Análise Discursiva do Conto Dia de Matar Porco, de Dalton Trevisan

Por Camila da Fonsêca Aranha | 18/01/2011 | Educação

Análise Discursiva do Conto Dia de Matar Porco, de Dalton Trevisan

Camila da Fonsêca Aranha

Resumo: Será feita, neste texto, a análise discursiva do conto do escritor curitibano Dalton Trevisan, Dia de Matar Porco. Sabendo-se que os estudos do discurso objetivam analisar os sentidos do texto e de que maneira eles foram elaborados, será utilizada, aqui, como método de análise, a semiótica discursiva de linha francesa do analista Greimas. Portanto, este estudo visa analisar as interações entre enunciação e o discurso enunciado, e entre o discurso enunciado e os fatores sócio-históricos que o constroem. Para tanto, será feita tal análise por meio do chamado percurso gerativo, método utilizado para o estudo do plano do conteúdo do texto. O percurso gerativo é realizado, basicamente, em três etapas; nível fundamental, nível narrativo e nível discursivo, caminhando, sempre, do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto. Explicada a maneira pela qual a análise seguirá, partiremos, de fato, para ela. Para iniciar, vamos ler o conto de Trevisan que será analisado para que possamos fazer as inferências e comentários.

Palavras-Chave: Análise discursiva, percurso gerativo, euforia, disforia, oposição semântica.


Dia de Matar Porco

Aos setenta anos, Onofre era velinho sem moral. Bebia desde manhãe, borracho, maltratava a mulher. Por vezes, recolhia dama no sítio, atropelando a companheira. Os filhos casados, a pobre pedia pouso na vizinhança. Enfim o recado que voltasse para ele. Onofre tornava a beber e batia sem dó.
Fugiu Sofia para casa de uma filha, descansar um pouco das surras e, ao mesmo tempo, esperar que se acalmasse. O velho resolveu carnear um porco, avisou que viesse lidar com o bicho. Quem atendeu foi a filha Natália.
-- E a mãe, onde está?
-- Lá em casa
-- Se ela não vem, eu vou lá. Esfolo uma por uma.
Recebido o recado, a dona achou melhor voltar. Deu com a porta aberta, garrafa vazia por todo o canto. Acendeu o fogo para derreter a banha.
-- Ah, você está aí? É bom, porque hoje é teu dia. Hoje acabo com tua vida.
Onofre a investiu a soco e pontapé:
-- Outra vez fique em casa e cuide do teu homem.
-- A velha livrou o braço, ferrou-lhe as unhas no rosto:
-- Eu ando onde quero. Você não me manda.
A muito custo, Sofia chegou até a janela. O velho empinou a garrafa para cobrar o fôlego. Ela rolou no monte de lenha picada. Onofre saiu cambaleando:
-- Será que esta cadela fugiu?
Escondida debaixo da carroça, ouvia-o estralar o chicote.
-- Se não fugisse, hoje o fim da tua vida.
Era ela o porco que o velho pretendia carnear. Onofre a buscava no paiol. Ela entrou em casa, armou-se com a espingarda pica-pau, de chumbo perdigoto.
-- Ah, você está aí.
-- Olhe o que me fez, seu bandido.
Onofre espiou de longe, meio ressabiado. A velha toda ferida era uma sangueira.
-- É só pelanca. Já não preciso mais de você. Outra mais moça.
Sentou-se no banco diante da casa. Bebeu no gargalo: ia embora do sítio, antes acabava com todos. Fingiu de dorminhoco para que Sofia se distraísse.
Com grande alarido vibrava chicotadas na perna, gostando de ver os pulos aflitos da mulher, que trazia na orelha esquerda a marca de uma dentada.
-- É certo, velha, que teve um filho em solteira?
-- Isso eu não conto. Isso não há de saber até o dia de tua morte.
Aos gritos chegou a filha Natália:
-- Que é isso, pai?
-- A porqueira me fugiu.
Sofia surgiu de trás da cerca.
-- Não fugi. Estou aqui.
Apesar de embriagado, Onofre estava firme. Corria de um lado para outro, estralava o chicote. Então a espingarda explodiu, levantando um bando de passarinhos no caquizeiro, o velho foi ao chão. Era tiro de espingarda pica-pau e foi para assustar, mas acertou a barriga de Onofre. Caiu de costas, meio que se ergueu e voltou a cair.
-- Velha, me acuda. Estou Atirado.
Olho branco, estirou-se no terreiro. Pediu um gole d?água. Sofia trouxe a caneca. Estava mudo, a garrafa na canhota, o chicote na destra. Bem quieto, assim escutasse o pio dos pardais que anunciavam a chuva.


Após a leitura do conto, podemos verificar que no nível mais abstrato e simples, nível fundamental, a oposição semântica presente é liberdade vs dominação. O texto deixa explícito que Sofia tinha o desejo de se libertar do marido, Onofre, em "a pobre pedia pouso na vizinhança", "Eu ando onde quero. Você não me manda" e ao fugir para a casa da filha Natália, já cansada de tanto apanhar. Onofre, por sua vez, também deseja a liberdade de Sofia, mas com propósitos diferentes. Enquanto a mulher almeja sua liberdade para usufruí-la, o marido a deseja para guardá-la consigo, ou seja, dominar a esposa. Dois sujeitos desejando o mesmo valor, mas com finalidades diferentes, gera conflito.
O conflito do conto, então, é gerado a partir desta oposição semântica, liberdade vs dominação. Partindo-se dela, podemos afirmar que a obtenção do valor desejado, neste caso a liberdade ansiada por Sofia, é o que caracteriza a euforia do texto, sendo, portanto, a dominação a disforia deste.
Ao longo do conto, verificamos momentos disfóricos, não-disfóricos e não-eufóricos, porém não há nenhum momento eufórico, pois Sofia não alcançou a euforia, seu valor desejado, libertar-se de Onofre. Tal percepção consta em "Pediu um gole d?água. Sofia trouxe a caneca". Devido ao fato dele estar ferido, a mulher poderia aproveitar-se da situação para chamar a polícia e denunciá-lo, por exemplo, ou fugir de uma vez por todas dele, mas ela não o fez. O serviu no instante de sua oportunidade de libertar-se. Quanto aos outros momentos, elencaremos cada um com suas respectivas partes no conto.

1 ? Momentos Disfóricos

Os momentos disfóricos são aqueles caracterizados pela dominação de Onofre sobre sua mulher e, em dado momento, sobre outras pessoas também.
- Quando o homem diz à Natália que se a mulher não voltar para casa, esfolará as duas. Note que neste instante, Onofre está dominando tanto a esposa quanto a filha.
- As chicotadas do marido na perna de Sofia, seguidas por uma dentada em sua orelha.
- Os freqüentes maltratos à mulher, citados no 1° parágrafo.

2 ? Momentos Não-Disfóricos

Os momentos não-disfóricos estabelecem-se entre a disforia e a euforia, convergindo para a última.
- Quando Sofia foge do marido para a casa da filha; ela alcança uma liberdade efêmera, que logo deixa de possuir, não podendo, portanto, ser este considerado uma euforia.
- Ao balear Onofre com a espingarda pica-pau, mesmo que não tenha sido proposital. O fato de o ter atingido possibilitou a possível fuga e libertação de Sofia, mas isto não aconteceu.

3 ? Momentos não-eufóricos

Os momentos não-eufóricos também são representados por estarem entre a euforia e a disforia. Sua diferença entre os momentos não-disfóricos, porém, é que estes convergem para a euforia, e os não-eufóricos para a disforia. Apenas um momento deste tipo é encontrado no conto:
- O momento no qual Onofre baleado e estirado ao chão pede à sua mulher um copo d?água e ela o serve. Este momento não pode ser considerado disfórico pois Sofia não o faz por dominação do marido, e sim por vontade própria.


Consideramos o conto de Trevisan, portanto, disfórico, pois a euforia não é alcançada, ou seja, a liberdade ansiada por Sofia. Sendo assim, não existe a relação tensão vs relaxamento tratando-se de início e final do texto. Porém, há momentos, os não-disfóricos, no decorrer do conto de relaxamentos rápidos e curtos.
Após os aspectos da primeira etapa do percurso, a do nível fundamental, terem sido apresentados, entraremos na segunda etapa do percurso, a do nível narrativo. Nele, encontraremos uma organização canônica de três percursos narrativos relacionados por pressuposição: o percurso da manipulação, o da ação e o da sanção, que serão apontados e explanados no decorrer deste estudo.
Cada percurso deste é constituído por enunciados narrativos, que se dividem em dois tipos: os enunciados de estado, onde sujeito (actante) e objeto mantêm relações transitivas estáticas entre si, e os enunciados de transformação, em que a relação destes é dinâmica. No caso dos enunciados de estado, as relações estáticas podem ser relações de "estar com" o objeto, relações de conjunção, e relações de "estar sem" o objeto, relações de disjunção. Entenda-se objeto não necessariamente por algo material e concreto, mas, às vezes, ele é apenas uma representação simbólica de um valor, uma abstração. Partiremos, de fato, para as percepções destes conceitos dentro do conto.

No conto, temos os seguintes percursos narrativos:

a) Um enunciado de estado de conjunção: o sujeito Sofia está em conjunção com o objeto liberdade;
b) Um enunciado de estado de disjunção: o sujeito Onofre está em disjunção com o objeto liberdade;
c) Um enunciado de transformação: o sujeito Onofre procura transformar a relação de conjunção do sujeito Sofia com o objeto liberdade em relação de disjunção;
d) Um enunciado de transformação: o sujeito Onofre procura transformar sua relação de disjunção com o objeto liberdade em relação de conjunção


Após pincelar os percursos narrativos, trataremos do percurso da manipulação, da ação e da sanção.

Ao Sofia fugir de Onofre indo para a casa da filha, ele a manipula para voltar para casa através de uma intimidação, pois se ela não voltasse, ele iria esfolar tanto ela, Sofia, quanto a filha Natália. Veja: "Se ela não vem, eu vou lá. Esfolo uma por uma".
Devido à esta manipulação por intimidação, Sofia reage com a ação de voltar para a casa. Porém, mesmo obedecendo a manipulação do marido, ela recebe uma sanção negativa por isto; quando chega em casa é recebida a socos e pontapés, "Deu com a porta aberta, [...] Onofre investiu a soco e pontapé". Esta sanção negativa que Sofia recebeu unida à fala do marido "Outra vez fique em casa e cuide do teu homem", fez com que a mulher realizasse uma ação sobre Onofre; ferrou as unhas no rosto dele.
Em decorrência das persistências de Onofre em continuar batendo na mulher até matá-la, Sofia pegou uma espingarda pica-pau para manipular o marido por intimidação, porém não obteve sucesso, ele continuou a correr atrás dela estralando o chicote. Esta manipulação mal-sucedida levou à uma ação de Sofia; atirou a espingarda pica-pau para assustar o marido, porém o atingiu na barriga. Sofia foi sancionada positivamente por sua ação; Onofre parou de persegui-la, estava estirado ao chão.
Aproveitando-se da situação, o marido manipula a mulher a pegar um copo d?água a ele, já que não tinha condições de pegá-lo. Ao pedir isto, acaba desviando a ação da mulher para fugir ou algo do gênero, fazendo com que ela realmente seja manipulada e aja pegando um copo d?água para ele. Podemos entender que Sofia é sancionada negativamente por esta ação, pois perde a oportunidade de fugir de Onofre, oportunidade esta que talvez não terá no futuro, pois se aos setenta anos o marido maltratava a mulher, seria bem difícil que a esta altura mudasse seu comportamento.
Para finalizar, entraremos na terceira e última etapa do percurso gerativo, a do nível discursivo. Nele, a organização narrativa é colocada no tempo e no espaço e os valores do nível narrativo são postos no discurso de maneira abstrata e sob a forma de percursos temáticos.
No discurso do texto podemos observar o dispositivo de embreagem aplicado como sendo enuncivo. O texto apresenta ainda o enriquecimento dos traços semânticos do discurso através da tematização e da figurativização:

Exemplo da tematização:

"Aos setenta anos, Onofre era velinho sem moral. Bebia desde manhã e, borracho, maltratava a mulher. Por vezes, recolhia dama no sítio, atropelando a companheira. Os filhos casados, a pobre pedia pouso na vizinhança. Enfim o recado que voltasse para ele. Onofre tornava a beber e batia sem dó.
Fugiu Sofia para casa de uma filha, descansar um pouco das surras e, ao mesmo tempo, esperar que se acalmasse. O velho resolveu carnear um porco, avisou que viesse lidar com o bicho".

O texto se torna coerente pela reiteração semântica se mostrar constante do tema, no caso os maus tratos do velho Onofre, a conseqüente fuga de sua mulher e o desejo do velho do retorno da mesma.

Exemplo de Figurativização:

"Onofre espiou de longe, meio ressabiado. A velha toda ferida era uma sangueira".
"Sentou-se no banco diante da casa. Bebeu no gargalo: ia embora do sítio, antes acabava com todos. Fingiu de dorminhoco para que Sofia se distraísse".
"Com grande alarido vibrava chicotadas na perna, gostando de ver os pulos aflitos da mulher, que trazia na orelha esquerda a marca de uma dentada".

Percebemos as ordens sensoriais, visuais "Onofre espiou...", gustativas, não plenamente descritas apenas referencialmente como uma alusão à bebida de Onofre na seqüência "Bebeu no gargalo...", e auditiva em "Com grande alarido vibrava chicotadas na perna, gostando de ver os pulos aflitos da mulher...", nesta última é interessante notar que além da descrição do ato em si, também nos é fornecida a reação da mulher, nos deixando aptos a imaginar sensorialmente o estado de nervosismo da mulher ante aquela situação.
Entendemos, ao fim deste estudo, as várias intenções comunicativas presentes em um discurso e os vários caminhos semânticos que são percorridos para atender as necessidades do destinatário e do emissor. Percebemos a impressão ideológica de quem faz o discurso sobre quem o recebe, e a livre interpretação, porém limitada, a um contexto comunicativo no qual se depreende sociedade, história e situcionalidade de quem escuta ou lê este discurso.


Referências:

FIORIN, José Luiz. Introdução à Linguística I: Objetos Teóricos. São Paulo: Contexto, 2002.

GREIMAS, Algirdas Julien. Semiótica do Discurso Cientifico da Modalidade. São Paulo: Difel, 1976.

TREVISAN, Dalton. Adeus Vampiro. Curitiba: O Estado do Paraná, Almanaque, p.01,
07/05/2006.