Análise da obra 'Raízes do Brasil', de Sérgio Buarque de Holanda
Por André Vinicius Mossate Jobim | 01/05/2009 | História1. Resumo da obra
Raízes do Brasil, obra símbolo de uma
época, foi publicada em 1936 sob a autoria de Sérgio Buarque de
Holanda, quando ainda não era o “pai do Chico”. O livro, curto, claro,
discreto e objetivo, divide-se em sete capítulos que, juntos, teorizam
sobre nossa formação histórica e social.
O capítulo 1
caracteriza a Península Ibérica assinalando que o seu desenvolvimento,
por se dar em um território fronteiriço, não ocorreu da mesma forma que
em outros países europeus. Esse fato deu à região uma série de
características peculiares, que seriam trazidas ao Brasil no bojo das
grandes conquistas marítimas. Entre esses aspectos singulares estava a
cultura da personalidade, na qual o apego pelo prestígio pessoal
resultava na ausência de uma moral de culto ao trabalho, diferente dos
países protestantes. Daí teria origem uma outra característica
importante: a fraqueza das instituições e falta de organização social.
Em contrapartida, o fato de os hispânicos não conceberem uma disciplina
baseada em consentimento coletivo, gerava entre eles um paradoxal senso
de obediência.
No capítulo 2, seguindo o paradigma das
tipologias weberianas, são construídos os modelos do trabalhador e do
aventureiro. O primeiro, único que poderia colonizar o Brasil
justamente por possuir uma excepcional adaptabilidade, caracterizava-se
por buscar novas experiências, ignorar fronteiras e viver de horizontes
distantes. Já o segundo era marcado pelo esforço persistente, por
conseguir tirar proveito das insignificâncias e ver antes a parte que o
todo. A grande lavoura, principal unidade produtiva da colônia, se
constituiu não com base em um plano preconcebido pelos portugueses, mas
sim ao sabor das condições primitivas do meio. O uso de escravos foi a
forma escolhida para o trabalho, o que também se adequava à repulsa
lusitana pela atividade manual e contribuía para diminuir ainda mais a
necessidade de cooperação entre os conquistadores.
Herança
colonial, o capítulo 3, tematiza a estrutura rural da sociedade
colonial. O declínio da mesma se deu a partir de 1850 em função do fim
do tráfico escravo, que era sua base de sustentação desde o século XVI.
Nesse contexto, se estabelece uma nova dicotomia, a relação
rural-urbano, que se manifesta igualmente no universo mental, onde a
visão de mundo tradicional entra em conflito com valores modernos. O
malogro de Mauá, em tempos onde o patriarcalismo e o personalismo eram
hegemônicos, aponta para a incompatibilidade das estruturas nacionais
com as práticas mais “industrializantes”. Aqui, a fazenda, vinculada a
uma idéia de nobreza, ainda predomina sobre a cidade.
Estreitamente
ligado ao capítulo anterior, “O semeador e o ladrilhador”, um dos mais
brilhantes do livro, estabelece uma nova oposição. O espanhol, ou o
ladrilhador, se caracterizava por tornar suas cidades um exemplo de
racionalidade, onde a linha reta obtinha o triunfo. O semeador, ao
contrário, representava o português, aferrado ao litoral, que construía
cidades irregulares, nascidas e crescidas sem o mínimo planejamento. A
origem desses traços lusitanos era explicada pelo seu desejo de fazer
fortuna rápida, dispensando o trabalho regular.
O quinto
capítulo, um dos mais discutidos, aborda alguns elementos que
definiriam (não de forma absoluta) a identidade nacional.
Apropriando-se de um conceito de Ribeiro Couto[1], Sérgio Buarque
afirma que o "homem cordial" é resultado da cultura patrimonialista e
personalista própria da sociedade brasileira. A nossa cordialidade
enfatizava o predomínio de relações humanas mais simples e diretas que
rejeitavam a polidez e a padronização, características da civilidade. A
dificuldade de constituição de um Estado “civil” brasileiro se
expressava no fato de que essa instituição não era (e não é) um
prolongamento da família. A hegemonia de valores familiares e
patriarcais, vinculadas também ao homem cordial, impedem uma distinção
clara entre a noção de público e privado.
O sexto capítulo
debate as consequências da presença lusitana na configuração da
sociedade brasileira, a partir da vinda da família real para o Brasil.
Apesar do choque causado aos velhos padrões coloniais, a permanência do
personalismo português determina alguns traços da nossa
intelectualidade, ou seja, o conhecimento (superficial) era importante
apenas na medida em que dava prestígio e diferenciação. O apego às
idéias fixas e simplórias facilitava o trânsito do positivismo entre
nossos pensadores. A decorrência disso na vida política correspondeu à
ausência de um espírito democrático, demonstrando a necessidade de
transformar o paradigma dos movimentos reformistas, feitos, até então,
somente de cima pra baixo.
O sentido marcadamente político da
obra aparece em “Nossa revolução”, onde o autor demonstra a diferença
das revoluções ocorridas aqui na América em comparação com os
movimentos europeus. E no caso brasileiro, apesar do urbano ir
assumindo a sua independência em face do rural, esse processo ainda não
está completo. Somente quando aniquilarmos as raízes ibéricas de nossa
cultura e propiciarmos a emergência das outras camadas sociais, aí sim
teríamos finalmente concluído a nossa “revolução”. É evidente, nos
alerta Sérgio Buarque, que ao ocorrer esse processo, as resistências
conservadoras poderão surgir, no entanto, ainda podemos acreditar que
uma democracia efetiva se concretize na América Latina. E é pela defesa
desse ideal que o caráter político de Raízes do Brasil salta aos olhos
em seu último capítulo, finalizando um trabalho de peso na nossa
historiografia.
2. Biobibliografia
Nascido em 11 de
julho de 1902, em São Paulo, Sérgio Buarque de Holanda viveu sua
infância e uma parte de sua juventude nessa cidade. Seus pais eram
Cristóvão Buarque de Holanda, funcionário público, e Heloísa Gonçalves
Moreira.
Desde muito cedo, apaixonado pela leitura, adquiriu o
hábito de anotar suas impressões daquilo que lia. Ainda jovem estudante
tomou contato com os escritos dos velhos cronistas portugueses, que o
fascinavam principalmente pela linguagem bonita, exata e incisiva.[2]
Essa seria, mais tarde, uma das características da sua própria
produção. Além dos clássicos portugueses, vai se aproximar de autores
estrangeiros, enriquecendo ainda mais seu universo verbal. De acordo
com depoimentos de personagens do movimento modernista, Sérgio, apesar
de ser um dos mais novos, era um dos mais informados entre todos..
Afonso
de Taunay, seu professor, ao ter acesso a alguns escritos do aluno,
abriu espaço para a publicação de um artigo seu no jornal Correio
Paulistano, quando ele tinha apenas dezoito anos. Defendia, já nesse
artigo, dando eco ao nacionalismo que repercutia no clima de
pós-guerra, a necessidade de uma literatura verdadeiramente nacional.
Entre seus amigos em São Paulo destacavam-se Guilherme de Almeida,
Sérgio Millet, Mario de Andrade e Oswald de Andrade.
O ano de
1921 foi marcante. Sérgio mudou-se com a família para o Rio de Janeiro
e ingressou na Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais, onde se
formou em 1925. Dessa época nascem outras duas grandes amizades:
Prudente de Moraes, neto, e Afonso Arinos de Melo Franco. Conheceu
também Graça Aranha, idealizador da Semana da Arte Moderna, Manuel
Bandeira, Di Cavalcanti e Ronald de Carvalho. A convivência de Sérgio
com esses artistas, poetas e intelectuais foi fundamental para
entendermos a sua relação com o movimento modernista. Nesses tempos
iniciou sua colaboração ao Rio-Jornal com crônicas e entrevistas.
Também passou a publicar na Revista do Brasil, dirigida por Monteiro
Lobato, e em O Jornal. A essa altura, o curso de direito pouco o
interessava. Como forma de conquistar estabilidade financeira,
ingressou na Agência Havas, sob o comando de Assis Chateaubriand, como
tradutor de telegramas em inglês.
Em 1922, ano de intensa
agitação representada pela organização da Semana da Arte Moderna, a
fundação do PCB, o centenário da independência e a sucessão
presidencial, Sérgio assume sua identidade modernista ao dirigir no Rio
de Janeiro a primeira revista ligada ao movimento, intitulada Klaxon
(1922-1923). O objetivo geral desse grupo era lutar contra o
academicismo da nossa literatura, ainda muito ligada aos padrões
europeus, e construir no Brasil uma nova identidade nacional.
Em
1924, ao lado do amigo Prudente de Moraes neto, fundou a revista
modernista Estética, que também teve vida breve (1924-1925). Após
conflitos internos dentro do movimento, Sérgio partiu, em 1926, para
uma temporada no Espírito Santo para dirigir o jornal O Progresso. Na
volta, retomou o trabalho na United Press e no Jornal do Brasil. Em
1929, atendendo a um convite de Chateaubriand, transferiu-se para o
continente europeu com o propósito de visitar Alemanha, Polônia e
Rússia, e escrever sobre a situação daquele continente para o Diário de
São Paulo, O Jornal e Agência Internacional de Notícias.
Fixado
em Berlim, teve a oportunidade de assistir aulas do historiador
Friedrich Meinecke[3] e ler Weber e Rilke[4]. Esse fato foi de suma
importância na escrita de Raízes do Brasil, que já vinha sendo pensado
antes da ida à Europa e possuía o nome de Teoria da América. Na
Alemanha colaborou com a revista Duco, da embaixada brasileira, e
traduziu roteiros de filmes, um deles estrelados por Marlene Dietrich.
Sua estada também lhe permitiu entrevistar Thomas Mann e testemunhar o
surgimento do nazismo. Com o fechamento da revista Duco, voltou ao
Brasil em 1930.
Os anos trinta, marcados pelo movimento liderado
por Getúlio, pela ascensão dos regimes totalitários, pela expansão do
comunismo e pela Revolta Constitucionalista, também são significativos
na vida de Sérgio Buarque. Depois de publicar seu primeiro conto em
1931, é preso em 1932 pelo governo por defender São Paulo na questão da
constituição. Nessa época passa a dar maior interesse à história em
detrimento da ficção e da poesia, fato que certamente tem relações com
o seu tempo na Alemanha. De lá trouxe dois capítulos de Raízes do
Brasil, afirmando que os escreveu sob forte influência do sociólogo
alemão Max Weber. A publicação da obra data do ano de 1936, momento
posterior ao levante de 1935, e a criação de uma série de medidas
governamentais que atendiam a algumas demandas das classes populares. O
livro, de certa forma, reflete esse aparecimento das classes sociais,
pois nele há um claro combate às velhas oligarquias e o desejo de ver o
Brasil organizado em novas estruturas. Além disso, também estabelece
uma crítica objetiva à democracia liberal, questionada mundialmente
depois de 1929. É dentro desse panorama que Raízes do Brasil deve ser
contextualizado.
Ainda nesse ano passa a dar aulas na
universidade do Distrito Federal até 1939. Depois das aulas, passou a
dirigir, durante o Estado Novo, o Instituto Nacional do Livro e a fazer
suas críticas literárias no Diário de Notícias e no Diário Carioca. Em
1944, os ensaios escritos para esses veículos foram reunidos e
publicados sob o título de Cobra de Vidro.
Com o fim do regime
varguista, atuou na fundação da Esquerda Democrática, mais tarde
Partido Socialista, e foi eleito presidente da seção do Distrito
Federal da Associação Brasileira de Escritores. Em 1946, voltando à
cidade de origem, foi designado para o cargo de Diretor do Museu
Paulista, atividade que desenvolveu até 1956. Ainda em 1949 esteve
novamente na Europa, com palestras sobre o Brasil na Sorbonne. Em 1952
seguiu com a família para a Itália por dois anos para atuar como
professor na Universidade de Roma. Voltou em 1957, ano da publicação de
Caminhos e Fronteiras. Em 1958 assumiu a cátedra de História da
Civilização Brasileira, na USP, defendendo a tese que logo adiante se
tornaria um novo livro: Visão do Paraíso, visto por alguns como obra
precursora da história cultural no Brasil.[5]
De 1963 a 1966 vai
ao Chile, EUA, Peru e Costa Rica, sempre na qualidade de professor
convidado. Em função do AI-5, em 1969, deixa a USP em solidariedade a
alguns de seus colegas exilados. Mais tarde, como bom modernista,
recusou o convite para fazer parte da Academia Brasileira de Letras,
pois dizia que não tinha a ver com sua personalidade. Durante os anos
setenta, ganhou alguns prêmios literários e ajudou a fundar, ao lado de
Oscar Niemayer o Centro Brasil Democrático, na linha de combate à
ditadura. No fim da vida publicou Tentativas de Mitologia, em 1979. O
seu ato derradeiro foi tornar-se membro fundador do PT em 1980. Antes
de completar 80 anos, falece em 24 de abril de 1982, em São Paulo. Por
fim, cabe concluir que certamente Sérgio Buarque de Holanda não foi uma
figura humana qualquer, pois, além de ter levado uma vida cosmopolita e
de ser um erudito no melhor sentido da palavra, também era o “pai do
Chico”.
Obras: Antologia dos poetas brasileiros da fase
colonial. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1952; Caminhos e
fronteiras. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957; Cobra de vidro. São
Paulo: Martins Editora, 1944; Elementos básicos da nacionalidade. Rio
de Janeiro: Escola Superior de Guerra, 1967; Expansão paulista em fins
do século XVI e princípio do século XVII. São Paulo: Instituto da
Administração da USP, 1948; O extremo Oeste. São Paulo: Brasiliense,
1986; Monções. Rio de Janeiro: Caso do Estudante do Brasil, 1945;
Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936; Tentativas de
mitologia. São Paulo: Perspectiva, 1979; Visão do Paraíso. Os motivos
edênicos no descobrimento e colonização do Brasil.Rio de Janeiro: José
Olympio, 1959.
3. Problematização
Delimitar as
grandes questões levantadas por uma obra do porte de Raízes do Brasil é
um exercício de difícil concretização. Deixando de lado os resmungos,
entendo que, dentro dos marcos da historiografia contemporânea, a obra
antecipa, centrada em outros conceitos como patriarcalismo e
personalismo, uma discussão fundamental sobre o que hoje se compreende
como clientelismo. Atualmente o brasilianista Richard Graham tem se
debruçado sobre a questão, que tratou mais detidamente em Clientelismo
e política no Brasil do século XIX. Nela, o clientelismo surge como um
sistema que tende a consolidar a supremacia dos proprietários de terra
articulada ao poder central através das eleições fundadas nas relações
pessoais (entre o patrão e o cliente) que tornam nublados as diferenças
entre o “público” e o “privado”. Para Graham, o clientelismo tinha suas
origens ainda no período colonial.
A teorização de Sérgio
Buarque de Holanda, iniciada a partir das relações personalistas que
caracterizam a presença lusitana no Brasil, reflete exatamente sobre
essas origens. Como ele mesmo afirma: “o tipo primitivo de família
patriarcal existente no Brasil tornava difícil aos detentores das
posições públicas, formados em tal ambiente, compreenderem a distinção
fundamental entre os domínios do privado e do público” (p. 145).
Tais
traços, afirma Sérgio, ainda não foram superados, pois essas
“sobrevivências arcaicas, o nosso estatuto de país independente até
hoje não conseguiu extirpar” (p. 180). A argúcia dessa percepção pode
ser utilizada até o presente, pois certamente ainda convivemos com essa
realidade. O que dizer de casos de nepotismo ou de uso de dinheiro
público em benefício pessoal, tão banais na nossa política?
No
campo da historiografia, apesar de empreender uma análise
histórico-psicológica, o autor consegue captar um aspecto típico da
chamada história das mentalidades, que ganhará destaque nos anos
sessenta, ou seja, um elemento que pertence ao campo do estrutural, da
longa duração: “A influencia dessa colonização litorânea, que
praticavam, de preferência, os portugueses, ainda persiste até nossos
dias. Quando hoje se fala em “interior”, pensa-se, como no século XVI,
em região escassamente povoada e apenas atingida pela cultura urbana”
(p. 101).
Um segundo ponto que considero de extrema relevância
na obra é a utilização do conceito weberiano de tipo ideal, que, de
forma geral, seria a construção ideal de como se desenvolveria uma
forma particular de ação social se ela fosse feita racionalmente em
direção a um fim. Nesse sentido, o tipo ideal é um conceito vazio de
conteúdo real que procura servir de horizonte para uma comparação com
os fenômenos históricos. Em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque traduz
essa metodologia através de um mapeamento dos pares antagônicos como,
por exemplo, o trabalhador e o aventureiro, o rural e o urbano, o
impessoal e o afetivo, etc. Como foi afirmado, essas tipificações são
ideais. O autor nos alerta que elas não “possuem existência real fora
do mundo das idéias” (p. 44/45).
Outro elemento levantado, ainda
dentro da ótica weberiana, é a utilização, por meio de uma metodologia
comparativa, dos conceitos de patrimonialismo e burocracia para
analisar o Estado brasileiro e constatar que este não se enquadra no
modelo estatal elaborado pelo sociólogo alemão: “para o funcionário
patrimonial, a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu
interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles
aufere-se relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a
interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrático, em
que prevalecem as especializações das funções e o esforço para se
assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos” (p. 146).
Ao que
parece, muito mais inovador que o uso desses instrumentos para a
análise de nossa formação histórica e social, é o fato de, até os anos
trinta, Sérgio Buarque ter sido o primeiro a empreender uma tentativa
de aplicar os conceitos de Max Weber dentro da historiografia
brasileira.
Mais uma grande questão que se evidencia em Raízes
do Brasil é a presença de elementos modernistas na obra. A crítica
ferrenha elaborada por Sérgio à intelectualidade brasileira, é produto
do contexto literário modernista em que estava inserido. Quando ele
afirma que: “é freqüente, entre os brasileiros que se presumem
intelectuais, a facilidade com que se alimentam, ao mesmo tempo, de
doutrinas dos mais variados matizes e com que sustentam,
simultaneamente, as convicções mais díspares” (p. 155), coloca em
questão o próprio exercício da atividade intelectual, que até então se
preocupava apenas com as reflexões vindas de fora, sem pensar o Brasil
a partir da sua própria cultura. E essa aproximação com a nossa
nacionalidade, exigência dos “modernos”, estava relacionada com a busca
por uma identificação do novo intelectual com a cultura popular.[6] No
que tange à necessidade moderna de construir um sentimento de
brasilidade, desligado da visão de mundo puramente européia, Sérgio
Buarque foi um dos primeiros a dizer claramente que “o próprio povo
brasileiro tinha de assumir as rédeas do seu destino”,[7] aniquilando
as suas raízes ibéricas, exacerbando assim um claro traço nacionalista.
Até então, mesmo os pensadores mais abertos e avançados viam a solução na liderança esclarecida das elites, que seriam as únicas em condições de orientar e guiar um povo pobre, ignorante, oprimido, incapaz de se dirigir. Raízes do Brasil rompia as ilusões liberais, atribuindo à massa do povo a capacidade de iniciativa e criatividade política. Por isso, a sua leitura correta mostra que além de ser uma teoria geral do Brasil, ele é um momento alto do nosso pensamento radical.[8]
O
caráter histórico e não absoluto de algumas de suas afirmações também
chamam a atenção. A influência recebida pela Escola Histórica Alemã,
enquanto esteve na Europa, repercutem na obra em contraposição às
visões positivistas sobre ciência. Para o historicismo, a relação entre
as palavras e a realidade era uma questão de interpretação e não de
dedução, daí o cuidado de Sérgio com a utilização dos conceitos. Como
ele mesmo afirma: “a história digna de tal nome, justamente porque quer
exprimir a verdade, requer acurado trabalho de redação e elaboração,
que dificilmente admite linguagem desleixada”. Para ele, “mais valia a
empatia do que a exorbitância de um raciocínio discursivo,
intelectualismos, critérios puramente abstratos, tendências
esquematizadoras. Como instrumento de conhecimento do historiador era
preciso a todo o custo nuançar conceitos, ajustar palavras; mais do que
o rigor analítico, cabia ao historiador cultivar certa inteligência da
sensibilidade”.[9] E esse dado realmente é patente em sua obra, e salta
aos olhos quando comparados com o livro anterior, de Caio Prado Jr.
Outra
parte da argumentação de Sérgio Buarque está direcionada contra alguns
preceitos da ciência positiva, ainda dominante nos anos trinta. Nesse
caso, o nosso autor, contrariando determinadas explicações
“históricas”, valoriza o cultural no seu sentido social em detrimento
das explicações biológicas: “se semelhantes características
predominaram com notável constância entre os povos ibéricos, não vale
isso dizer que provenham de alguma inelutável fatalidade biológica ou
que, como as estrelas do céu, pudessem subsistir à margem e à distancia
das condições de vida terrena” (p. 36). Sobre isso, é importante
ressaltar que o seu respaldo teórico também passava pelo conhecimento
da nova história social francesa[10], que, no Brasil, iria ganhar maior
visibilidade apenas nos anos oitenta! Talvez, por isso, Sérgio seja
visto como precursor da nossa história cultural.
Outro ponto
importante refere-se à valorização do indígena como elemento
constituinte de nossa cultura, e não como uma deformação ou problema. A
sua descrição sobre as trilhas terrestres construídas pelos indígenas,
aponta para a contribuição decisiva desses na expansão das bandeiras ao
interior do país. Além desse fator, também é destacado o uso da
linguagem tupi como forma de comunicação, da qual os traços ainda
persistem nos dias de hoje em nosso vocabulário. Evidencia-se, desse
modo, a grande porta que Sérgio Buarque, ao lado de Gilberto Freyre,
abre aos estudos da cultura no Brasil.
Para finalizar, talvez um
dos temas mais discutidos, não tanto no campo da história mas no das
ciências sociais em geral, ou mais especificamente da antropologia, é a
tese sobre o homem cordial. Formado dentro dos quadros de uma estrutura
familiar de herança lusitana, o brasileiro teria se caracterizado pelo
desapego com aquilo que é formal, pela dificuldade em cumprir os ritos
sociais que não sejam pessoais e afetivos, e de separar racionalmente
as diferenças entre o público e o privado. Afirma Sérgio Buarque: “a
lhaneza no trato, a hospitalidade, e generosidade, virtudes tão gabadas
por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço
definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece
ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano,
informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas
virtudes possam significar “boas maneiras”, civilidade. São antes de
tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e
transbordante. Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo – ela pode
exprimir-se em mandamentos e sentenças” (p. 147). Entende-se, então,
essa cordialidade não como concórdia, subserviência ou bondade, como
pretendeu interpretar Cassiano Ricardo, mas talvez como uma certa
passionalidade, como predomínio de uma ação menos polida, menos
racionalizada e mais próxima do emocional. Esses traços se manifestam
de outras formas, como afirma o próprio autor: o nosso vocabulário é
inundado pelo emprego de palavras no diminutivo. Isso também se
exemplifica na religião. O brasileiro possui uma relação profundamente
pessoal com os seus santos, para o qual pede proteção e benefícios
individuais. Portanto, é um equívoco compreender esse homem cordial
como indivíduo bondoso ou algo semelhante.
Convém dizer também
que esse traço não é absoluto. Em resposta à Cassiano Ricardo, um dos
próceres do governo varguista, que procurava alimentar uma imagem
positiva do brasileiro, Sérgio Buarque afirma, em 1948, que: "quero
frisar, ainda uma vez, que a própria cordialidade não me parece virtude
definitiva e cabal que tenha de prevalecer independentemente das
circunstâncias mutáveis de nossa existência. Acredito que ao menos na
segunda edição do meu livro, tenha deixado esse ponto bastante claro.
Associo-a antes a condições particulares de nossa vida rural e
colonial, que vamos rapidamente superando. Com a progressiva
urbanização, que não consiste apenas no desenvolvimento das metrópoles,
mas ainda e sobretudo na incorporação de áreas cada vez mais extensas à
esfera da influência metropolitana, o homem cordial se acha fadado
provavelmente a desaparecer, onde ainda não desapareceu de todo". Como
é possível perceber, a cordialidade, apesar de ser um forte elemento do
caráter nacional, não é a-histórico e pode se modificar de acordo com
as circunstâncias.[11]
Nos anos oitenta, Roberta da Matta,
importante antropólogo brasileiro, retoma as reflexões de Sérgio
Buarque de Holanda em seu ensaio O que faz o Brasil, Brasil?, de 1984.
Na sua análise da rua como espaço público e impessoal, da Matta
recoloca a questão da casa como espaço privado por excelência em
contraposição a essa rua, que é de todos e ao mesmo tempo de ninguém,
portanto, espaço de desiguais. O fato é que tanto historiadores quanto
antropólogos criticaram Sérgio Buarque e o próprio da Matta.
Atualmente, compreender o “caráter” de um povo nos parece um tanto
inadequado. Entretanto, entendo que as críticas devem ser feitas
respeitando o contexto em que cada obra se coloca. No caso de Sérgio, a
sociologia dos anos trinta ainda estava amplamente referenciada nas
noções mais generalizantes, e esse dado tem que ser levado em conta
para a sua análise. Erra Voltaire Schilling[12] ao afirmar que a
cordialidade, para o nosso autor, é inata ao homem brasileiro.
Anteriormente já foi possível observar que Sérgio Buarque trata do
conceito como algo mutável, e não eterno, denotando a historicidade da
sua reflexão.
Agora, efetivamente encerrando, saliento que em
nenhum momento se desejou aqui dar conta de todas as questões
levantadas por Raízes do Brasil, que como vimos, ultrapassam a simples
discussão historiográfica. O que fiz foi trazer elementos que
interpretei como importantes a partir do meu ponto de vista, e que
entendi serem significativos para o presente trabalho. Espero,
realmente, que este esforço sirva não só para clarificar o debate sobre
Raízes do Brasil, mas sim incentivar outros a tomar contato com a obra
e produzirem a sua própria crítica a esse marco da historiografia
brasileira.
4. Avaliação pessoal da obra
Prazer. Essa
é a palavra que expressa meu sentimento ao terminar a leitura Raízes do
Brasil. Há tempos ouvia falar dela, mas, por um ou outro motivo, não a
lia. O trabalho estético da escrita de Sérgio Buarque certamente chama
a atenção em meio a tantos historiadores que não sabem produzir um bom
texto.
Para além dessa impressão puramente subjetiva, avalio que
o autor se destaca pela capacidade de estabelecer relações
significativas entre o passado e o presente. A atualidade da obra é
impressionante. A democracia no Brasil, depois de longos setenta anos,
continua sendo um “lamentável mal-entendido” (p. 160). O país ainda
reclama da “ausência de verdadeiros partidos políticos” (p. 183). A
produção anual de toneladas de leis, mostra de forma cabal que grande
parte de nossos políticos ainda acredita que “a letra morta pode
influir por si só e de modo enérgico sobre o destino de um povo” (p.
178). Essas referências só me levam a concordar com o que disse Antônio
Cândido: “Raízes do Brasil é um dos momentos mais importantes do
pensamento radical no Brasil”.[13] Como sugestão, indicaria a nossos
representantes darem uma folheada nessa obra.
Confesso que minha
crítica mais contundente não é tão contundente assim. Apenas interpreto
que, nos poucos momentos que o autor se refere aos negros escravos,
ainda os apresenta de uma forma estereotipada, realçando
características como “suavidade dengosa e açucarada”. Menos mal que não
os apresenta como seres inferiores, tão comum a determinadas teorias da
época que viam no europeu uma raça “superior”.
Também tenho
minhas restrições ao autor quando ele procura justificativas para
afirmar que pode haver compatibilidade entre o Brasil e os ideais
democráticos. Uma dessas justificativas está no fato de que, no país,
há uma “relativa inconsistência dos preconceitos de raça e cor”.
Sabemos nós dessa falácia. O racismo no Brasil existe e talvez seja
muito mais sutil do que conseguimos perceber. Talvez por isso alguns
interpretem que aqui exista um preconceito mais “abrandado” contra o
negro.
Obviamente que, levando em conta as muitas idéias que se
apresentavam nos anos trinta, as minhas críticas tem que ser
relativizadas e colocadas no seu próprio tempo, isto é, século XXI.
Naquele momento, a negação das idéias de inferioridade do negro
aparecia como um grande avanço, mesmo que hoje elas ainda nos pareçam
transmitir uma certa idealização da imagem negra. Talvez seja por isso
que comentei antes que a minha crítica não pode ser vista como tão
contundente.
Outro aspecto fundamental da obra refere-se ao seu
caráter profundamente político, em especial o seu último capítulo.
Nele, Sérgio Buarque se posiciona contra inúmeras situações. Contra
aqueles que vêem as saídas de nossos problemas em idéias vindas de
fora. Contra o aparelho político que nega a espontaneidade nacional.
Contra a ilusão liberal democrática de simples substituição dos
detentores do poder. Contra as constituições não cumpridas e as leis
violadas para beneficiar indivíduos e oligarquias. Enfim, ele se
posiciona. E posicionamento é uma coisa que uma boa parte de nossos
intelectuais ainda desconhece. Mas para finalizar, Sérgio Buarque não
se coloca apenas contra tudo. Ele clama para que o Brasil olhe para si
mesmo e finalmente se torne o ator de sua própria história: “as formas
superiores da sociedade devem ser como um contorno congênito a ela e
dela inseparável: emergem continuamente das suas necessidades
específicas e jamais das escolhas caprichosas” (p. 188).
Raciocínios
profundos, densidade e objetividade na escrita, reflexões baseadas em
elementos concretos e um posicionamento político bem definido. Está aí
a reposta que darei àqueles que vierem me perguntar sobre por que ler
Raízes da Brasil? E acrescentarei: “além de tudo, Sérgio Buarque também
é o pai do Chico”.
5. Referências bibliográficas
DIAS,
Maria Odila da Silva. Estilo e método na obra de Sérgio Buarque de
Holanda. IN: NOGUEIRA, Arlinda Rocha; PACHECO, Floripes de Moura;
PILNIK, Márcia; HORCH, Rosemarie Érika. Sérgio Buarque de Holanda: vida
e obra. São Paulo: Secretaria do Estado da Cultura/Arquivo do
Estado/USP/Instituto de Estudos Brasileiros, 1988.
GOLDMAN,
Elisa. A Cultura Personalista como Herança Colonial em Raízes do
Brasil. Disponível em:
http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/historia/hist02a.htm.
Acesso em: 20. abr. 2008.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª ed. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
SCHILLING,
Voltaire. BSérgio Buarque, o explicador dorasil. Educaterra. Disponível
em: http://educaterra.terra.com.br/voltaire/brasil/2002/07/03/001.htm.
Acesso em: 18. abr. 2008.
SOUZA, Antônio Candido de Mello e.
Sérgio, o radical. IN: NOGUEIRA, Arlinda Rocha; PACHECO, Floripes de
Moura; PILNIK, Márcia; HORCH, Rosemarie Érika. Sérgio Buarque de
Holanda: vida e obra. São Paulo: Secretaria do Estado da
Cultura/Arquivo do Estado/USP/Instituto de Estudos Brasileiros, 1988.
VAINFAS,
Ronaldo. História das mentalidades e história cultural. In: CARDOSO,
Ciro Flamarion. Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia.
Rio de Janeiro: Campus, 1997.
VELLOSO, Mônica Pimenta. O
modernismo e a questão nacional. In: DELGADO, Lucilia de Almeida Neves;
FERREIRA, Jorge. O Brasil republicano I. O tempo do liberalismo
excludente: da proclamação da República à Revolução de 1930. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
6. Bibliografia complementar
BEUTTENMÜLLER,
Alberto. Sérgio Buarque de Holanda: o homem cordial. Digestivo
Cultural. Disponível em:
http://www.digestivocultural.com/ensaios/ensaio.asp?codigo=18. Acesso
em: 23. abr. 2008.
SILVEIRA, Éder. Notas sobre Raízes do Brasil,
de Sérgio Buarque de Holanda e Teoria do Medalhão, de Machado de Assis.
Disponível em:
www.unicamp.br/siarq/sbh/Silveria_Eder-Raizes_do_Brasil-e-Teoria_do_Medalhao.pdf.
Acesso em: 22. abr. 2008.
[1] Ribeiro Couto, modernista,
conhecido como o penumbrista por dizer que preferia as tardes de garoa
às manhãs de sol, foi contista, romancista, jornalista, magistrado e
diplomata. Nasceu em Santos, em 1898. Faleceu em Paris, em 1963.
[2]
NOGUEIRA, Arlinda Rocha; PACHECO, Floripes de Moura; PILNIK, Márcia;
HORCH, Rosemarie Érika. Sérgio Buarque de Holanda: vida e obra. São
Paulo: Secretaria do Estado da Cultura/Arquivo do Estado/USP/Instituto
de Estudos Brasileiros, 1988. p. 30.
[3] Historiador alemão
nascido em Salzwedel (1862-1954), considerado um dos fundadores da
historiografia moderna, junto com seu mestre Wilhelm Dilthey.
[4]
Rainer Maria Rilke nasceu em Praga em 4 de dezembro de 1875. É
considerado como um dos mais importantes poetas modernos da literatura
e língua alemã, por sua obra inovadora e seu incomparável estilo
lírico. Faleceu em 1926.
[5] VAINFAS, Ronaldo. História das
mentalidades e história cultural. In: CARDOSO, Ciro Flamarion. Domínios
da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus,
1997; p. 59.
[6] VELLOSO, Mônica Pimenta. O modernismo e a
questão nacional. In: DELGADO, Lucilia de Almeida Neves; FERREIRA,
Jorge. O Brasil republicano I. O tempo do liberalismo excludente: da
proclamação da República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003. p. 320.
[7] SOUZA, Antônio Candido
de Mello e. Sérgio, o radical. In: NOGUEIRA, Arlinda Rocha; PACHECO,
Floripes de Moura; PILNIK, Márcia; HORCH, Rosemarie Érika. Sérgio
Buarque de Holanda: vida e obra. São Paulo: Secretaria do Estado da
Cultura/Arquivo do Estado/USP/Instituto de Estudos Brasileiros, 1988.
p. 65.
[8] Ibid., p. 66.
[9] DIAS, Maria Odila da Silva.
Estilo e método na obra de Sérgio Buarque de Holanda. IN: NOGUEIRA,
Arlinda Rocha; PACHECO, Floripes de Moura; PILNIK, Márcia; HORCH,
Rosemarie Érika. Sérgio Buarque de Holanda: vida e obra. São Paulo:
Secretaria do Estado da Cultura/Arquivo do Estado/USP/Instituto de
Estudos Brasileiros, 1988. p. 75.
[10] Essa afirmação pertence
ao texto “O significado de Raízes do Brasil”, de Antônio Candido,
apresentado como prefácio da última edição de Raízes do Brasil. Ver:
p.10.
[11] GOLDMAN, Elisa. A Cultura Personalista como Herança Colonial em Raízes do Brasil. Disponível em: http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/historia/hist02a.htm. Acesso em: 20. abr. 2008.
[12]
No espaço do seu site, Schilling assim escreve: “O próprio Sérgio
Buarque, cujo centenário de nascimento comemora-se no dia 11 de julho,
divertia-se com aquilo, comprovando assim a eficácia de uma das suas
teses famosas: a da inata cordialidade do homem brasileiro”. Para o
texto na íntegra, acessar:
http://educaterra.terra.com.br/voltaire/brasil/2002/07/03/001.htm.
[13] SOUZA, loc. cit.