Análise do conto ''Felicidade Clandestina'' de Clarice Lispector

Por Sara Rodrigues de Queiroz | 25/02/2013 | Psicologia

Felicidade Clandestina 

        Ao fazer a análise de um dos contos de Clarice Lispector, “Felicidade Clandestina”, é possível perceber várias cadeias de significantes relacionadas ao sujeito desejante, assim como os mecanismos de defesa presentes no conto.

        Logo no 1° parágrafo, na frase “Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas.”, Há um mecanismo de defesa, ou seja, uma forma de defesa que o sujeito encontra para amenizar a ansiedade deformando ou negando a própria situação. No trecho em questão há um mecanismo de projeção por parte da narradora do texto, onde a autora da projeção é a narradora e a receptora é a filha do dono da livraria. Desse modo, o conteúdo da projeção é a condição da autora não ser filha do homem que tem um mundo de livros ao seu redor. A narradora tem uma percepção da menina, mas isso não significa que seja o real. Nesta frase: “Como senão bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas.”, Fica claro uma teoria de Freud (1856-1939) em relação às fases do desenvolvimento, no qual ele utiliza o termo fixação para descrever o que ocorre quando uma pessoa não progride normalmente de uma fase para a outra, mas permanece envolvida numa fase particular, preferindo satisfazer suas necessidades de forma simples e infantil. É mais ou menos o que ocorre com a filha do dono da livraria, enquanto as meninas da sua idade procuram livros para ler, ela se satisfaz com suas balas. Na última frase: “mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.” A narradora mostra-se como um sujeito desejante, pois deixa claro que ela quer ter um pai dono de livraria para conseguir o seu objeto de desejo. Nesse aspecto, percebeu-se o sujeito da psicanálise, pautado na teoria Psicanalítica de Freud, no qual o sujeito é marcado por uma “falta” estrutural e estruturante, no qual deseja o objeto que não possui.

        No 2° parágrafo ao dizer “em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai.” Aparecem as elucidações do sujeito desejante, ou seja, a garota deseja o que não possui.

         No 3° parágrafo em “Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho” A autora faz mais uma vez uma projeção a respeito da filha do dono da livraria, dessa vez projeta a personalidade da menina como se fosse cruel e vingativa. Assim, fica claro a o mecanismo de defesa projetado pelo ID, o qual, segundo Freud, é o reservatório de energia de toda a personalidade e contém tudo o que é herdado. Nesse trecho: “Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres.” A narradora projeta que a garota deveria odiá-la por sua aparência, que nesse momento seria o objeto de desejo de qualquer garota naquela idade. A narradora utiliza o mecanismo de racionalização na frase: “Comigo exerceu com calma e ferocidade o seu sadismo.”, ou seja, ela arranja motivos aceitáveis para pensamentos e ações inaceitáveis. A autora apresenta a justificativa de a garota ser vingativa para tornar aceitável a sua ideia de ser merecedora de ter um pai dono de livraria. Na frase “Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que não lia.” Fica evidente o sujeito da psicanálise, que é o sujeito da “espera” ela fantasia ter finalmente o seu objeto desejado.

        No 5° parágrafo no trecho “Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o.” Percebemos que na relação sujeito x objeto, o sujeito deve idealizar o objeto para formar um só. Porém o objeto sempre lhe escapará. Neste mesmo parágrafo, em: “E completamente acima de minhas posses.” Há um mecanismo de negação na frase Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela emprestaria” a autora sabe que não tem condições de comprar o livro, mas o quer emprestado. È uma tentativa de não aceitar na realidade um fato que perturba o seu ego.

          No 6° parágrafo no trecho: “Ate o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia...”, o ato de sonhar e fantasiar que vai conseguir ter o livro fica comprovado mais uma vez que o sujeito é um ser desejante. O sonho é uma forma de satisfazer desejos que não foram ou não podem ser realizados durante o dia.

          No 7º parágrafo quando a narradora diz  “Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando...” Podemos observar o mecanismos da Repressão, pois a menina afasta o pensamento e a angustia de que não vai conseguir o livro evitando  a realidade.

No mesmo parágrafo, há um mecanismo de formação reativa em: “Os dias seguintes seriam mais tarde da minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava...” aí fica evidente que este mecanismo, segundo Freud, substitui comportamentos e sentimentos que são diametralmente opostos ao desejo real; é uma inversão clara e, em geral, o inconsciente do desejo. Não a ideia original é reprimida, mas qualquer vergonha ou auto-reprovação que poderiam surgir ao admitir tais pensamentos também são excluídas da consciência.

         No 8° parágrafo em “Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico.” Também é uma projeção da autora. É importante ressaltar que sempre que caracterizamos algo “fora” como mau, perigoso, pervertido e assim por diante, sem reconhecermos que essas características podem também ser verdadeiras para nós, é provável que estejamos projetando. Neste parágrafo, é possível perceber que os personagens vivem o processo chamado de “epifania”, ou seja, revelação. Em outras palavras, de repente, diante de ocorrências mínimas, o personagem se descobre e vê revelada uma realidade mais profunda. Muitas vezes, ele mesmo não consegue perceber com clareza que realidade é essa, porém sua vida ou sua visão mudam.

        No 9° parágrafo no trecho “Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso.” Percebemos que o sujeito é castrado, ou seja, não tem possibilidades dele ter acesso ao real, com isso a narradora não sabe se vai ter ou não acesso ao livro. No ID, não existe nada que corresponda á ideia de tempo; não há reconhecimento da passagem do tempo (1993, livro 28,p.95 na ed. Bras.). Em “Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.” Mais uma vez percebemos aí o sujeito da espera que sofre pela perda do objeto que sempre lhe escapará.

         No 10° parágrafo na frase “Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer.” Fica claro que o sujeito da é marcado por uma falta estrutural, por isso fantasia incansavelmente com o objeto de desejo. O EGO é originalmente criado pelo ID na tentativa de enfrentar a necessidade de reduzir a tensão e aumentar o prazer. Contudo, para fazer isto, o Ego, por sua vez, tem de controlar ou regular os impulsos do ID, de modo que o indivíduo possa buscar soluções menos imediatas e mais realistas.

          Ao ler o 11° parágrafo, observamos que a menina (narradora) sabia que a garota (filha do dono da livraria) demoraria a lhe emprestar o livro, mas não imaginava que iria continuar com tal crueldade até que sua mãe descobrisse. Mais uma vez o sujeito castrado se faz presente, sem ter o acesso total ao real. O real é mortal para o sujeito, o desejo dele é não bater de frente com a realidade.

          No 12° parágrafo, temos outra projeção, na qual a autora é a própria narradora, a receptora é mãe da garota que iria emprestar o livro e o conteúdo é a descoberta que a mãe fez a respeito da personalidade da filha.

          No 14° parágrafo percebemos quando ela diz “Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de possuí-lo.” Mais uma vez o sujeito da espera se faz presente. A menina que fantasiar, quer ser surpreendida, encantada, na condição de espera. O sujeito é um lugar; lugar do desejo, e o que vai comandá-lo é a fantasia. No mesmo parágrafo, na frase: “Fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Essa foi a felicidade clandestina da menina. Fazia questão de “esquecer” que estava com o livro para depois ter a “surpresa” de achá-lo. Nesse momento acontece um mecanismo chamado de Regressão que é um retorno a um nível de desenvolvimento anterior ou a um modo de expressão mais simples ou mas infantil. É um modo de aliviar a ansiedade escapando do pensamento realístico para comportamentos que, em anos anteriores, reduziram a ansiedade. A regressão é um modo de defesa mais primitivo.

          No 15° parágrafo em “Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.” Observamos mais uma vez que o sujeito da psicanálise é objeto da “espera”, pois ela continua a esperar para ler o livro, mesmo com o livro na mão, ela quer fantasiar e ser surpreendida pelo livro.

          Na última frase em: “Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.” A autora faz mais uma projeção, pois atribui ao livro sentimentos e intenções positivas que se originam em si própria. Também é um exemplo de situação epifânica: a menina que se torna “amante” do livro.

Autora: Sara Rodrigues de Queiroz
Instituição: Universidade Estadual de Santa Cruz - Uesc
Discente do Curso de Letras e Artes
VI semestre