Análise Crítica do Artigo 129 §§ 9º E 10 do Código Penal
Por Dan DP | 04/08/2008 | DireitoDisciplina: Direito Penal III
Professora Patrícia M. Rondon
Acadêmico: Daniel Elias Pereira de Paula
Turma Dir06/1B
Análise crítica do artigo 129 §§ 9º e 10 do Código Penal
com o advento da Lei nº 10.886/2004
Maio de 2008
Sumário
Ficha Catalográfica5
Introdução6
Sanções Pretéritas7,8
Lei 10.886: Análise Teleológica9, 10
Do alcance teleológico11
Lei 10.340/2006 – breve histórico12
Competência Legislativa Duvidosa
Publicação da Lei 10.340 – Lei Maria da Penha
Da medida Cautelar13,14
Do uso de arma de fogo – inovação?16,17
Conclusão18
Bibliografia19
FICHACATALOGRÁFICA
Paula, Daniel Elias Pereira de. Análise crítica do artigo 129 §§ 9º e 10 do Código Penal com o advento da Lei nº 10.886/2004 / Daniel Elias Pereira de Paula – Várzea Grande, 2008. Trabalho deDireito Penal III do Univag Centro Universitário. 1. Direito Penal III, Análise crítica do artigo 129 do Código Penal com o advento da Lei nº 10.885/2004. I. Título. |
Introdução
O Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro do 1940), não previa o tipo especial denominado "violência doméstica" – lamentavelmente comum em nosso dias -, ainda que tipificasse o delito contra a integridade física ou psíquica do ser humano, a saber, a lesão corporal.
Sob a óptica moderna da Constituição Federal de 1988 – voltada sobretudo aos direitos sociais, dentre os quais a segurança e a proteção à maternidade (lato sensu) e à mulher (strictu sensu) em seu art. 5º, caput, confirma o conservadorismo obsoleto que imperava no Brasil da década de 1940, onde a violência doméstica, principalmente com relação à mulher era ignorada pelo legislador pretérito, ao que parece, enlaçado pelas limitações de uma visão patriarcal fruto - acreditamos, baseado na observação de seus costumes -, da expectativa da participação de tropas brasileiras (FEB – Força Expedicionária Brasileira) na Segunda Guerra Mundial, dentre outros.
A Lei nº 10.886, de 17 de junho de 2004 – Diário Oficial da União – DOU - de 18 de junho de 2004acrescenta os parágrafos 9º e 10 ao artigo 129 do Código Penal, classificando como fato típico e antijurídico, sob o nomen iuris"violência doméstica" (lesão corporal) "praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade".§9
De acordo com o artigo 5º do Decreto nº 678 de 6 de novembro de 1992 – Pacto de São José da Costa Rica -, nos termos da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, "toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral". ¹
Os próximos capítulos do presente estudo constituem um approache linear e contextualizador acerca do tema tutelado pela lei ut supra, a saber a integridade física, psíquica e moral das pessoas no ambiente doméstico.
1 - MIRABETE, Júlio F., Manual de Direito Penal, 22ª edição, vol. II, p. 103, Ed Atlas
Sanções Pretéritas
O dia 17 de junho de 2004 tornou-se bastante expressivo para o direito penal brasileiro, pois que a tutela ao objeto jurídico integridade física e mental do indivíduo, fez ampliar-se em sua extensão para além da sebe que isola o ambiente interno familiar – até então impenetrável em decorrência de costumes obsoletos de uma sociedade patriarcal como aquela dos anosde 1940, época em que passou a vigorar o Código Penal Brasileiro -, tipificando fatos e atos até então ignorados pelo legislador. Edson Durães de Vellasco aponta os antecedentes legislativos em relação à violência contra a mulher:
"A mulher, historicamente, era vista como propriedade do homem e sofria todo o tipo de violência doméstica. A impunidade masculina reinava, sobre o pretexto de que a infidelidade conjugal feminina afrontava os direitos do marido, cuja honra se lavava com o sangue da mulher adúltera. Os movimentos feministas reagiram, o que resultou na primeira condenação histórica, em 1981, por crime passional de repercussão nacional, no conhecido caso Doca Street, quando então surgiu o lema: "Quem ama não mata!".
O silêncio das mulheres chegou ao fim, elas deram um basta no silêncio que sempre envolveu a vida conjugal e na postura de passividade.
Não obstante a pressão da sociedade, a legislação penal, compreendendo o Código Penal e leis especiais para proteção da mulher, evoluiu a passos lentos. A Constituição Federal de 1988 igualou, definitivamente, fazendo abolir toda e qualquer exceção, direitos dos homens e das mulheres, colocando fim a uma série de dispositivos discriminadores da condição feminina. Atribuiu ao Estado à obrigação de criar mecanismos sérios que coíbam a violência no âmbito das relações familiares.
À falta de instrumento legislativo específico para prevenir e combater os casos de violência cometidos no ambiente familiar contra as mulheres aplicava-se a Lei 9.099/1995, que em última instância premiava os agressores com o pagamento de cestas básicas e prestação de serviços à comunidade. Como não poderia ser diferente, essa situação contribuiu para difundir a idéia de impunidade."²
Muito embora a Lei nº 9.099/95 – Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais – seja um elemento importante ao cumprimento do Princípio da Celeridade Processual, mostrou-se limitada no sentido de aplicar sanção compatível a agressão praticada contra as vítimas no ambiente doméstico. Seus efeitos refletiram-se sobretudo nas camadas menos favorecidas da sociedade, sem isentar, no entanto, as classes A e B, normalmente menos dispostas a expor tais desvios de conduta , a exemplo do crime de tortura –Lei nº 9.455/97- praticado pela empresária Sílvia Calabresi e sua empregada Vanice Maria Novaes, em Goiânia, contra uma pré adolescente de 12 anos por aquela adotada , mantida acorrentada e amordaçada com esparadrapos, tendo pimenta na boca e por vários dias privada de alimentos, sendo-lhe oferecidas as fezes e a urina de animais, além de ter sido agredida e torturada com tamancadas, cintadas, mediante o emprego de ferramentas como martelo, alicate, bem como sufocamento com uso de saco plástico, sob alegação de que a estava "educando e não torturando"³.
Trazendo a discussão para o momento atual (maio de 2008), vislumbramos, muito a contragosto, o lamentável episódio de violência, acredita-se, doméstica, cometida contra a garota Isabela Nardoni, de apenas 5 (cinco) anos de idade, a qual em meados de março/abril fora arremessada do 6º andar do Edifício London, zona norte da capital paulista. Se dependêssemos ainda, exclusivamente da tutela promovida pela referida lei, nossas expectativas de concretização da justiça seriam ainda menores enquanto sociedade civil organizada.
Com a finalidade de sanar tal deficiência, buscou o legislador moderno coibir delitos dessa natureza, aproximando a legislação infra constitucional do cumprimento do preceito constitucional referente aos direitos e garantias fundamentais como a segurança – artigos 5º (direto à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança...); inciso I: (princípio da isonomia): todos – homens e mulheres - são iguais em direitos e obrigações,e ainda, em relação aos direitos sociais, artigo 6º, caput,tais como a segurança, a proteção aassistência à criança, à mulher e aos desamparados.Daí a gênese da Lei nº 10.886/2004, de cujo objetivo trataremos no próximo tópico.
1 – VELLASCO, Edson Durães de. Monografia: "Lei Maria da Penha, novos institutos penais e processuais penais para o combate à violência contra a mulher" – 2007 -capítulo 3, item 3.2, Antecedentes Legislativos p. 42., publicada no site: www.bdjur.stj.gov.br acessado em 26.03.08
2 – site www.g1.globo.com -Acessado em 26.03.08
Lei 10.886/2004: Análise Teleológica
Teleologicamente, a Lei 10.886/2004 visa ampliar a tutela familiar, harmonizando-a, o que tende a reforçar o preceito do caput do artigo 129 do CP – cuja abrangência até então se fez limitada e em havendo a violência doméstica, a sanção aplicada ao agente, promovida pela Lei 9.099/95, foi, por longo período insuficiente, evidenciando a idéia de impunidade..
Ensina Capez:
"Pretende a lei elevar o nível de proteção daqueles que, subjugados pela dependência econômica ou moral dentro do âmbito doméstico, tem maior dificuldade em recorrer à Polícia ou Justiça, com receio de romper a harmonia e a união familiar, para não colocar em risco o próprio sustento, ou simplesmente por temer novas agressões."¹
Com relação ao referido "receio de romper a harmonia e a união familiar", data vênia, acreditamos já encontrar-se a mesma em desarmonia a partir das primeiras agressões, sejam físicas e/ou verbais.
Como se vê, a referida lei acrescentou os §§ 9º e 10 ao artigo 129 do Código Penal, cujo caput tipifica a lesão corporal leve, segundo análise de Damásio:
" Como ocorre na lesão corporal leve (art. 129, caput), a violência doméstica constante do § 9.º é delito de menor potencial ofensivo."²
O acrescido § 9º trazcomo circunstância especial a relação de parentesco, a qual, de acordo com o artigo 61, inciso II, alínea "e" do CP,constitui o delito tão somente em agravante genérica:
"são circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime:
II – ter o agente cometido o crime:
e) contra ascendente, descendente, irmão ou cônjuge"³
Assim, ainda sob a orientação damasiana, convém a aplicação da agravação específica prevista no § 10: aumento da pena em um terço (1/3)
"Quanto aos conceitos de cônjuge, companheiro, relações domésticas, coabitação e hospitalidade, prevalecem os mesmos do art. 61 do CP. Presente no fato uma circunstância especial do § 9.º (exemplo: relação de parentesco), prevista também como agravante genérica (art. 61 do CP), aquela prefere a esta, impondo-se a pena da agravação específica (pena do § 10)."4
Na reflexão de Fernando Capez, o artigo supra, que, segundo Damásio, configura comoagravante genérica o elo de parentesco,após a inovação legislativa, em se tratando de lesão corporal dolosa de natureza leve configura qualificadora. Assim:
" a lesão corporal leve comum (art. 129) é punida com detenção de 3 meses a 1 ano, enquanto a qualificada pela violência doméstica (§9ºe 10 da Lei 10.886/2004), com detenção de 6 meses a 1 ano."6
Na avaliação de Damásio, a alteração legislativa foi inexpressiva:
"Como se vê, a alteração legislativa foi praticamente inócua."
No que concorda Capez, ao afirmar que:
"o sujeito ativo está a merecer reprimenda mais rigorosa, na medida em que, covardemente, se prevalece de seu poder de fato ou de um maior domínio sobre pessoas mais frágeis que estejam próximas (...) a modificação acabou sendo tímida*, visto que a conduta continua a configurar infração de menor potencial ofensivo e a ação penal, condicionada à representação do ofendido"8.
*entenda-se modificação tímida em relação ao § 9º
Apesar da idéia de impunidade decorrente do mero pagamento de cestas básicas por parte do agressor, fruto da Lei 9,099/95, como observa Vellasco, esta é, ainda a ferramenta mais adequada para coibir crimes dessa natureza, em não havendo as agravantes lesão corporal grave; gravíssima e seguida de morte, uma vez que compete a demanda aos Juizados Especiais Criminais,de acordo comDamásio:
" Assim, tratando-se de lesão corporal leve, excluídas as graves, gravíssimas e seguidas de morte (art. 129, §§ 1.º, 2.º e 3.º), a competência é dos Juizados Especiais Criminais (art. 61 da Lei n. 9.099/95, alterado pela Lei n. 10.259/2001)"9
Até porque, de acordo com o artigo 88 desta lei, sendo as lesões corporais leves, seu ingresso na Ação Penal Pública Condicionada, dependerá de representação:
"Tratando-se de lesão corporal leve (§ 9.º), a ação penal pública depende de representação (art. 88 da Lei dos Juizados Especiais Criminais). Na hipótese de lesão corporal grave, gravíssima ou seguida de morte (§§ 1.º, 2.º e 3.º) praticada em qualquer das circunstâncias definidoras da violência doméstica (§ 9.º), a ação penal é pública incondicionada."10
Em relação ao § 10 da referida lei, ainda na visão de Capez, trata-se de novatio legis in pejus, ou seja, a lei nova é mais severa que a anterior, uma vez que assim dispõe:
"Nos casos previstos nos §§ 1º a 3º deste artigo, se as circunstâncias são as indicadas no § 9º deste artigo, aumenta-sepena em 1/3".
(...) "procura estabelecer, agora sim, em relação aos delitos mencionados no parágrafo anterior, um tratamento mais rigoroso quando o agressor se prevalece da condição de convivência doméstica ou de hospitalidade"11
1, 5 ,6 , 8 e 11 - CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal – parte especial, volume II, 6ª edição, p.152, Ed. Saraiva.
2,3,4,7,9 e 10 – JESUS, Damásio de. Artigo: "Violência Doméstica", publicado no site www.noticiasforenses.com.br acessado em 26/04/08
Do alcance teleológico
A finalidade da novatio legis não atingiu as aspirações do legislador nem tampouco satisfez de forma plena aos anseios de justiça por parte da sociedade, haja vista não ter coibido aberrações praticadas no âmbito doméstico contra cônjuges – a exemplo do caso Maria da Penha (cuja insuficiência gerou inovação legislativa, como veremos a seguir)-; contra ascendentes por parte de seus descendentes – tal qual o caso Suzane Richthofen -; e mais recentemente por parte de ascendentes contra descendentes – acredita-se, de acordo com declarações feitas na mídia pelo promotor responsável pelo caso, dr. Francisco Cembranelli, como o lastimável episódio envolvendo a infante Isabela Nardoni.
A violência doméstica é normalmente associada à violência contra a mulher, o que não excluí os demais ofendidos. Nesse aspecto, a novatio legis logrou êxito, pois ampliou a tutela às crianças e demais agentes unidos pelo vínculo de parentesco, cumprindo assim, o preceito constitucional positivado no art. 6º referente à proteção e à segurança, dentre outros, bem como o citado no artigo 226, § 4º:
§4º: "Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes."
Ainda assim, em nossa sociedade patriarcal, a proteção à mulher, sobretudo na intimidade do seio familiar, foi, por longo período, ignorada pelo legislador,a exemplo daigualdade entre homens e mulheres que somente se fez reconhecida a partir da Constituição de 1988, esculpida no caput do artigo 5º.Conceituada como violência de gênero e reconhecida como violação aos direitos humanos – Conferência Mundial de Direitos Humanos,Viena, 1993 -, a violência contra a mulher tornou-se tema freqüente de debates e campanhas publicitárias vinculadas na mídia. A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, vulgo, Convenção de Belém do Pará, determina, em seu artigo 7º, alínea "b", que aos Estados signatários compete agir com o devido zelo para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher, Isto porque, conforme orienta Vellasco:
" a sociedade não tolera mais, com tamanha parcimônia, as posturas arraigadas no modelo patriarcal. Este fato fez com que as agressões às mulheres ganhassem maiores repercussões chamando a atenção dos organismos internacionais para o tema que, então, passou a ser tratado como devia pelo Estado, tanto que entrou em vigor uma lei para dizer, expressamente, que a violência doméstica praticada contra a mulher constitui grave violação dos direitos humanos e das liberdades essenciais. A discriminação positiva, assim acolhida, justifica-se, porque a violência de gênero atinge a cidadania e a própria dignidade das mulheres. A violência impedem-nas de tomar decisões de maneira autônoma e livre, viola o direito de ir e vir, de expressar opiniões e desejos, de viver em paz em seu lar, direitos esses indeclináveis e irrenunciáveis do ser humano.'¹
O mencionado diploma jurídico, conforme acima destacado, trata-se da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), criadora de mecanismos tendentes a prevenir e coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, bem como dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher.
1 – VELLASCO, Edson Durães de. Op. Cit. Capítulo II. item 2.2, p.36-37
Lei 11.340/2006 – breve histórico.
A Lei 11.340/2006, teve sua origem em fato verídico, ocorrido no Estado do Ceará, na década pretérita, conforme relato de Vellasco, o qual passaremos a transcrever:
"A biofarmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes, uma das milhares de vítimas de violência doméstica no país, sofreu, durante 6 (seis) anos, agressões de seu marido. Este, em maio de 1993, atentou contra sua vida com disparos de arma de fogo enquanto dormia. Ela ficou hospitalizada algumas semanas e retornou para seu lar com paraplegia nos seus membros inferiores. O marido ainda não satisfeito com o resultado da violência contra a vida da mulher, prosseguiu no seu mister. Enquanto ela tomava banho tentou eletrocutá-la, mas Maria da Penha sobreviveu. Ele ficou impune por longos 19 (dezenove) anos, quando, finalmente, foi preso e condenado. Contudo, ficou preso por apenas 3 (três)anos."¹
Competência Legislativa Duvidosa
A morosidade da Justiça Brasileira frente à frustração de Maria da Penha no sentido de ver, após quase vinte anos a punição de seu agressor, atingiu proporções gigantescas, pois que acarretou na responsabilização da República Federativa do Brasil, conforme relata Vellasco, por negligência e omissão em relação à violência doméstica., por parte daComissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (caso nº 12.051/OEA) -, a qual, em seu relatório de nº 54/2001, recomendou a urgente revisão legislativa, no sentido de coibir tais aberrações praticadas contra a mulher em nosso território.²
Publicação da Lei 11.340/2006 – Lei Maria da Penha:
"A lei fundou-se em normas e diretrizes consagradas na Constituição Federal, artigo 226, § 8º, na Convenção da Organização das Nações Unidas sobre a eliminação de todas as formas de violência contra a mulher e na Convenção Interamericana para Punir e Erradicar a Violência contra a mulher. Registre-se o admirável fundamento político-jurídico da lei. Em cerimônia realizada no Palácio do Planalto, o Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, em 07 de agosto de 2006, com a presença de várias autoridades e de Maria da Penha Maia Fernandes, promulgou a Lei 11.340/2006. Em justíssima homenagem à luta pela justiça de Maria da Penha Maia Fernandes, que ficou marcada para sempre física e psicologicamente pela violência sofrida, mas teve força e coragem para lutar contra a violência doméstica, a lei foi denominada 'Maria da Penha'. A lei entrou em vigor em 22 de setembro de 2006."³
Para Vellasco, a origem da Lei Maria da Penha, encontra-se, entre outros fatores, na ineficácia daLei 9.099/95 :
" A origem da Lei 11.340/2006, além das recomendações feitas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, está na ineficácia da Lei 9.099/1995, que regulava o tema e em que incidia seus institutos despenalizadores, bem como nas legislações especiais sobre a violência contra a mulher e nos modelos de medidas cautelares civis e criminais então vigentes"
1, 2 e 3 – VELLASCO, Edson Durães. Op cit.Capítulo III Item 3.1 p. 41-42
Da Medida Cautelar
Marcel Peres de Oliveira, em artigo publicado¹, comenta que, de acordo coma Lei 10.455 de 13 de maio de 2002,promulgada pelo Presidente da República .- DOU de 14 de maio de 2002 -,alterou-se o parágrafo único do art. 69 da Lei 9.099/95, incluindo-se um inédito caso de medida cautelar no âmbito processual penal, especificamente nos Juizados Especiais Criminais. (Originária do Projeto de Lei nº 67/2001 (nº 3.901/00 na Câmara dos Deputados), com a nova redação dada pelo artigo 1º da Lei 10.455/2001, em seu parágrafo único:
"Art. 69...
Parágrafo único. Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança. Em caso de violência doméstica, o juiz poderá determinar, como medida de cautela, seu afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima."(grifo acrescentado pelo autor)
A Medida Cautelar é oriunda do Direito Processual Civil (art. 888, VI do CPC):
Artigo 888: "O juiz poderá ordenar ou autorizar, na pendência da ação principal ou antes da sua propositura:
Inciso VI: "o afastamento temporário de um dos cônjuges da morada do casal"
Alerta Peres que tal medida, quando aplicada no processo penal, pode acarretar algumas situações juridicamente intransponíveis, ou pelo menos de difícil elucidação, fazendo menção a Humberto Theodoro Jr., segundo o qual:
"as medidas provisionais do art. 888 são objeto de ação cautelar e não meras providências avulsas que possam requerer por simples petição no bojo dos autos de processo principal". 2
(...) "todas elas são providências temporárias, provisórias ou precárias, que atuam em função de outro processo, como dispõe o art. 796". 3
Dado seu caráter temporário e pelo fato de não assegurar a separação física dos cônjuges, mas tão somente aquela de cunho jurídico, questiona-se sua eficácia:
"a separação de corpos, denominação antiga do instituto, a princípio não prevê a retirada coercitiva do autor do fato de seu próprio lar. O que se objetiva com a medida cautelar é apenas uma separação jurídica do casal, independente de haver ou não a verdadeira separação física de ambos. Portanto, a medida cautelar não teria o condão de surtir o efeito desejado pelo legislador, colocando-se em cheque a sua eficácia neste âmbito, salvo em situações excepcionais que devem ser sopesadas pelo magistrado, como, aliás, já prelecionava a doutrina:
"O que se busca efetivamente com a medida é o estado de separação jurídica dos cônjuges, que nada tem a ver com sua provável mas não necessária separação física (J. Ribeiro Leitão, Direito Processual Civil, 108) que a idéia de afastamento da morada do casal poderia sugerir. Em verdade, a provisional de separação de corpos não importa necessariamente afastamento de um dos cônjuges do domicílio conjugal, como afirma, com razão, Marcos Afonso Borges (Comentários, 109) (...) Mas, além desses casos, em que o juiz concede o alvará de separação de corpos, autorizando o cônjuge requerente a afastar-se do lar conjugal, pode igualmente ocorrer que o cônjuge que pretenda promover alguma ação matrimonial, tais como a separação judicial, nulidade ou anulação de casamento, sinta-se com direito de permanecer no domicílio do casal, pretendendo que o alvará de separação de corpos seja concedido com a ordem simultânea para que o outro cônjuge se afaste do domicílio comum (Jorge Americano, Comentários, 3º/32; João Vicente Campos, loc. Cit.)"
Portanto, em regra não é cabível o efeito pretendido pelo legislador com a inovação trazida, uma vez que o alvará de separação de corpos não possui força coercitiva.
No entanto, há entendimento que advoga a possibilidade do mandado de afastamento dirigido ao cônjuge que coloca em risco a convivência familiar. Mas é de se lembrar que tal medida é excepcional, violenta e provoca grande restrição aos direitos do agente, devendo ser utilizada como ultima ratio*, exigindo uma análise rígida quanto ao requisito do periculum in mora.**
Existe ainda o entendimento no sentido de que tal medida cautelar teria como escopo o adiantamento de um dos efeitos do provimento final da ação principal (natureza jurídica), qual seja, a cessação do dever de coabitação (art. 231, II do CC), não sendo propriamente uma tutela cautelar.
O juiz, de posse do Termo de Ocorrência Circunstanciado, não poderia conceder a medida cautelar simplesmente porque ainda não existe processo iniciado (seja por denúncia ou queixa), (...) não havendo ainda a provocação da jurisdição; é imprescindível a provocação da vítima, não podendo o juiz determinar a medida de ofício."
A medida cautelar de fato existe; no entanto, conforme aponta Peres, é ineficaz nos casos de violência doméstica contra a mulher, pelo fato de não assegurar a plena tutela de sua integridade física, haja vista não assegurar a separação de corpos – artigo 69 da Lei 9.099/95 - mas tão somente aquela de cunho jurídico.:
"O elemento normativo "violência doméstica" suscita dúvidas quanto ao seu real alcance, já que o projeto não traz o seu conceito, deixando, assim, a cargo da doutrina e da jurisprudência esse mister. Ademais, deve-se considerar que o termo "violência doméstica" pode abarcar vários delitos, inclusive os não abrangidos pela Lei dos Juizados Especiais Criminais, como por exemplo, os crimes sexuais e a lesão corporal gravíssima".4
1 -OLIVEIRA, Marcel Peres. Artigo: A medida cautelar de separação de corpos nos crimes de menor potencial ofensivo (Lei 10.455/2002) publicado no site www.jusnavigandi.com.br acessado em 02.05.08
2, 3 – JÚNIOR, Humberto Theodoro. Curso de direito processual civil - v.2 - Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 362-3. citado porOLIVEIRA, Marcel Peres em artigo de www.jusnavigandi.com.br
4 - Trecho da mensagem nº 373 de 13 de maio de 2002 que justifica o veto presidencial do art. 2º da Lei 10.455/02:
*ultima ratio – última razão
**periculum in mora – perigo em razão da demora.
Do uso de arma de fogo – inovação?
A Lei nº 10.826/ 2003, que dispõe sobre o registro, posse e comercialização de armas de fogo – Estatuto do Desarmamento -, em seu artigo 15, sob orientação capeziana¹, traz nova tipificação em relação ao diploma anterior (artigo 10, §1º, III), segundo o qual o delito de disparo de arma de fogo ocorre " desde que o fato não constitua crime mais grave". Diz a nova redação:
Artigo 15: "desde que essa conduta não tenha como finalidade a prática de outro crime".
A nova redação não leva em conta a maior ou menor gravidade da conduta para o fim de estabelecer qual crime deva prevalecer, mas somente a finalidade (elemento teleológico) perseguida pelo autor. Efetuando o agente disparo de arma de fogo em direção à vítima, visando nela provocar lesões corporais de natureza leve, não responderá pelo disparo (o que é mais grave), mas apenas pela infração de menor potencial ofensivo (mais branda) tipificada no artigo 129 do CP. Grifo acrescentado
Discorre Capez:
"o legislador procurou, deste modo, afastar expressamente a incidência do princípio da subsidiariedade (complementaridade), pelo qual deveria prevalecer a infração de maior gravidade, dando preferência ao princípio da especialidade. O que passou a importar é a vontade finalística do agente e não a maior ou menor lesividade do resultado produzido. Com isso, quando os disparos são efetuados com o intuito de expor determinada pessoa a uma situação de perigo direto e iminente, sendo essa a finalidade, prevalecerá a infração prevista no art. 132 do CP (periclitação da vida e da saúde de outrem), muito embora, seja, por natureza e expressa disposição de seu próprio tipo incriminador, subsidiária (complementar). No caso, tal subsidiariedade não terá relevância, pois o que importa é a finalidade que orientou a conduta, e não a danosidade do resultado jurídico. Na hipótese já mencionada da lesão corporal de natureza leve, ainda que esse delito seja bem menos grave do que o disparo, estando presente o elemento especializante inexistente no crime de disparo, qual seja, o animus laedendi – intenção de ferir -, terá preferência o tipo especial do artigo 129, caput, do CP. Tais soluções decorrem de puros critérios de política criminal discricionariamente escolhidos pelo legislador."
Na análise capeziana, a inovação foi infeliz, uma vezque
"a lei trata com maior benevolência quem dispara arma de fogo em direção a uma pessoa específica, com a finalidade de feri-la ou de expô-la a risco, do que o que efetua disparos a esmo. É muito mais vantajoso para o agente apontar a arma de fogo em direção a uma região não letal da vítima e dispará-la com a nítida intenção de produzir ferimentos, caso em que responderá por lesão corporal leve (infração de menor potencial ofensivo), ou mesmo disparar a arma com a intenção de expor alguém a uma situação de risco concreto, efetivo e iminente, do que efetuar disparos para o alto, por exemplo, comemorando a vitória de seu time de futebol."
Fazendo menção à ineficácia aplicada à tipificação do delito de acordo com a instrução dada pela Lei 9.099/95, no que respeita ao procedimento para com o infrator, afirma:
"Nas duas primeiras hipóteses, o atirador será levado ao Juizado Especial Criminal e se livrará do processo, aceitando pena alternativa; no caso de disparos para o alto, responderá por um crime cuja pena máxima é a reclusão de 4 anos, mais multa, sendo ainda o crime inafiançável."
Pelo que , indignado, profere o questionamento que todos nós, cidadãos de bem, gostaríamos de fazer aos nossos parlamentares:
"Ora, é de indagar: como infrações bem menores (menos graves) podem prevalecer sobre as de maior gravidade? Não se trata, aqui, de princípio da especialidade, em que uma única conduta está diante de dois tipos, um genérico e outro específico, mas de uma conduta que produz, simultaneamente, dois resultados, um mais grave e outro menos grave.. Diante da aparente incidência de dois tipos, no caso deverá prevalecer o mais amplo, o mais grave, o continente, e não o conteúdo, o menos grave. Usando de linguagem metafórica, é a caixa pequena que deve ficar dentro da grande e não o contrário. O que é pior: atirar contra a pessoa ou em direção ao céu? A resposta é por demais óbvia. Mas, ao que tudo indica, não tão óbvia para o legislador. Para este, é muito grave alvejar as nuvens, pois com a primeira, devido à exígua sanção penal (detenção de 3 meses a 1 ano), incide o procedimento da Lei 9.099/95, bem como o instituto da suspensão condicional do processo – sursi processual -, ao passo que na segunda, além de a pena ser muito mais grave, o crime fica sujeito ao procedimento comum ordinário – reclusão de 4 anos e multa -e é inafiançável. Trata-se, portanto de estímulo à violência ou ameaça contra a pessoa, o que é um paradoxo, na medida em que a nova lei visa justamente desarmar as pessoas com o escopo de prevenir ofensas à integridade física de outrem"
Para o doutrinador, a inovação legislativa trata-se de objeto de discussão acerca de sua inconstitucionalidade, dada a sua invalidade decorrente de incompatibilidade vertical com o ordenamento jurídico supremo:
"Por essa razão, não há como prevalecer a solução legal. Sendo o processo penal permeado e regido pelos princípios maiores derivados da constituição, os quais se colocam bem acima do próprio direito positivo, a ressalva há de ser tida como inconstitucional e, por conseguinte, inválida. Com efeito, o vício da incompatibilidade vertical com a ordem constitucional decorre da clara afronta ao princípio da proporcionalidade das penas."
Diante da ineficácia promovida pela inovação legislativa, aponta uma possível solução a ser aplicada ao caso concreto:
"A melhor solução, no caso, será interpretar a ressalva como incidente, apenas quando o crime fim, isto é, o resultado perseguido pela vontade finalística do agente, for de maior gravidade do que o disparo da arma de fogo, como por exemplo, quando o intuito for ocasionar na vítima lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, homicídio e infanticídio."
1 – CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal – parte especial – vol. II, 6ª edição, p 144-14, Ed. Saraiva. Grifos acrescentados.
Conclusão
Após esta breve exposição, chegamos à conclusão de que, na verdade, a inovação legislativa promovida pela Lei nº 10.886/2004, cuja pretensão era a de reparar a ineficácia da sanção promovida pela Lei 9.099/95 em relação ao infrator responsável pela prática de lesões corporais no âmbito doméstico não logrou o devido êxito - haja vista trazer consigo a idéia de impunidade -, a que se propôs alcançar o legislador, mostrando-se "inócua", na visão de Damásio, e "tímida", na visão de Capez.
A sociedade civil organizada ainda se depara com atrocidades promovidas no seio familiar mediante o uso de instrumentos os mais diversos, dentre os quais as armas de fogo perante os quais a legislação se faz conivente, à medida que instiga a violência atribuindo sanções mais brandas àquele que atira contra uma pessoa e mais severas àquele que dispara em direção ao céu caracterizando a chamada esquizofrenia legislativa, no dizer do professor Saulo Rofrigues – palestrante no seminário integrado Direito Penal/Psicologia realizado no NPJ do Univag Centro Universitário em Outubro de 2007 -, o que se faz evidenciar na aplicação da medida cautelar retro citada, fruto de outra "inovação" legislativa promovida pela Lei 10.455/2002, que altera o parágrafo único do artigo 69 da Lei 9.099/95, uma vez que não assegura a plena separação de corpos entre os cônjuges em conflito – retirando de forma coercitiva do lar o agressor - nos casos de lesões corporais originadas no seio familiar.
Continuamos a viver em uma sociedade desigual e injusta devido a um ordenamento jurídico pré-estabelecido por legisladores - corruptos em sua grande maioria -, de modo a assegurar-lhes a proteção do manto sagrado da imunidade parlamentar – ou deveria dizer "impunidade parlamentar?" – cuja tutela aos interesses de uma pequena burguesia se faz evidente ao passo que ao cidadão comum resta ouvir, a contragosto, o discurso demagógico de que a Justiça Isonômica – de que forma? a exemplo dos oficiais de justiça da comarca de Várzea Grande que se recusam a cumprir diligências provenientes da justiça gratuita?l Ao que nos parece, nosso ordenamento jurídico esquizofrênico é o responsável pela continuidade de uma justiça além de tardia , P.N.E cuja eficácia é sempre uma incógnita.
Bibliografia
1 - MIRABETE, Júlio F., Manual de Direito Penal, 22ª edição, vol. II, Ed. Atlas
2 – VELLASCO, Edson Durães de. Monografia: "Lei Maria da Penha, novos institutos penais e processuais penais para o combate à violência contra a mulher" – 2007 - publicada no site: www.bdjur.stj.gov.br - Acessado em 26.03.08
3 – notícias sobre o caso Isabela Nardoni publicada no site www.g1.globo.com -Acessado em 26.03.08
4 - CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal – parte especial, volume II, 6ª edição, Ed. Saraiva.
5 – JESUS, Damásio de. Artigo: "Violência Doméstica", publicado no site www.noticiasforenses.com.br Acessado em 26/04/08
6 -OLIVEIRA, Marcel Peres. Artigo: A medida cautelar de separação de corpos nos crimes de menor potencial ofensivo (Lei 10.455/2002) publicado no site www.jusnavigandi.com.br - Acessado em 02.05.08
6.1 – JÚNIOR, Humberto Theodoro. Curso de direito processual civil - v.2 - Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 362-3. citado porOLIVEIRA, Marcel Peres no artigo a medida cautelar de separação de corpos nos crimes de menor potencial ofensivo – publicada no site www.jusnavigandi.com.br acessado em 02.05.08
6.2 - Trecho da mensagem nº 373 de 13 de maio de 2002 que justifica o veto presidencial do art. 2º da Lei 10.455/02 – publicada no site www.jusnavigandi.com.br- Acessado em 02.05.08
Leia também, de minha autoria: A Evolução Histórica do Constitucionalismo. Daniel Elias - Sarcas.