Análise da Obra: A chave de Casa

Por Anna Beatriz do Nascimento Moreira | 04/12/2016 | Literatura

Este artigo tem como objetivo expor e levar à reflexão sobre o que consiste a literatura pós-moderna, com base no romance A Chave de Casa, de Tatiana Salem Levy,uma jovem nascida em Lisboa, Portugal, em 1979, durante a Ditadura Militar, enquanto seus pais estavam exilados em Portugal (país no qual sua família havia sido expulsa durante a Santa Inquisição, há quase dois séculos por serem judeus turcos).

Tatiana veio para o Brasil ainda bebê, após a instauração da anistia no país. Graduada em Letras pela UFRJ; concluiu mestrado e em Estudos Literários e doutorado pela PUC-Riomostrando as diversas possibilidades de uma sociedade moderna refletida na Literatura. A atualidade e a constante relação: ficção versus realidade.A obra rendeu à autora o Prêmio São Paulo de Literatura 2008 na categoria melhor livro de autor estreante e foi também finalista do Prêmio Jabuti 2008

RESUMO DA OBRA:

O livro é uma auto ficção, Tatiana Salem Levy usa alguns fatos de sua vida e mistura isso a algumas fantasias. O livro passa por tema como a morte da mãe, a relação com um namorado violento e a busca pela sua identidade que faz a protagonista mover-se, ainda que figurativamente, já que o romance é repleto do subjetivo, do subentendido.

A autora relaciona o passado de seu avô de seus pais, obrigados a deixarem sua nação, por intolerâncias. O avô, não pode casar com a mulher que amava, então, saiu da Turquia; seus pais eram comunistas, e não puderam ficar no Brasil durante a Ditadura, e foram exilados; e os antepassados, que a personagem pouco fala que por serem judeu-turcos foram expulsos de Portugal durante a inquisição. Essas mudanças geográficas são o ponto de partida para a protagonista sentir que não pertence a lugar algum, que não tem identidade, pois, mora no Brasil, nasceu em Portugal e tem aparência turca. Mas além da sua etnologia, ela busca se conhecer intrinsicamente; conhecer e deixar a razão dos seus medos.e faz um paradoxo entre dor e prazer.

A personagem recebe de seu avô a chave da antiga casa dele em Esmirna, na Turquia.O livro se desenvolve, já desde o seu início, de maneira fragmentada, numa tentativa de se trabalhar a questão da memória. Por este motivo, em alguns momentos nos deparamos com a narradora em um período anterior de sua vida, conversando com sua mãe; em outros momentos é narrada a história de seu avô, de seus pais, a sua própria relação com um namorado; enfim, a história se movimenta, passando por diversos personagens e por diversos períodos diferentes de tempo de uma maneira não cronológica, mas que vai, através dos vários fragmentos de memória, fazendo-nos compreender a história de vida de cada personagem, a maneira como a narradora chegou onde estava.

ESTRUTURA DA OBRA:

No romance, a autora faz uso constantante da voz da memória, do subconsciente, do subjetivo. Denominado por ela mesma como auto ficção, o narrador autodigético, conta a história de uma jovem que recebe a chave de casa de seu avô, herança deixada na Turquia. A partir disso as mudanças de tempo entre passado(s) e diegese, são constantes.

O romance A Chave de casa é uma obra hibrida; assim como o sujeito pós-moderno, ela é descentrada, fragmentada, com rupturas e deslocamento. O romance é diacrônico, e apresenta quatro narrativas intercaladas, inicia-se in medias res, ou seja, pelo meio da história; para esclareceras situações, faz uso constante de analepses (retrospecção), tornando o monólogo interior foco da narrativa.

O phatos da história é a busca pela identidade, que sofre constante influência do antagonista abstrato: o medo da separação. O narrador é, na maior parte, autodiegético, sendo, a personagem principal narrador da sua própria história; em alguns momentos, é também homodiegético/heterodiegético:

"Eu estava com as passagens nas mãos e tinha poucos dias para arrumar a mala." (Levy,2008, p.27)

"Já estava no navio quando sentiu o peito apertado [...]" (Levy, 2008, p.35)

A personagem principal é densa (redonda), desenvolve-se em meio a seus diversos sentimentos; alternando de personalidade quase que a cada página; criando e desfazendo as expectativas do leitor, como se todo o romance consistisse em clímax. Em sua estrutura há pouca descrição de ambiente e de personagens; fato que dá liberdade à imaginação do leitor.

A ausência de algumas descrições,dá ao leitor liberdade e aproximação de uma realidade individual. O pouco que é descrito da protagonista, nos mostra a semelhança física com a autora; além da história de vida real, e a narrativa serem semelhantes. Além dessas características, o romance ainda é em primeira pessoa, tornando fácil que real e ficcional se misturem, confundindo, segundo Umberto Eco, o leitor ingênuo, que tem a ilusão de que a história narrada é real.

INTERPRETAÇÃO DA OBRA:

“Como é cruel (e bonito) que a vida continue depois de você." (Levy, 2008, p.182)

Nessa frase, ela finda os sentimento de luto pela mãe, a quem acompanhou a doença e sofreu junto sua dor. Encerra a sensação de prisão ao passado dos pais, ao declarar: "A anistia veio em agosto de 79"; e, ainda bebê, veio ao Brasil um mês depois da anistia. Remete também, a ideia de continuidade da vida após a ditadura, que foi cruel para quem se opõe à democracia e belo para quem só quer ser livre.

 E o fim mais figurado, porém mais significativo, é o fato de ela matar o namorado; fica claro que essa morte foi a libertação das lembranças, dos sentimentos. Ela o matou dentro si, pois como afirmou várias vezes, ele já a matava em vida.

A chave da casa é tanto um olhar subjetivo para as experiências vividas pela autora, quanto uma concepção da mesma. A peculiaridade da obra é marcada pela reflexão sobre o motivo da imobilidade da protagonista, ela começa o livro mostrando que é depressiva, que sente medo da morte, do abandono, que tem uma relação forte com seus antepassados, um amor violento e nos instiga a querer saber o porquê desses acontecimentos.

O Romance apresenta exílio, imigração, viagem, intimidade, mal-estar, prazer, sofrimento, violência e morte e por isso é uma obra em que seu auge é a todo o momento. O livro provoca em nós, leitores inúmeras emoções ao mesmo tempo.

Ao receber a chave da casa, é como se seu avô depositasse nela toda confiança. A chave é uma metáfora para que a personagem pudesse ter uma liberdade em visitar seu passado, entrar na intimidade e percorrer toda história de seus antepassados, e a nós leitores também é dada essa confiança em passear pela leitura.

O último capítulo coloca para nós uma dúvida, a viagem à Turquia existiu ou não? A personagem narra nas páginas 62 e 133: "Conto (crio) essa história dos meus antepassados, essahistória das imigrações e suas perdas, essa história da chave de casa, da esperança de retornar ao lugar de onde eles saíram” e por vezes inicia o parágrafo com a mesma frase:

"Essa viagem é uma mentira: nunca sai da minha cama fétida [...]" (Levy, 2008, p. 106).

Imagina-se que a viagem na verdade é um símbolo, viajar através da escrita para pôr fim no seu sofrimento. Assim como se supõe que a personagem principal, que narra a história, mas não tem nome, por não ter identidade, está morta, fazendo da obra uma memória póstuma. Pelos verbos no passado, e por alguns trechos como a primeira frase do livro:

“Escrevo com as mãos atadas” (Levy, 2008, p.9)

META FICÇÃO X REALIDADE- O SUJEITO PÓS MODERNO

O sujeito pós-moderno tem consciência das mudanças ocorridas ou necessárias a sua volta, porém, muitas vezes permanece estático, atuando na sociedade, explorando suas várias personalidades. A literatura pós-moderna rompe com a estética, com os cânones vistos socialmente. A chave de casa revela cada conflito pela busca da identidade, em meio afragmentação geral da humanidade-moderna.

Com principal apoio teórico em Stuart Hall em A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, é possível discorrer sobre o nascimento do sujeito (pós) moderno, que no final do século XX, destrói o sujeito iluminista, de concepção centralizada e individual, para recriar as estruturas da sociedade.

Passando de sujeito sociológico, que não se consideravaautônomo e autossufiente, e sim, valorizava como fator principal da formação do individual, a relação com o outro, o sujeito torna-se pós-moderno, desestabilizando a ideia de sujeito unificado e estável; torna-se fragmentado, composto de várias identidades não resolvidas. Acultura, em todas as formas de arte, é reflexo desse sujeito. Celebra-se a era móvel, descontínua e descentrada. Criando da realidade à ficção, aspectos infinitos de fragmentações, rupturas e deslocamentos.

"As sociedades modernas são, portanto, por definição, sociedades de mudança constante, rápida e permanente." (HALL, Stuart, 2006, p. 14)

A Literatura pós-moderna narra essa reflexão sobre as várias identidades do sujeito pós-moderna; não somente, no uso objetivo da escrita/leitura, mas, no subjetivo, no uso de recursos variados da arte literária. A busca por essa identidade é tema de A Chave de Casa, que conta a história de uma jovem de descendência turca, nascida em Portugal e que cresceu no Brasil. A protagonista ultrapassa as fronteiras geográficas ou étnicas, é uma questão de memória, de consciente indenitários.

A metaficção, com suas mudanças constantes de tempo e espaço, os traços líricos, o monólogo interior em evidência, as quatro narrativas simultâneas, todo o hibridismo da obra, levam o leitor a desvendar o processo narrativo para montar o quebra cabeça, igualar as cores do cubo mágico que consiste a Literatura pós-moderna.A narrativa começa com a protagonista paralisada pela depressão, em seu quarto, que é por vezes descrito como um ambiente sujo, com mau cheiro, do qual ela faz parte:

"Nas paredes dos quartos apenas musgo. Um cheiro fétido de coisas guardas. [...] Tudo velho [...]. No centro do quarto, a minha cama. [...] No centro da cama, o meu corpo. [...]" (Levy, 2008, p.41)

[...]

Artigo completo: