multa chegou à soma de 600 mil reais, o que não parecia amedrontar os garimpeiros que continuavam no garimpo.
Foram quase dez anos de luta e opressão por parte da Vale aos garimpeiros, no entanto, os mesmos sempre estavam recorrendo à justiça afirmando que a área não pertencia à Companhia , o que de fato foi comprovado, pois segundo o Geólogo Francisco Assuero Bezerra já havia afirmado no ano de 1984 através de pesquisa que a área é de extração garimpeira e encontra-se fora do polígono descrito pelo decreto de lavra número 74.509/74 da CVRD. O interessante que esse estudo sempre foi divulgado, porém, as autoridades nunca haviam se pronunciado a respeito.
Tragédias, caos, decepções, o trabalho em Serra Pelada foi isso, sofreu várias interrupções, poucas pessoas enriqueceram e hoje a cidade possui pouco mais de 6.000 habitantes. Como aventureiros, seus olhares nos transmitem um ar de confiança, embora afligidos por cansaço pelos longos vinte e três anos de luta.
Ao chegar a Serra Pelada encontramos no buraco que chegou à profundidade de dois estádios Maracanãs um imenso açude contaminado de mercúrio, mais que segundo estudos ainda comporta muito ouro a ser retirado, cerca de 150 toneladas e que não foi extraído pela Vale por conta das manifestações dos garimpeiros. O que não nos deixa desacreditados dessa possibilidade da existência dessa grande quantidade, pois grandes empresas estão interessadas em investir no local. O impasse agora seria por conta da Cooperativa dos Garimpeiros juntamente com o governo Federal que parece mais sensível à causa garimpeira.
Cansados, exaustos e famintos, os garimpeiros travam uma grande batalha na tentativa de conquistar o que lhes é de direito. Há uma grande discrepância em Serra Pelada onde, segundo o Departamento de Mineração,existe a maior reserva de ouro a céu aberto do mundo, abriga pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza.


II ? A enunciação revela a outra face do sujeito


O sentido pode ser perseguido,
mas ele escapa, sempre, a toda redução que tenta alojá-lo
numa configuração orgânica e mecânica...
Porque o sentido é relação,
o homem pode jogar com ele,
Desviá-lo, simulá-lo, mentir, armar ciladas.
Georges Canguilhem




O garimpo de Serra Pelada se projetou em um contexto político com participação ativa do governo Estadual e Federal, no intuído de estabelecer controle do ouro que favorecia os cofres do governo. Para contar com apoio dos homens que trabalhavam no garimpo, foi preciso uma construção ideológica que os convencesse de que a dedicação à extração de ouro sem questionar as condições de trabalho era o melhor modo de vida.
O que também faz com que os garimpeiros permaneçam até hoje em Serra Pelada, tem sido o fato de os mesmos se projetarem na imagem de homem aventureiro, com possibilidades de ganhos e enriquecimento fácil, o que envolve todo um contexto mitológico que o ouro causa aos olhares do homem.
Vendo a necessidade de um órgão responsável em atender aos anseios dos garimpeiros, criou-se a Cooperativa dos garimpeiros de Serra Pelada, onde os trabalhadores nomeiam Lideranças para os representarem. O que se têm observado, é que as mesmas lideranças continuam no poder por muito tempo sem resolver o problema de Serra Pelada, e os garimpeiros talvez por esperança ou por serem sonhadores continuam apoiando os mesmos candidatos à presidência de sua Cooperativa.
Para compreensão desse episódio, tomarei por base a teoria da Análise do Discurso, que aborda a afirmativa de que todo discurso se constrói com a finalidade de interação entre os sujeitos envolvidos. Mesmo não tendo consciência, que por detrás de um ato de fala há sempre outras vozes, o agente do discurso na verdade está transmutando algo que foi discorrido anteriormente. Ele, enquanto atuante, se apropria da língua com todo um emaranhado de regras e estruturas para exercer ação sobre o outro. Assim, o seu enunciado por estar entrelaçado e dialogando com outros textos pode remeter a uma formação discursiva com determinada carga ideológica.
Partindo do fato de que todo ato de enunciação já foi dito em outro momento, é que surge na França no final da década de 60 um estudo sobre a análise do discurso fundada por um filósofo engajado chamado Michel Pêcheux, ligado a Althusser. Preocupado em discutir a epistemologia das ciências, o estudioso implantou sua reflexão no interior da crise da lingüística que estudava a língua separada do conteúdo semântico. Essa discussão surge em meio a uma conjuntura política intelectual Francesa.
A Análise do Discurso atravessou as fronteiras, engajou-se na interdisciplinaridade pelo fato de relacionar-se com outras ciências humanas, com o homem e a política, procurando interagir com a psicanálise de Freud e o marxismo de Althusser.


2.1 ? A função do sujeito no Ato Discursivo

Todo discurso se constrói com uma finalidade, geralmente o EU enunciador coloca-se no tempo presente do enunciado com objetivo de realização de seu propósito que tem por intuito induzir o outro. O discurso produzido com o objetivo de influenciar a grande massa da população, normalmente apresenta-se de uma maneira persuasiva e argumentativa, no intento de influenciar quem ouve a crer que o dito pelo sujeito atuante no ato discursivo é verdade absoluta, e assim tenta convencê-los que o posto é a melhor escolha.
No procedimento discursivo, a voz que repercuti é uma voz sem nome, que se projeta no Eu-Aqui-Agora e se repete no decorrer da história numa ordem social dada e em determinado lugar. O sujeito tem a capacidade de reproduzir o que já foi dito, não sendo apenas um sujeito passivo diante do ato de fala. Como possui domínio extralingüístico, têm aptidão para articular seus atos de fala e sua formação ideológica.
Pêcheux (apud Pêcheux, 1975) afirmou que "a formação discursiva é o lugar dos sentidos". Isso nos leva a considerar que o sujeito enquanto atuante apodera-se da palavra e determina o sentido que ele pretende justapor de acordo com sua posição ideológica, assentando em jogo o procedimento histórico-social em que as palavras foram pronunciadas. Como a ideologia não é estática e também não é homogenia, há uma relação direta com o tempo, o sujeito emprega o mesmo discurso em caráter diferente, fazendo com ele um jogo em que o alocutário, que é o TU a quem o locutor se dirige, pense que houve modificações e passa a crer no discorrido como ato de pronunciação novo.
Embora o processo discursivo se construa com uma finalidade, ele pode mudar o seu percurso, assumindo uma inovação na função de acordo com a finalidade de quem o produziu, pois o ato de falar formula-se com o intuito de agir sobre o outro, é uma ação que visa modificar uma determinada situação, onde o locutor segundo Mangueneau (2002) usa de vários recursos como prometer, afirmar, interrogar, todos esses visando à interação com o alocutário.
Na realidade todo ato discursivo é interativo, buscando a inter-relação entre um EU um TU. No processo dialógico percebemos intrinsecamente qual a influência do EU sobre o Outro, permitindo-lhe usar estratégias no processo de comunicação. No entanto, devemos ter cuidado para não pensar que apenas um dos sujeitos opera na enunciação, no caso, o locutor, enquanto o outro se torna apenas receptor passivo. O homem como detentor de conhecimento ideológico, pode intervir no processo de comunicação e virar o jogo, influenciando o enunciador, pois a enunciação não anda em sentido único, há um EU receptor que acompanha os passos do processo e interage, é nessa direção que caminha a afirmação de Moscovici ( apud. Gregolin 2003:84):
Os indivíduos, em sua vida cotidiana, não são apenas essas máquinas passivas para obedecer a aparelhos, registrar imagens e reagir às estimulações exteriores, em que o quis transformar uma Psicologia Social sumária, reduzidas a recolher opiniões e imagens. Pelo contrario, eles (os sujeitos) possuem o frescor da imaginação e o desejo de dar sentido à sociedade e ao universo que pertencem.

Já sabemos que a fala passa por todo um procedimento comedido que visa transformar e selecionar o conteúdo a ser pronunciado. Não se pode dizer tudo a qualquer momento, tem de ser pensado, absolutamente, o que é falado tem que levar em consideração o outro, para que a interação se efetue.
A Análise do Discurso tem, portanto como objetivo analisar a superfície discursiva, apostando na descoberta dos vestígios do estabelecimento de um determinado discurso. Para que isso aconteça, a AD transcende a momentos anteriores do processo discursivo, fazendo um anacronismo histórico com o objetivo de analisar a fonte primaria do enunciado em determinado momento.
No ato de confabulação, os indivíduos retomam homilias anteriores. Os mesmos carregam em sua materialidade discursiva, um momento de "reprodução/transformação", que para Pêcheux (1997:144) seria errôneo, portanto afirmar que esse processo se realiza de um só lado da situação que contribui para produção, enquanto o outro só passa por transformações.

2.2 ? O sujeito enquanto atuante discursivo

O sujeito por possuir domínio da Língua e enquanto atuante Discursivo apropria-se de suas habilidades para atuar sobre o outro. O que acontece geralmente nos discursos políticos, em que o enunciador induz o outro a concordar e incorporar seus conceitos e idéias sem ter pleno conhecimento disso. Porém, a atuação do locutor na interação discursiva é muito mais que um porta-voz assujeitado, ele passa a influenciar o outro.
O fato de o sujeito influenciar e dominar outros por meio da enunciação, revela toda uma segmentação em que seus atos de fala estão articulados, seja de modo consciente ou não, pois, o sujeito quando enuncia algo, sempre estará remetendo a outros textos ditos anteriormente.
O objetivo da Análise, portanto, seria indagar os fatores internos e externos que contribuem para o funcionamento de todo um tecido discursivo, no intuito de compreender e revelar as eventuais ambigüidades do texto produzido pelo interlocutor, seja ele verbal ou não-verbal, o que levou os estudiosos a crer através de ciências humanas, que a preleção envolve um contexto histórico-social.


2.3 ? A língua e o Sentido do texto

Segundo Foucault (apud. Gregolin 2003:52), o discurso produzido na sociedade "é controlado, selecionado, organizado e redistribuído por certos procedimentos que tem por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar e pesar sua temível materialidade".
Diferente da lingüística tradicional, a AD constitui-se um objeto da linguagem em disparidade, pois a mesma assume um novo panorama ao tratar os processos de constituição do fenômeno da língua, deixa de ser um mero produto uno da sociedade e passa a organizar-se mutuamente.
Já que o discurso é um objeto histórico-social e sua materialidade está na linguagem, Orlandi (2002:15) propõe que o discurso seja inquirido a partir da relação história e sociedade, onde o homem ao fazer uso da linguagem no ato de comunicação verbal, apropria-se de sua relação de poder sobre o outro para atuar de maneira transformadora.
Quando o sujeito apropria-se da Língua e impõe ao outro seus conceitos, acredita ser a fonte exclusiva do discurso ? o EU central ? quando na verdade ele apodera-se de sentidos preexistentes para impor conhecimento, embora sua falação esteja relacionada com uma produção anterior, pois o discurso nasce de outro.
O enunciado agora será um continuum, o que se diz é determinado por uma conjuntura ideológica. À medida que o individuo estabelece contato com outros conceitos ideológicos e toma posse da enunciação, começa a fazer uso dela dando um novo sentido ao já dito, utiliza recursos intrínsecos capazes de agir como reformuladores.
O individuo, por possuir um sistema lingüístico interno que lhe permite comunicar com o outro que tem o mesmo domínio e capacidade de compreensão, estipula que uma enunciação deva interessar ao destinatário, e para isso ele é capaz de atrair o seu ouvinte com informações que modifiquem sua ação.
Os fatores internos estipulam que o portador verbal não poderá dizer o que lhe vem a mente. O sujeito está envolvido em todo um ensejo que lhe dita o que deve ser falado e não falado. Partindo disso, Orlandi (2001:115, 116) afirma que ao pronunciar atos de fala, o portador da capacidade discursiva faz uma interação com o outro usando critérios para selecionar o que vai ser proferido em determinada situação, articulando os meios que a língua lhe oferece no processo de comunicação.
Pois, como falar exige interação social e é um reflexo do conhecimento, o locutor não poderá dizer tudo que está sob seu domínio, o expresso por um determinado portador pode gerar conflitos o que fará com que haja um certo distanciamento por parte de quem ouve, o que na realidade não será a intenção do locutor ao posicionar-se na comunicação, sua finalidade será atrair o ouvinte ao seu pronunciamento, induzindo-o à ação, é o que acontece nos discursos que pretendem ter apoio da grande massa social, o locutor age de maneira discreta sob o interlocutor, transmite o que gostaria de dizer usando estratégias para expor o que não pode ser discorrido claramente.
Então, para que tal enunciado possa ser decifrado e compreendido na sua superficialidade dependeria de um conhecimento de léxico da língua e para ser compreendido no seu interior, o ouvinte terá de recorrer ao contexto que desempenharia um papel periférico no enunciado.
Para atribuir sentido ao texto temos que nos remeter ao contexto, pois toda ação verbal é assimétrica e segundo Mangueneau (2002:19), o contexto não se encontra simplesmente ao redor de um enunciado que conteria sentido parcialmente indeterminado, que o destinatário precisaria apenas especificar:

O sentido estaria de alguma forma inscrita no enunciado, a sua compreensão dependeria essencialmente de um conhecimento de léxico e da gramática da língua; o contexto desempenharia um papel periférico; fornecendo os dados que permitam desfazer as eventuais ambigüidades dos enunciados.

Isso significa, portanto, que cada pessoa ao interpretar um determinado enunciado o faz a partir de indicações presentes no mesmo, e o que ela reconstrói pode ou não estar relacionado com a intenção do locutor ao transmitir a mensagem, pois o mesmo tem a competência de modificar o real sentido da enunciação de acordo com a intenção prévia de construção de um novo discurso a partir do que foi enunciado, uma vez que nada garante que a reconstrução coincida com as representações do enunciador. A priori, nunca há uma única interpretação, já que no ato de interação discursiva pode haver preferência no que diz respeito à compreensão do texto falado ou escrito.
Ao redirecionar o estudo sobre a significação do enunciado, Foucault e Pêcheux, procuram entender a relação que é estabelecida entre os elementos intradiscursivos e interdiscursivos, que é a língua em conjunto com a exterioridade a qual será responsável pela reprodução de sentidos. Esse questionamento leva o discurso a ser pensado enquanto prática discursiva que é regida por regras anônimas, determinadas por tempo e espaço de certa época.
A segunda época da AD propõe estabelecer a relação entre a produção discursiva com exterior e anterior ao que é pronunciado, usando sua capacidade de interação com o outro sempre buscando algo que é permitido dizer em determinada circunstância. Não quer dizer, portanto, que o já dito vá tornar-se banalizado por ter sido dito anteriormente e que seja comum a outros discursos. O dito agora passa a assumir novas formações discursivas relacionando com o subjetivo e a complexa formação ideológica do individuo que tem como função influenciar o outro com caráter soberano.
Pêcheux propõe que o interdiscurso com toda sua complexidade busquem reformular as idéias postas antes, onde o sujeito impõe a transformação de acordo com a realidade em que está inserido, o que na realidade seria transformar o agente do discurso em um assujeitado sob a aparência de autonomia, pois o discurso do sujeito é marcado pela incompletude e acaba relacionando com os outros textos exteriores, causando heterogeneidade no discurso.
O que acontece no interior dessa nova formação discursiva, é todo um confronto de sentidos, pois os discursos ao mesmo tempo se harmonizam e se digladiam até surgir um redimensionamento e reconfiguração num determinado texto. Todos esses processos fazem com que o campo discursivo nunca se esgote.
O enunciado se constitui a partir de reformulações e transformações que o enunciador faz da exterioridade de que ele se apropria na sua memória; no espaço do interdiscurso ressoa uma voz sem nome que vai cruzando com o domínio já existente por parte do locutor, ele retoma tudo que já foi ouvido antes para depois determinar um novo contexto.
Para Sírio Possenti (2002:93), não há sujeitado no interdiscurso, mas posições de sujeito que regulam o próprio ato de enunciação; o processo de assujeitamento é realizado por diferentes modos de determinação do enunciado pela exterioridade do enunciavél.
O interlocutor ao apropriar-se do ato discursivo empregado por uma posição ideológica, que imagina ser portador primário, acaba por desconsiderar o saber do outro, o rotulando como não saber. Isso induz a uma confrontação, à medida que procura impor o seu ponto de vista como correto e desqualifica o ponto de vista do outra como não verdade.
Como sujeito da enunciação é sempre o EU que opera na realização da produção discursiva, o falante se apropria de táticas para influenciar o outro, é o que Fiorin (1997) chama de manipulação. Para o autor há inúmeras, que vão desde pedido à ordem. Quando o manipulador propõe uma recompensa de valor positivo, ocorre a chamada tentação, quando o manipulador faz fazer por meio de ameaças, acontece uma intimidação, se o manipulador mostra ao manipulado o valor positivo de uma determinada ação ser for realizada ocorre uma sedução, e por último, se impele o individuo a ação, exprimindo um juízo negativo a respeito da competência do manipulado acontece uma provocação.
No processo de introdução discursiva o locutor sempre busca agir sobre o interlocutor, embora o interlocutor não seja considerado um elemento passivo na construção discursiva.
No discurso que visa uma cooperação do outro no sentido de obter beneficio para quem o pronuncia, já está postulado implicitamente regras que comandam a atividade da pronunciação. Segundo Manguenau (2002:34), a lei da pertinência respeita o principio de que o ato de enunciação apresenta certo interesse para aquele que ouve, e para isso a enunciação deve interessar o destinatário, desde que isso implique um cumprimento e respeito do que foi falado:

A enunciação deve ser maximamente adequada ao contexto que acontece: deve interessar ao destinatário, fornecendo-lhes informações que modifiquem a situação.
São regras tácitas e estabelecidas no contexto da enunciação em que às vezes o ouvinte pode ter consciência dessas manobras.
Uma boa Análise Discursiva deve ter como material relevante um domínio sobre a teoria da língua, para que possa compreender claramente as condições de produção. Entender um determinado texto não significa necessariamente confrontá-lo com outra materialidade discursiva, pois o que escreve pode operar seu discurso inconscientemente. A análise deve levar em consideração as condições em que foi desempenhada a atividade discursiva.Segundo Mangueneau (1976, apud Sírio Possenti2002:29) a melhor coisa a fazer é "equilibrar discursos e condições de produção para que sua articulação seja a mais rica possível, isso explica em parte o sucesso atual da análise de corpora discursos políticos".
Em relação ao sujeito do discurso, Sírio Possenti (2002:101) afirma que ele não é uno, como portador da linguagem e assumindo total domínio da mesma, o sujeito seria mais uma função do que um lugar de origem, pois o mesmo apropriando da atividade discursiva do outro, constrói um novo discurso histórico, porém essa nova construção é povoada de exterioridades, sempre havendo a presença do outro. Sírio Possenti (2002) também defende o fato de que embora o discurso possa ser reconstruído, nunca podemos afirmar que o signo ideológico seja constituído de um EU no momento da fala. Já para Foucault, a origem não acontece no individuo, nos discursos não há "eu falo, mas fala-se" (Robim 1973).
Além de condicionado ao processo histórico o enunciador, atua como agente, pois participa do processo discursivo, não só apenas como consumidor mais também como usuário de produtos de alocução que precisam ser processados. Mangueneau (2002) entende que o discurso não se resume apenas a coisas já ditas, mas, as entende como máquinas produtoras de enunciados.
Como o proferido é interpretado segundo uma posição já existente, os Analistas de Discursos chamam de metaenuciação aquilo que os locutores comentam o que dizem. Como o locutor anuncia a partir de uma posição que ele tem, significa dizer que o mesmo possui uma competência para entrelaçar ideologias já postas com a sua posição, enquanto controlador do seu discurso.
As certezas sobre o assujeitamento foram postas pela própria Analise do Discurso quando Pêcheux (apud Possenti, 2002:91) fala sobre a heterogeneidade do discurso, pois para ele o sujeito também se coloca em cena como livre, ele decide a seu bel-prazer o que dizer no processo de interação, pois nenhum ato de pronunciação é estanque e totalmente estruturado embora influenciado, sempre sofrerá modificações conforme as condições de produção.
Se na oralidade e escrita o sujeito precisa saber o que diz e escreve e para quem o faz, significa dizer que o sentido do que se diz não é mais dependente total da definição e sim do locutor, então o sujeito usa de suas habilidades para manobrar o discurso e, portanto o interlocutor.
A Análise do Discurso na tentativa de melhor entendimento do que foi proferido pelo locutor, procura trabalhar como um arquivo textual, reunindo um conjunto de documentos relacionados à questão a ser analisada, relacionam os textos produzidos com o momento político-historico e social para compreender o enunciado na sua estrutura e singularidade, procurando determinar suas condições de produção e existência do pronunciado.
Pêcheux, Bakhtin e Foucault construíram as bases para que possamos pensar nas relações entre língua e discurso, o que nos permite estudar hoje a subjetividade, os sentidos do texto, verificando a intertextualidade e interdiscursividade. Diante disso passamos a olhar para o texto de maneira diferente, verificando o que há por trás da enunciação que é o seu pilar de sustento para termos uma compreensão das intenções inerentes ao discurso, principalmente daqueles produzidos por lideranças comunitárias, que usam de suas habilidades discursivas para induzir outros a agir em conformidade com suas proposições, embora os receptores observem que a atividade discursiva não respeita a lei da sinceridade defendida por Mangueneau (2002) que diz que na interação entre pessoas, o discurso implica obedecer a regras do jogo em que só se promete o que se pretende cumprir, o não cumprimento é de valor negativo e sem benefícios para o receptor da mensagem. O incompressível é que mesmo diante do não respeito desses princípios, os indivíduos continuam agindo em conformidade com o discurso que aparentemente os oprime.