Alzheimer, a doença ruim

Por marot gandolfi | 18/04/2011 | Crônicas

Só quem vive com o Alzheimer perto é que tem noção de quanto é cruel esta doença. Nenhuma doença é boazinha, boa companheira, chapa, brother. Alzheimer, vamos combinar, é o cão! Durante anos ouvi minha família e amigos se referirem ao câncer, como "doença ruim". Existe alguma doença boa? Mas no ranking geral, o Alzheimer para mim, lidera disparado a pole position.
Tive uma tia, irmã mais velha da minha mãe, que definhou à sombra do Alzheimer. Ela ficou viúva muito cedo, aos 50 anos, e não teve filhos. Ela sempre estava na minha casa e passei muitas férias com ela em Santos.
Logo depois que seu marido morreu, ela também morreu, mas infelizmente continuou a respirar. Morreu para a vida, morreu para ela, morreu para acordar e para dormir. Ela transmitia a todo mundo o tamanho da sua perda. Só se vestia de preto e colocava um broche de ouro que mandou fazer com a foto do meu padrinho, na lapela do vestido. Era uma forma de compartilhar com todo mundo que a olhava a sua angústia, a sua saudade. E o tal broche acabava chamando muito a atenção. Em 45 anos, nunca vi uma outra pessoa fazer a mesma coisa.
Ela queria dizer para o mundo, quem sabe até chegar aos ouvidos dele, que metade dela a tinha abandonado e que agora ela não sabia o que fazer com a metade que sobrou.
Depois de longos anos, ela abandonou o preto. Lembro-me claramente que apesar de tudo, ela era vaidosa. Sempre elegantemente vestida. Usava sapatos estilo "Chanel" em duas cores, marrom/marfim, azul marinho/branco, impecavelmente combinando com os vestidos muito bem passados e chiquérrimos. Perfumes só os importados e doces. Confesso que me davam dor de cabeça! Cabeleireiro todos os sábados. Nunca a vi com o cabelo desalinhado ou as unhas por fazer. Aliás, gostaria de descobrir que mágica sua cabeleireira fazia para seu cabelo durar uma semana. Eu faço uma escova num dia e no dia seguinte parece que uma vaca lambeu todo o meu couro cabeludo!
Esta mesma tia tinha uma memória de dar inveja a qualquer jovem que tenha entrado nos primeiros lugares da USP, UFSCAR, UNICAMP e Uqualquer coisa.
O danado do Alzheimer chegou de mansinho. No começo, sem fazer muito barulho. De sacanagem, só para constrangê-la. Aos poucos, ele foi tomando forma. Lentamente, quase sussurrando. A elegância foi perdendo o charme e o perigo de ficar sozinha foi ficando gritante.
Não deu mais. Ela veio morar conosco. O Alzheimer, cruel como ele só, começou a andar mais rápido, quase num trote. Ele não se contentava mais em caminhar. Apertou o passo. Ela começou a falar sozinha (nós também falamos de vez em quando, admita), a esquecer que tinha acabado de comer, isso é assustador ? se você colocar o prato de comida 50 vezes, o estômago simplesmente não manda uma mensagem para o cérebro ? Hei, cérebro, fecha a boca, chega, não cabe mais um grão de arroz aqui, vou explodir! A pessoa continua comendo.
Ela sempre gostou de televisão, do programa mais trash possível, também naquela época não tinha TV a Cabo. Não que agora não tenha mais porcaria na TV, agora tem porcarias internacionais também. Ela passava horas, o dia inteiro em frente à TV, mas não tinha noção do que estava assistindo. Ela olhava pela TV não para a TV.
Já muito gorda, não conseguia mais levantar da cama, foi preciso interná-la numa clínica.
Neste momento, o ordinário do safado do Alzheimer, resolveu correr, não para a linha de chegada, mas para pular barreiras e obstáculos. Ela não conseguia comer sozinha, passava dias sentada numa cadeira olhando para o nada, não reconhecia ninguém, só a minha mãe, que para ela tinha 9 anos.
Foi dureza ver a decrepitude acabar com a minha tia chique. É humilhante. E apavorante. É inevitável pensar ? tomara que isso não aconteça comigo, Deus me livre!
O ápice do horror se deu quando ela brigou com o próprio espelho. Ela não se reconhecia. Eu já não a reconhecia há muito mais tempo.
Ela morreu depois de muito sofrimento, sozinha e triste como eu lembrava dela. Em suas "alucinações" falava muito com meu tio e com meus avós. Eu acredito que não eram fantasias, mas pedidos de socorro. Chega, acabou para mim, pelo amor de Deus me levem.
Li vários livros sobre esta doença macabra. Existem milhares de teorias e estatísticas que revelam as causas deste mal, nenhuma concreta. Não coma margarina, coma manteiga, não coma bacon, tome Ginko Biloba. Exercite seu cérebro, assim como você caminha, se não ele para.
Não concordo com nenhuma delas, embora acredite que uma alimentação balanceada é saudável para qualquer criatura.
O que fez minha tia enérgica e com "gênio difícil", como comentavam os parentes, desenvolver esta "doença ruim", foi a saudade. A dor da solidão. A partida da metade que a completava.
Isso é o Mal de Alzheimer ? a vontade de não viver mais. E este mal arrasta a pessoa que ficou e a família toda.
Marot Gandolfi