"Análise da concepção de Deus, segundo a obra Ética" de Spinoza

Por Dionísio Areopagira | 28/12/2010 | Filosofia

1.Deus como substância
As definições com as quais inicia Spinoza sua obra mais célebre, saber, a Ética, revela sua nova concepção de substância, a qual é determinante para dar sentido a todo o seu sistema. A substância é uma questão relacionada com o ser, que pode ser considerada a questão metafísica por excelência. Para a filosofia de Aristóteles perguntar sobre o que é o Ser é o mesmo que perguntar o que é a substância; a substância para o mestre do Liceu,é tudo o que existe, pois tudo o que existe é substância ou a sensação da substância. Segundo a concepção antiga de metafísica havia uma multiplicidade substâncias, as quais eram ordenadas hierarquicamente.
Spinoza indo como que na contra mão da concepção múltipla de substância assevera que só existe uma substância, a saber, Deus. Deus, que é a substância, o fundamento primeiro de todas as coisas, não necessitando remeter a nenhum ser além de si mesmo, pois é causa de si mesmo, portanto, tal realidade não pode ser concebida como não existente. Escreve Spinoza na terceira definição :
"Por substância compreendo aquilo que existe em si mesmo e por si mesmo é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não exige o conceito de outra coisa do qual deva ser formado."
A idéia clara de substância é de um ser que não carece de ninguém para subsistir, ele é o ser perfeito que subsiste por si. Desta definição de substância, é preciso afirmar a sua existência real, porque se lhe negássemos a existência , do mesmo modo destruiríamos a definição, pois, por a sua definição é por a sua existência como real. E por se ter esta intuição da definição pela idéia clara e distinta, que pode ser considerada infalível, conhecemos que a substância existe necessariamente na realidade.
A substância é infinita. Se a definição de substância é o ser que existe por si, é impossível que ao mesmo tempo seja "não ser". Para Spinoza a idéia de um ser finito corresponde à idéia de não ser, e se é não ser é limitado, e se é limitado não pode ser perfeito, portanto, é impossível que a substância seja finita, pois por definição é infinita. Escreve Spinoza na Proposição 8 :
"Não existe senão uma única substância de mesmo atributo (pela prop. 5), e à sua natureza pertence o existir (pela prop. 7). À sua natureza, portanto, pertencerá o existir, ou como finita ou como infinita. Ora, não poderá ser como finita, pois (pela def.2), neste caso ela deveria ser limitada por outra mesma natureza, a qual também deveria necessáriamente existir (prop. 7). Existiriam, então, duas substâncias de mesmo atributo, o que é absurdo (pela prop. 5). Logo, ela existe como infinita."
A substância é única e uma segunda substância apenas é possível se se distinguir da primeira. Mas para que isto ocorra é preciso que a primeira possua uma perfeição que não possui a segunda; é necessário que esta segunda substância envolva não- ser e seja finita, o que é impossível, pois acabamos de demonstrar ser qualquer substância infinita. Esta substância, segundo Spinoza, é Deus, o Ser necessário, infinito e único, simples, imutável e independente por excelência. Escreve Spinoza na proposição 5 :ao
"Se existissem duas ou mais substâncias distintas, elas deveriam distinguir-se entre si pela diferença dos atribtos ou pela diferença das afecções ( pela proposição 4). Se elas se distinguissem apenas pela diferença dos atributos, é de se admitir, então, que não existe senão uma única substância de mesmo atributo. Se eles se distinguissem, entretanto, pela diferença das afecções, como uma substância é, por natureza, primeira, relativamente às suas afecções (pela prop. 1), se estas forem deixadas de lado e ela for considerada em si mesmo, isto é (pela def, 3 e pelo ax. 6), verdadeiramente, então não se poderá concebê-la como sendo distinta de outra, isto é (pela prop. Prec.), não podem existir varias substâncias, mas tão somente uma única substância."
O Deus de Spinoza, não é dotado de uma personalidade, que possua uma vontade e um intelecto. Segundo Spinoza, a concepção da Divindade como uma pessoa, significa reduzi-lo a uma condição antropomórfica. O Deus spinoziano, não é um criador, nos moldes do Deus judaico-cristão, visto como um ser que cria por uma livre vontade, algo que é diferente de si e que, precisamente como ser livre que é, poderia também não criar. Deus é causa imanente, e não transitiva, sendo inseparável das coisas que dele procedem. O Deus de Spinosa, também, não é providencial, no sentido judaico-cristão, pelo contrário, é a necessidade absoluta e impessoal. Escreve Spinoza na proposição 18 :
" Tudo o que existe, existe em Deus, e por meio de Deus deve ser concebido (pela prop. 50; portanto (pelo corol. 1 da prop. 16), Deus é causa das coisas que nele existem, que era o primeiro ponto. Ademais, além de Deus, não pode existir nenhuma substância (pela prop. 14), isto é ( pela def. 3), nenhuma coisa além de Deus, existe em si mesma, que era o segundo ponto. Logo Deus é causa imanente, e não transitiva, de todas as coisas."
A natureza divina é de necessidade absoluta de ser. Deus é necessidade absoluta no sentido de que, colocando-se esta Deus, como causa de si, de Deus procedem necessária e eternamente, os infinitos atributos e os infinitos modos que compõem o mundo. Todas as coisas derivam da essência de Deus, da mesma, que os atributos infinitos e os infinitos modos que constituem o universo.

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2.Os atributos divinos

A substância, que é Deus, e é infinita, manifesta a sua essência em infinitas formas e modos, que podem ser chamados de atributos. Se todos e cada um exprimem a infinitude da substância divina, os "atributos" devem ser concebidos em si mesmos, cada um separadamente, sem necessitar do outro; eles são diferentes mas não separados, pois somente a substância é entidade em si e para si. Escreve Spinoza na proposição 10 :
" Fica claro, assim, que, ainda que dois atributos sejam concebidos como realmente distintos, isto é, sem a mediação do outro, disso não podemos, entretanto, concluir que eles constituem dois entes diferentes, ou seja, duas substâncias diferentes. Pois é da natureza da substância que cada um dos seus atributos seja concebido por si mesmo, já que todos os atributos que ela tem, sempre existiram, simultaneamente, nela, e nenhum pode ser produzido por outro, mas cada um deles exprime a realidade, ou seja, o ser da substância."

Para Spinoza, os seres humanos só conhecem apenas dois desses infinitos atributos, a saber, o pensamento e a extensão. O atributo pensamento é distinto de todos os outros atributos, precisamente pelo fato de que tal característica constitui uma prerrogativa. Spinoza não privilegia o pensamento, pelo contrário, seu intuito era elevar a extensão ao caráter de divindade; a extensão é um atributo de Deus e revela a natureza divina, portanto, Deus é e pode ser considerado uma realidade extensa. A concepção segundo a qual, Deus possui por atributo a extensão, não significa que Deus seja corpo, mas sim que Deus é espacialidade, pelo que, o corpo não é um atributo, mas um modo finito do atributo da espacialidade. O mundo, então, não está na posição de algo oposto a Deus, pelo contrário, é algo que está ligado de maneira que compõe o atributo divino.


3. Os modos

Os modos, para serem concebidos e existirem, necessitam da existência da substância e seus atributos, portanto os modos procedem dos atributos, e são determinações dos atributos. Spinoza escreve na sua definição 5 sobre os modos:
" Por modo compreendo as afecções de uma substância, ou seja, aquilo que existe em outra coisa, por meio da qual é também concebido."
Para Spinoza, sem pretender explicar a origem dos modos finitos, isto é, a explicação de como ocorre a transição do infinito para o finito, no entanto introduz a série dos finitos, dos modos e das modificações particulares asseverando que eles derivam uns dos outros. Segundo Spinoza uma determinada coisa singular, isto é, qualquer coisa finita e tem sua existência determinada, não pode existir nem ser determinada a operar se não for determinada a existir e operar por alguma outra causa, a qual também é finita e tem existência determinada, e assim até o infinito.
Aquilo que procede da natureza de um atributo de Deus, que é infinito, só pode ser um modo também, infinito, da mesma forma que aquilo que é finito somente pode ser determinado por um atributo que é finito e tem uma existência determinada, portanto o infinito só gera o infinito e o finito somente gera o finito.


4.A distinção entre Deus e o mundo

Para Spinoza, a substância não somente possui a evidência que é única, mas também é evidente que o mundo existe, e é composto de uma multiplicidade, os quais são móveis, e finitos e, logo, contingentes. As duas evidências harmonizam-se admitindo um só Ser ou um só subsistente por si, mas duas naturezas distintas, a saber, a natureza divina, que é a natura naturans, que é formada pelos atributos e é em absoluto simples e imutável. E a natureza criada chamada de natura naturata, que é constituída por modos,que são as realidades que, diferentemente da natura naturans, não podem existir em si, mas unicamente em Deus e por Deus; e todos estas modos nos seus graus inferiores, são finitos, múltiplos e sujeitos a mudança, e constituem as coisas particulares das quais temos experiência.
A natura naturans é a causa, ao passo que a natura naturata é o efeito daquela causa, a qual não está fora da causa, mas é de tal maneira que mantém a causa dentro de si. A causa, portanto, é imanente ao objeto e também, reciprocamente, que o objeto é imanente a sua causa, com base no princípio de que todas as coisas estão em Deus.
A natura naturans existe em si e é concebido por si mesmo, ou seja, todos aqueles atributos da substância que exprimem uma essência eterna e infinita, a saber, a consideração de Deus como causa livre. Escreve Spinoza na proposição 17 nos colorários 1 e 2 respectivamente:
"Segue-se disso, em primeiro lugar, que, além da perfeição de sua própria natureza, não existe nenhuma causa que, extrínseca e intrínseca, leve Deus a agir."

"Segue-se em segundo lugar, que só Deus é causa livre. Pois só Deus existe exclusivamente pela necessidade de sua natureza, e age exclusivamente pela necessidade de sua natureza. Logo, só ele é causa livre."

A natura naturans, que é Deus, causa imanente e não transcendente, diferentemente da natura naturata, como tudo aquilo que procede na necessidade da natureza de Deus, ou de cada um dos seus atributos, e como nada existe além de Deus, pois todas as coisas estão contidas nele, pode-se definir a concepção de Deus spinoziana como panteísta, ou seja, tudo é Deus ou manifestação necessária de Deus.